quinta-feira, 4 de junho de 2015

Penso, Logo Existo? Escolho, Logo Acordo

"Se todos somos iguais, a quem amamos?" William Shakespeare

O Argumento do Sonho de Descartes é a evidência preliminar de que os sentidos que usamos para distinguir realidade da ilusão não são plenamente confiáveis. Em outras palavras, em nossa mente, a interpretação dos estímulos sensoriais se dá no mesmo nível em que ocorre os sonhos. Logo, a realidade pode ser tão tangível quanto é a ilusão do sonho.

"(...) Quantas vezes me ocorreu de sonhar, à noite, que eu estava neste lugar, que eu estava vestido, que eu estava perto do fogo, ainda que eu estivesse inteiramente nu em meu leito? Parece-me bem agora que não é com olhos adormecidos que eu observo este papel, que esta cabeça que eu movo não está dormente, e que é com desígnio e propósito deliberado que eu estendo esta mão, e que a sinto. O que me ocorre no sonho não me parece absolutamente tão claro nem tão distinto quanto isso. Mas, pensando nisso cuidadosamente, eu me relembro de ter sido enganado, quando dormia, por semelhantes ilusões. E, detendo-me neste pensamento, eu vejo tão manifestadamente que não há quaisquer indícios conclusivos, nem marcas suficientemente certas pelas quais eu possa distinguir nitidamente a vigília do sonho, que fico inteiramente pasmo; e minha estupefação é tanta que sou quase capaz de me persuadir que durmo (...)"
Descartes, Meditação I

Na filosofia oriental, um "sábio" sonhou que era uma borboleta voando livremente. Depois de acordar, ele questionou se poderia definir se era um "sábio" que teria acabado de sonhar que era uma borboleta, ou se era uma borboleta que teria começado a sonhar que era um "sábio".

Foi criando uma linha de raciocínio sobre essa assunto que Descartes chegou na famosa expressão "penso, logo existo". Foi como concluir que a separação entre realidade e ilusão é o estado de consciência, é poder concluir, por observação, de que um elefante não pode voar, por exemplo. O momento que vivemos e nos permite racionalizar os fatos é o que nos trás para o plano da realidade, já que na ilusão pouco importa se um elefante está voando ou não. Vale lembrar que, mesmo com essa conclusão, Descartes não descartou definitivamente a possibilidade da dúvida.

Muito bem, então é a consciência que separa ilusão de realidade? Não sei. Vamos pensar em um ser irracional, ou sem consciência. Um cachorro por exemplo. Imagine que ele sonhe que seu dono está correndo atrás dele, violento, querendo atacá-lo, colocando sua vida em risco. Então ele toma a decisão de se defender, literamente com unhas e dentes. E finalmente, no momento do ataque, da abocanhada, ele acorda repentinamente, assustado, desorientado e sente seu dono acariciando seu pelo. Por que ele não atacaria seu dono? Como ele sabe que a experiência que ele acabou de viver não era realidade e que portanto não está correndo riscos? Por que ele se tranquiliza? Como, a partir de então, ele separa a ilusão de uma lembrança e continua sendo o mesmo cão costumeiramente dócil? Só consigo pensar em duas opções, ou o cachorro tem mais consciência e racionalidade do que nós imaginamos, ou nós somos mais irracionais e instintivos do que imaginamos.

As formigas criam caminhos subterrâneos, o João-de-barro constrói sua casa nas árvores com barro, os pássaros constroem ninhos com galhos, os gorilas montam suas camas com folhas. Por que deveríamos acreditar que somos menos selvagens do que as outras espécies? Que nossas ações, decisões e planejamentos tem mais a ver com razão e consciência do que com instintos? Só porque nossas construções seguem padrões geométricos e porque usamos cimento ao invés de barro, metal ao invés de madeira, tecido ao invés de vegetação?

Os conceitos sempre foram os mesmos, só mudaram as palavras. A luta contra a fome se tornou busca pelo bem estar, um lugar para se proteger de predadores virou sonho da casa própria, a perpetuação da espécie se transformou em necessidade por planos de saúde, a sobrevivência do mais forte se tornou sucesso profissional, as penas mais belas e mais bem cuidadas, que representam machos com força e energia suficiente para dar herdeiros cheios de vitalidade e com mais probabilidade de perpetuar o DNA (pavão), foram resumidas a marca do carro.

