segunda-feira, 30 de agosto de 2021

Um deus Banguela

 "Na verdade continuo sob a mesma condição, distraindo a verdade, enganando o coração"

Antes que seja tarde – Pato Fu

Eu li um pouco sobre a história das próteses dentárias. Por volta de 1500 a.C., os egípcios usavam fios de ouro para amarrar os dentes que caíam àqueles que ainda eram saudáveis. Para isso, faziam furos nos dentes bons e também nas gengivas para passar o arame.

Por volta de 700 a.C., os latinos usavam dentes de animais para substituir a dentição humana. Nas Américas, os maias usavam pedras, conchas e também ossos no lugar dos dentes perdidos. Essa técnica era muito eficaz, pois, com o tempo, aqueles materiais se fundiam ao maxilar. Em meados do século XVI, os japoneses fabricavam dentaduras de madeira. No século XVIII, com o aumento do consumo de açúcar e tabaco, não é de se espantar que a necessidade por próteses dentárias também aumentasse. Naquela época, o francês Alexis Duchateau fez as primeiras dentaduras de porcelana, já que aquelas feitas de marfim apodreciam rapidamente. Em 1850, cresceu a produção de dentaduras em ebonite, um tipo de borracha endurecida, onde a porcelana era fixada. Em 1890, a celuloide foi o primeiro plástico industrial usado como base para as próteses. E finalmente, em 1940, a resina acrílica entrou em cena, tornando-se o principal material de construção das dentaduras desde então.

Atualmente, uma dentadura pode até ser considerada um item banal, mas isso para quem tem todos os dentes. A rica história deste objeto sugere o contrário. Aliás, dizem que um homem com sede, perdido em um deserto, seria capaz de pagar milhões por um copo d’água. E é justamente esse espírito que mostra quanto uma prótese dentária pode ser valiosa. Tão valiosa a ponto de, além de restaurar o sorriso e a mastigação das pessoas, também ser protagonista em casos de compras de votos. Aliás, incontáveis são os casos de trocas eleitorais pelos mais variados tipos de benefícios, desde a Proclamação da República, em 1889.

A compra de votos é crime: de acordo com o artigo "41-A" da Lei nº 9.504/1997 (Lei das Eleições); segundo a alínea "j" do artigo 1º da Lei Complementar nº 64/90 (Lei de Inelegibilidades); também conforme a Lei Complementar nº 135/2010 (Lei da Ficha Limpa); e, por fim, pelo artigo 299 da Lei nº 4.737/1965 (Código Eleitoral).

Nota-se que temos tentado ferrenhamente nos proteger da compra de votos. Entretanto, receio que não conhecemos bem o limite entre um voto vendido e outro não. Exemplifico...

Segundo o IBGE, o número de desempregados no primeiro trimestre de 2021 foi de 14,8 milhões de pessoas. Vamos imaginar que, em determinada eleição, um candidato propusesse medidas para reduzir o número de pessoas paradas praticamente a zero. Adicione à nossa hipótese que ele provasse "por A mais B" que isso é possível e que ele realmente obteria sucesso, uma vez eleito. Porém (sim, sempre o "porém"), vamos supor que ao aplicar seus métodos, eu tivesse que me tornar um dos poucos desempregados que ainda restariam e que essa situação permanecesse durante os quatro anos de mandato, obrigatoriamente. A pergunta que me faço é, "nesta condição, eu votaria nesse candidato?"

Nós votamos pelo bem geral ou por interesses individuais? Nós conseguimos identificar esse limite? Ao menos sabemos pelo que votamos? Nós temos um motivo próprio pelo qual votar, ou somos hipnotizados pelas notas doces do Flautista de Hamelin? Se encontrarmos a nossa razão, conseguimos determinar se ela é mesmo mais nobre do que a necessidade por uma dentadura? O deserto de quem é mais seco? Aliás, que "sede" é essa que, de tão instintivamente entranhada, nos faz crer que nos sujeitamos ao flautista por escolha? É como um cego que, de tão cego, acredita que vê, ou nem percebe que não enxerga.

Isso me fez lembrar de uma frase de Orson Scott Card: "se os porcos pudessem votar, o homem com o balde de comida seria eleito sempre, não importa quantos porcos ele já tenha abatido no recinto ao lado."

Desviando: A lenda do Flautista de Hamelin diz que a cidade de Hamelin estava infestada de ratos. Os moradores da cidade contrataram um flautista capaz de hipnotizar os roedores e lhe prometeram uma moeda para cada cabeça dos animais. O flautista hipnotizou todos os ratos, afogando-os no Rio Weser. Como nenhuma cabeça fora evidenciada, os cidadãos não pagaram o flautista, que retornou à cidade, hipnotizou todas as crianças durante um culto religioso e as aprisionou em uma caverna. Na cidade, restaram apenas os fartos habitantes, com seus celeiros e despensas abarrotados, protegidos por fortes muralhas e sob uma névoa de silêncio e tristeza.

Voltando: Neste momento, tentando responder a todas estas questões para mim mesmo (sem sucesso), consigo concluir apenas uma coisa, olhando para o resultado de todas eleições das quais participei, entre mim e o banguela, somente ele não tem sido enganado, ou melhor, pelo menos ele tem recebido a promessa que lhe fora feita em troca do voto.

Sendo repetitivo, já falei aqui e aqui que sim, a Democracia é o melhor sistema que desenvolvemos até hoje. Ora, o que eu ainda não citei e não entendo é, "por que fizemos dela um deus?"