terça-feira, 24 de novembro de 2020

Black Friday: Tudo pela Metade do Dobro do Preço

"Eu não sou louco por solidariedade com os milhares de nós que, para construir o possível, também sacrificaram a verdade que seria uma loucura."

Menino a bico de penaClarice Lispector

É muito difícil determinar a origem das primeiras atividades comerciais. Porém, analisando os modos de nossa civilização ao longo do tempo, talvez possamos inferir como foi que tudo aconteceu.

No princípio, as famílias dedicavam suas horas nas produções próprias. Mas não haveria mão de obra (horas, experiência etc) suficientes para produzir toda gama de produtos necessários à subsistência. Então, cada grupo se viu obrigado a trocar parte de sua produção pelo que lhe faltava. Por exemplo, uma família de agricultores poderia trocar parte de sua plantação de batatas por parte dos peixes de um pescador. Indo além, deve ter havido uma situação em que nosso produtor de batatas precisou de peixes, mas o pescador não precisava de batatas. Foi quando entrou na história o criador de galinhas. Quem sabe, o agricultor trocou alguns tubérculos por uma galinha e depois a penosa por alguns peixes?

Em algum momento e por alguma razão, as relações de troca começaram a ficar demasiadamente complexas, de modo que foi necessário criar um facilitador, um intermediador, uma moeda. Isso teria, inclusive, permitido romper com os limites da distância, da cultura e da bilateralidade das negociações. A moeda também teria um papel importante na padronização dos valores para um dado produto.

Pronto, surgiu o comércio muito semelhante à forma como o conhecemos hoje.

Desviando: É fato que, atualmente, o uso de valores em espécie está bem restrito. Os montantes são praticamente todos virtuais. Destacam-se os cartões de banco, de alimentação, de passagem de ônibus, ou mesmo dados nos celulares. Cada um de nós tem uma quantia armazenada em forma de dados magnéticos, seja em um chip, ou em um disco rígido de algum servidor bancário.

Pensando nisso, lembrei-me que, em 1859, ocorreu uma poderosa tempestade solar, ou tempestade geomagnética, que ficou conhecida como Evento Carrington. Naquela ocasião, além da magnifica exibição de luzes no céu noturno, os sistemas de telégrafo em toda a Europa e América do Norte foram danificados. Houve relatos de telegrafistas recebendo choques elétricos, de postes telegráficos soltando faíscas (além de incêndios) e desses mesmos sistemas continuarem enviando e recebendo mensagens com a alimentação elétrica desligada e sem ninguém os operando.

Em 1859, poucas coisas eram alimentadas por energia elétrica, por isso foram apenas os sistemas telegráficos que sofreram os maiores estragos. No entanto, se aquela mesma tempestade solar ocorresse hoje, caso você não tivesse dinheiro guardado em seu colchão, você se tornaria o mais novo pobretão da praça, já que quase todos os sistemas elétricos e magnéticos atuais entrariam em pane, incluindo caixas eletrônicos e os servidores dos bancos. Sem falar nos apagões, colapso nas telecomunicações e até perdas de satélites (talvez seja uma boa ideia manter um mapa e uma vela na sua gaveta).

Piadas à parte, nossa civilização vive sobre o "fio da navalha", considerando que é apenas uma questão de tempo para sermos atingidos por uma tempestade solar de proporções catastróficas. Por exemplo, a NASA publicou um estudo em 2014 informando que em 2012 não fomos atingidos por uma tempestade geomagnética como o Evento Carrington por um intervalo de apenas nove dias.

Voltando: Nos dias de hoje, nós não produzimos mais para nós mesmos, nem trocamos o excedente pelo escasso. Antes, ofertamos nossas horas de vida como meio produtivo para outras pessoas, empresas e investidores. Como pagamento, nós recebemos moeda, ou alguma quantia sabe-se lá em que tipo de registro. Então, na prática, quando usamos nosso "dinheiro" para comprar algo, estamos trocando nosso tempo pelo produto que precisamos, ou desejamos. Ah sim, caso alguém seja muito "pão duro", ele estará trocando as horas de vida para algum dia ter tempo livre.

O ponto é que, como não somos mais capazes de produzir nosso próprio sustento e sobreviver à base de trocas com outras famílias, é necessário que o comércio sobreviva por si mesmo. Uma vez que o produto final propriamente dito se concentrou nas mãos de poucos, comparativamente ao número de habitantes total no planeta, boa parte do que fazemos serve apenas para sustentar o próprio mercado. Se não fosse assim, não teríamos mais moedas e, principalmente, não haveria mais quem produzisse o que precisamos. Pense como é irônico uma pessoa trabalhar quarenta anos de sua vida em uma fábrica de pneus sem nunca ter tido um automóvel. Como eu disse, o comércio ganhou vida própria.

