domingo, 30 de maio de 2021

Homem ao Mar

"Estrelas não desaparecem, elas continuam brilhando, mesmo quando a noite acaba." 

Stargazing – Kygo ft. Justin Jesso

Um relato antigo diz que Deus apareceu a Moisés através de uma sarça que ardia em chamas, mas não se consumia. Durante a conversa que estabeleceram, Moisés perguntou: "Quando eu for às pessoas, lhes disser que o Deus dos pais delas me enviou e me perguntarem qual é o Seu nome, o que eu devo responder?" Então, Deus disse: "EU SOU O QUE SOU, assim responderá que EU SOU me enviou a vocês."

Lembrei-me desse diálogo dias atrás, quando ponderava se poderia haver algo absoluto. Se existir, seríamos capazes de reconhecê-lo? Que palavras usaríamos para explica-lo? Poderíamos ao menos entendê-lo? O absoluto é o que é, em si mesmo, ou é o que enxergamos? Como identificar a diferença se tudo o que conhecemos passa pelo crivo de nossas interpretações? Não me refiro à relativização consciente, mas faço alusão ao filtro de nossas limitações. Vou explicar melhor...

Desviando: Enquanto escrevia, lembrei-me de outra narrativa, que aliás já mencionei aqui também. Durante o julgamento de Jesus, Pilatos perguntou: "o que é a verdade?". Porém, ele ficou sem resposta. Arrisco dizer que a reticência de Jesus foi mais em razão de nossas ineficientes capacidades cognitivas. Ou pior, poderia ter sido por saber que nem ao menos queremos a verdade. Enfim, nossa ânsia por verdades circunstanciais não é assunto para esta postagem – de fato, já foi tema de outras.

Voltando: Leonard Mlodinow cita em seu livro "Subliminar" uma experiência feita com dois tipos de vinhos diferentes, um bom e um ruim, de acordo com a classificação de enólogos experientes. Foram separados dois grupos de pessoas e os vinhos foram oferecidos a elas sem que soubessem qual era o bom e qual era o ruim. Enquanto as "cobaias" experimentavam as bebidas, as suas atividades cerebrais eram mapeadas através de tomografias. Ao primeiro grupo foi dito que ambos os vinhos tinham o mesmo preço. Neste caso, a área do cérebro responsável pela percepção do prazer foi mais estimulada quando as pessoas tomaram o vinho bom. Enquanto para o segundo grupo, foi dito que o vinho ruim era o mais caro. Desta vez, a área do cérebro responsável pelo prazer foi mais ativada quando as pessoas tomaram justamente o vinho ruim. Conclusão, não é que as pessoas optaram por manter uma aparência de que que vinhos mais caros são melhores, mas elas realmente sentiram isso. O vinho mais caro torna-se realmente mais prazeroso para os nossos cérebros. "Das duas, uma": ou nossos juízos não são baseados exclusivamente sobre o absoluto; ou o absoluto é também constituído de aspectos externos a ele. Se a segunda opção for plausível, quem poderá negar a qualidade de um vinho? Fica a dica, da próxima vez que você quiser avaliar algo, não pergunte antes o preço, a marca ou o tipo de pessoa que consome o item sob avaliação.

Vamos considerar outro exemplo, as cores. Elas nem ao menos existem, mas são apenas diferentes comprimentos de onda do espectro visível de uma radiação eletromagnética. Todo o resto, quem faz é o nosso cérebro, junto com o sistema visual. É prudente destacar que a expressão "espectro visível" é o que faz toda a diferença. Por exemplo, os daltônicos e outras espécies poderiam não entender bem sobre o que estou falando. E, apesar de minha inquietação não ser precisamente sobre cor, este é o aspecto que estou tentando construir como exemplo, se toda a humanidade fosse daltônica, quem poderia dizer que as cores existem?

"O que é ‘real’? Como você define o ‘real’? Se está falando do que consegue sentir... do que pode cheirar, provar, ver... então, ‘real’ são simplesmente sinais elétricos interpretados pelo cérebro."

Morpheus – The Matrix (1999)

Já que citei vinhos anteriormente, com o perdão por estar sendo tão... bíblico, quero avaliar um último caso para ajudar a ilustrar minha angústia – que também não é sobre vinhos.

Os relatos dizem que Jesus transformou água em vinho e que o mestre de cerimônia da festa afirmou nunca ter experimentado um tão bom quanto aquele. Nesse caso, vejo duas hipóteses: ou a água se transformou realmente em vinho, e já vimos aqui que a alteração de massas atômicas demanda e gera quantidades enormes de energia, portanto, sabemos o que teria sido feito, mas não como; ou o milagre ocorreu dentro da mente dos convidados, com todos bebendo água pensando ser vinho e então, como vimos em parágrafos anteriores, quem poderia dizer que eles não beberam mesmo vinho?

A despeito de qualquer doutrina religiosa, que nesse momento não é meu interesse, as minhas indagações são... Se um grupo de cem pessoas toma água pensando que é vinho, elas podem ser consideradas iludidas ou tapeadas. Porém, se todos os humanos do planeta tomam água pensando que é vinho, quem poderá contrariá-los? Como poderíamos dizer que não seria mesmo vinho que estaríamos tomando? O que é o vinho, aquilo que está na taça, ou o que foi processado pelo cérebro? As cem primeiras pessoas são tão loucas assim?

Sabe por qual motivo essas imprecisões acontecem? Porque não sabemos identificar e definir o que é o absoluto. Ou melhor, porque reconhecê-lo está sujeito às interpretações que podem ser traídas pela "máquina" em nós. E quem pode garantir que isso já não está acontecendo? Reitero, vinhos e cores são os menores dos meus problemas. Aliás, às vezes, vinho é a solução. Então, qual é o problema? Bem, que cada um encontre o seu.

Enfim, o que é a verdade? Cada vez mais tendo a concluir que a nossa realidade tão palpável, tão tangível, tão concreta é só um delírio, pois nós mesmos somos a ilusão. Para piorar, acredito que estejamos abrindo mão, novamente distraídos, das poucas boias que até aqui evitaram nosso afogamento.



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