"Se todos somos iguais, a quem amamos?" William Shakespeare
O Argumento do Sonho de Descartes é a evidência preliminar de que os sentidos que usamos
para distinguir realidade da ilusão não são plenamente confiáveis. Em outras
palavras, em nossa mente, a interpretação dos estímulos sensoriais se dá no
mesmo nível em que ocorre os sonhos. Logo, a realidade pode ser tão tangível
quanto é a ilusão do sonho.
"(...) Quantas vezes me
ocorreu de sonhar, à noite, que eu estava neste lugar, que eu estava vestido,
que eu estava perto do fogo, ainda que eu estivesse inteiramente nu em meu
leito? Parece-me bem agora que não é com olhos adormecidos que eu observo este
papel, que esta cabeça que eu movo não está dormente, e que é com desígnio e
propósito deliberado que eu estendo esta mão, e que a sinto. O que me ocorre no
sonho não me parece absolutamente tão claro nem tão distinto quanto isso. Mas,
pensando nisso cuidadosamente, eu me relembro de ter sido enganado, quando
dormia, por semelhantes ilusões. E, detendo-me neste pensamento, eu vejo tão
manifestadamente que não há quaisquer indícios conclusivos, nem marcas
suficientemente certas pelas quais eu possa distinguir nitidamente a vigília do
sonho, que fico inteiramente pasmo; e minha estupefação é tanta que sou quase capaz
de me persuadir que durmo (...)"
Descartes, Meditação
I
Na filosofia oriental, um "sábio" sonhou que era uma borboleta voando
livremente. Depois de acordar, ele questionou se poderia definir se era um "sábio" que teria acabado de sonhar que era uma borboleta, ou se era uma borboleta que
teria começado a sonhar que era um "sábio".
Foi criando uma linha de raciocínio sobre essa assunto que Descartes
chegou na famosa expressão "penso, logo existo". Foi como concluir que a
separação entre realidade e ilusão é o estado de consciência, é poder concluir,
por observação, de que um elefante não pode voar, por exemplo. O momento que
vivemos e nos permite racionalizar os fatos é o que nos trás para o plano da
realidade, já que na ilusão pouco importa se um elefante está voando ou não.
Vale lembrar que, mesmo com essa conclusão, Descartes não descartou definitivamente
a possibilidade da dúvida.
Muito bem, então é a
consciência que separa ilusão de realidade? Não sei. Vamos pensar em um ser
irracional, ou sem consciência. Um cachorro por exemplo. Imagine que ele sonhe
que seu dono está correndo atrás dele, violento, querendo atacá-lo, colocando
sua vida em risco. Então ele toma a decisão de se defender, literamente com
unhas e dentes. E finalmente, no momento do ataque, da abocanhada, ele acorda repentinamente,
assustado, desorientado e sente seu dono acariciando seu pelo. Por que ele não
atacaria seu dono? Como ele sabe que a experiência que ele acabou de viver não
era realidade e que portanto não está correndo riscos? Por que ele se
tranquiliza? Como, a partir de então, ele separa a ilusão de uma lembrança e
continua sendo o mesmo cão costumeiramente dócil? Só consigo pensar em duas
opções, ou o cachorro tem mais consciência e racionalidade do que nós
imaginamos, ou nós somos mais irracionais e instintivos do que imaginamos.
As formigas criam
caminhos subterrâneos, o João-de-barro
constrói sua casa nas árvores com barro, os pássaros constroem ninhos com galhos,
os gorilas montam suas camas com folhas. Por que deveríamos acreditar que somos
menos selvagens do que as outras espécies? Que nossas ações, decisões e
planejamentos tem mais a ver com razão e consciência do que com instintos? Só
porque nossas construções seguem padrões geométricos e porque usamos cimento ao
invés de barro, metal ao invés de madeira, tecido ao invés de vegetação?
Os conceitos sempre foram os
mesmos, só mudaram as palavras. A luta contra a fome se tornou busca pelo bem
estar, um lugar para se proteger de predadores virou sonho da casa própria, a perpetuação
da espécie se transformou em necessidade por planos de saúde, a sobrevivência
do mais forte se tornou sucesso profissional, as penas mais belas e mais bem cuidadas,
que representam machos com força e energia suficiente para dar herdeiros cheios
de vitalidade e com mais probabilidade de perpetuar o DNA (pavão), foram resumidas a
marca do carro.