Eu tenho para mim que o que nos separa das outras espécies não é o poder de separar ilusão de realidade, mas é o poder de criar ilusão, de dar nome as coisas e achar que estamos evoluindo, ou de que somos diferentes. Tem algum ser nesse planeta que cria mais ilusão do que os humanos? Dinheiro, posses, regras de comportamento, prazeres, medos, ciência, religião. Consciência?

Freud acreditava que a consciência era a responsável pela separação entre fantasia e realidade, mas eu tenho dúvidas, talvez a consciência não seja mais do que apenas uma ilusão coletiva.

Um baita de um desvio: E já que citamos ciência e religião, elas são duas faces da mesma moeda. Uma não consegue provar que Deus não existe e a outra não consegue provar que Ele existe, por um simples motivo, ambas são ilusões criadas pelo homem. Elas nem mesmo conseguem definir o conceito do que seria Deus. O que é Deus?

A ciência diz que o Universo tem aproximadamente 13,5 bilhões de anos, a religião diz que tudo foi criado a no máximo seis mil anos, mas Deus tenta nos avisar de que deveríamos levar mais em consideração o fato de que vamos morrer. A ciência sugere que o inicio de tudo foi com o Big-Bang, a religião diz que a Terra é o centro do Universo, mas Deus tenta abrir nossos olhos para o fato de que deveríamos nos preocupar menos com nosso próprio "umbigo".

Duas formas de exercer poder. A primeira, a ditadura da matemática, afinal de contas que democracia há em acreditar em tudo que se pode provar? Ou você sabe, ou é ignorante. Hoje não é assim? Existe a massa intelectual que governa e a massa ignorante que é governada. Poderíamos dizer que todos tem direito ao conhecimento e podem mudar o seu destino. Utopia? Acreditamos mesmo que todos tem essa chance? Ou melhor, damos essa chance a todos? Já a outra, uma ditadura moral. Representantes de um ser inefável governam e os servos obedecem, ou se rebelam. Como romper a hierarquia moral, que não depende do homem e do que ele possa fazer, mas depende exclusivamente de um fator externo, de uma nomeação divina? Quem pode contra? Mas não nos enganemos, a ciência não é o problema, tampouco Deus, o problema é o homem que corrompe os conceitos, que cria as ilusões.

Para mim, o verdadeiro Deus fica "escondido", permitindo que existam tantas provas de que Ele existe quanto há provas de que não existe, permitindo que tenhamos o direito a escolha, talvez apenas torcendo para que decidamos pela melhor opção. Que opção?

Ufa, voltando: Nós de fato estamos sonhando, presos a nossos instintos e procurando por palavras para nos convencermos de que estamos acordados. Acreditamos que em algum momento no passado escolhemos mudar tudo, evoluir. Acreditamos que o homem da caverna ficou no passado. Mas hoje, a caverna tem sofás confortáveis, as estrelas são comandadas ao toque de um controle remoto, os peixes são pescados congelados, lançamos a lança no passar do cartão de crédito, a fogueira foi substituída pelo ar-condicionado, o cajado deu lugar a caixa de bombons.


O que é realidade? E o que é ilusão? Sentimento é diferente de comportamento. Instinto é diferente de verdade. Amar não tem relação nenhuma com laços emocionais (já falei algo sobre isso aqui). A realidade não vem de fora, no que se pode tocar, ouvir, ver ou sentir. Ela não está na explicação que se pode dar sobre os confins do universo, nem está na autoridade de uma pessoa com discurso eloquente no alto de um tablado. Acordar vem de dentro, de toda transformação que acontece quando escolhemos ver o nosso rosto na face da pessoa que fala conosco, mesmo que isso custe ferir a superfície, e custa.

PS.: Um dia, apareceu alguém que falou muito sobre isso. Ou ele foi a pessoa mais louca que já existiu, ou ele era o único que estava acordado.

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