Quando o comércio ganha vida própria, ele passa a defender a sua perpetuação, assim como qualquer ser vivente. E sim, nós precisamos que seja assim, pois, se diferente, o castelo de cartas desmoronará. Extrapolando, se todas as cartas caírem, a população provavelmente se reduzirá a números equivalentes à de milênios atrás, quando havia somente alguns poucos milhões de seres humanos sobre a face da Terra, todos sobrevivendo à base do que produziam e do que trocavam.

E qual foi o primeiro desafio que o comércio precisou transpor? Bem, as necessidades básicas humanas sempre foram as mesmas (higiene e alimentação), mas o valor agregado da solução para essas carências primárias tornou-se muito baixo. Portanto, o montante gerado apenas com elas não era suficiente para sustentar a população mundial que crescia justamente porque essas soluções melhoraram em qualidade. A resposta do mercado foi criar novas necessidades, e com valor agregado maior, pois só assim teríamos condições de sustentar todos os humanos (se é que estamos sustentando a todos) e, ao mesmo tempo, oferecer a possibilidade, em certa medida, para qualquer um acumular riquezas.

Desviando: É ruim acumular riqueza? Acredito que sim. Mas até que ponto? Falo por mim... Se eu não tivesse certo montante acumulado, seja como for, provavelmente eu não gastaria meu "rico dinheirinho" em um automóvel. Então, aquela pessoa que trabalha na fábrica de pneus sem nunca ter tido um carro talvez não tivesse um emprego. Atente para o fato de que estou usando apenas um aspecto do automóvel nesse exemplo, os pneus.

Voltando: Acho que eu não vou conseguir explicar em que consistiu a criação de novas necessidades pelo mercado. Portanto, vou dar um exemplo simples para ilustrar. Os portugueses obtinham coisas valiosas dos nativos dando a eles itens desnecessários. Por exemplo, é muito provável que um nativo tenha dado a um português uma pedra de ouro em troca de um espelho ou de uma escova de cabelo. Pois é isso, foi exatamente assim que passamos a fazer comércio baseado na criação de novas necessidades. Só que nós somos os nativos.

Finalmente, qual foi, ou está sendo, o segundo desafio a ser superado? Nós estamos chegando no limite do valor agregado dos produtos. Estamos atingindo custos tão absurdos que as pessoas já não estão mais dispostas a pagar por algumas frivolidades. Assim, qual tem sido a nova ilusão criada? A palavra da vez é "experiências". Atualmente, o par de tênis não está mais na prateleira de uma loja, mas está em um vídeo, nos pés da pessoa que você admira, enquanto ela faz o que você gostaria de fazer, vivendo a vida que você sonha ter. A propaganda de aparelhos celulares das Casas Bahia não é mais suficiente, o que vende agora é o vídeo do Alok usando o novo modelo que acabou de receber de graça do fabricante. Hoje não nos vendem algo inútil tentando nos convencer de que precisamos dele. Não, hoje a promessa é que comprando os produtos deixaremos de ser os nativos e passaremos a ser os portugueses. Se eu não compro, eu não sou ninguém.

Você já olhou para si? Já prestou atenção pelo que você paga? Experimente fazer uma lista das suas compras mensais? Veja-a como um espelho. O que ela reflete? Alguém já disse que nós somos o que comemos. Outros disseram que podem nos definir comparando-nos com quem nos relacionamos. Se ninguém nunca disse antes, eu vou dizer, nós também somos aquilo pelo que pagamos, em todos os sentidos.

Eu poderia pensar, "ah, então está resolvido, vamos derrubar esse castelo de cartas; vamos colocar o sistema abaixo e acabar com essa cadeia de ilusões que nos aprisiona." Seria nobre de minha parte pensar assim. Porém, eu estaria disposto a abrir mão de minha existência por essa nova realidade? Algumas pessoas vão sofrer o impacto. Tudo bem enquanto não seja eu? É ético lutar por um valor moral elevado, mas que vai resultar em um mal a outras pessoas? Não seria mais nobre se eu oferecesse o meu refúgio enquanto o mundo desmorona, já que a ideia do peteleco nas cartas foi minha? Que preço eu me disponho a pagar e pelo quê? O que eu seria capaz de fazer em troca da verdade?

Quer saber o que penso? Eu não tenho a mínima ideia do que fazer para resolver esse dilema. Torço para que apareça alguém, algum dia, para fechar essa conta.