Eu tenho para mim que
o que nos separa das outras espécies não é o poder de separar ilusão de
realidade, mas é o poder de criar ilusão, de dar nome as coisas e achar que
estamos evoluindo, ou de que somos diferentes. Tem algum ser nesse planeta que
cria mais ilusão do que os humanos? Dinheiro, posses, regras de comportamento,
prazeres, medos, ciência, religião. Consciência?
Freud acreditava que a
consciência era a responsável pela separação entre fantasia e realidade, mas eu
tenho dúvidas, talvez a consciência não seja mais do que apenas uma ilusão
coletiva.
Um baita de um desvio: E já
que citamos ciência e religião, elas são duas faces da mesma moeda. Uma não
consegue provar que Deus não existe e a outra não consegue provar que Ele
existe, por um simples motivo, ambas são ilusões criadas pelo homem. Elas nem
mesmo conseguem definir o conceito do que seria Deus. O que é Deus?
A ciência diz que o Universo tem aproximadamente
13,5 bilhões de anos, a religião diz que tudo foi criado a no máximo seis mil
anos, mas Deus tenta nos avisar de que deveríamos levar mais em consideração o
fato de que vamos morrer. A ciência sugere que o inicio de tudo foi com o
Big-Bang, a religião diz que a Terra é o centro do Universo, mas Deus tenta
abrir nossos olhos para o fato de que deveríamos nos preocupar menos com nosso
próprio "umbigo".
Duas formas de exercer
poder. A primeira, a ditadura da matemática, afinal de contas que democracia há
em acreditar em tudo que se pode provar? Ou você sabe, ou é ignorante. Hoje não
é assim? Existe a massa intelectual que governa e a massa ignorante que é
governada. Poderíamos dizer que todos tem direito ao conhecimento e podem mudar
o seu destino. Utopia? Acreditamos mesmo que todos tem essa chance? Ou melhor,
damos essa chance a todos? Já a outra, uma ditadura moral. Representantes de um
ser inefável governam e os servos obedecem, ou se rebelam. Como romper a
hierarquia moral, que não depende do homem e do que ele possa fazer, mas
depende exclusivamente de um fator externo, de uma nomeação divina? Quem pode
contra? Mas não nos enganemos, a ciência não é o problema, tampouco Deus, o
problema é o homem que corrompe os conceitos, que cria as ilusões.
Para mim, o verdadeiro Deus
fica "escondido", permitindo que existam tantas provas de que Ele existe quanto
há provas de que não existe, permitindo que tenhamos o direito a escolha, talvez
apenas torcendo para que decidamos pela melhor opção. Que opção?
Ufa, voltando: Nós de
fato estamos sonhando, presos a nossos instintos e procurando por palavras para
nos convencermos de que estamos acordados. Acreditamos que em algum momento no
passado escolhemos mudar tudo, evoluir. Acreditamos que o homem da caverna
ficou no passado. Mas hoje, a caverna tem sofás confortáveis, as estrelas são comandadas
ao toque de um controle remoto, os peixes são pescados congelados, lançamos a
lança no passar do cartão de crédito, a fogueira foi substituída pelo
ar-condicionado, o cajado deu lugar a caixa de bombons.
O que é realidade? E o que é
ilusão? Sentimento é diferente de comportamento. Instinto é diferente de
verdade. Amar não tem relação nenhuma com laços emocionais (já falei algo sobre
isso aqui).
A realidade não vem de fora, no que se pode tocar, ouvir, ver ou sentir. Ela não
está na explicação que se pode dar sobre os confins do universo, nem está na
autoridade de uma pessoa com discurso eloquente no alto de um tablado. Acordar
vem de dentro, de toda transformação que acontece quando escolhemos ver o nosso
rosto na face da pessoa que fala conosco, mesmo que isso custe ferir a
superfície, e custa.
PS.: Um dia, apareceu
alguém que falou muito sobre isso. Ou ele foi a pessoa mais louca que já
existiu, ou ele era o único que estava acordado.
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