quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

Um Sonho de Liberdade

"Amigo é aquele que a gente seja, sem precisar de saber por quê é que é."

Às vezes, eu vejo na TV Cultura o programa Café Filosófico. Uma das edições foi conduzida pelo historiador Leandro Karnal, e o assunto foi "O medo à liberdade: dos ditadores à auto ajuda". Ele discorreu sobre o trabalho do filósofo francês Étienne De La  Boétie, intitulado "Discurso sobre a servidão voluntária". O filósofo, em sua publicação, tentou entender porque a submissão é tão sedutora, mas, diferente da maioria, fez uma análise avaliando os tiranizados ao invés dos tiranos.

É de se admirar que um garoto de apenas 18 anos, no século XVI, tenha tentado entender as medidas de dor e de prazer que podem haver na submissão. Por exemplo, como colocou Karnal durante a palestra: a feminista Betty Friedan citou no livro "A Mística Feminina", "o lar é um campo de concentração confortável"; Étienne provavelmente perguntaria, "mas se é confortável, quem o decorou?"

Segundo Étienne, "um tirano pode estar em um sistema político, mas também em uma droga, uma tradição, um hábito, um modismo, um guru". Dessa maneira, por que as pessoas sempre se prendem a algo? Por que sempre obedecem? Por que abrem mão da capacidade de decidir? Por que precisam que seja dito o que devem ser? A quem se entregam depois de conquistar a liberdade?

Em determinado ponto do programa, Karnal disse: "Aquele que perde a liberdade ganha a servidão. A servidão é mais confortável do que a liberdade". Já citei aqui o caso dos hebreus que, ao tornarem-se livres, e portanto responsáveis por si mesmos, reclamaram das dificuldades encontradas durante a liberdade, à ponto de desejarem nunca terem deixado a escravidão no Egito. Karnal disse ainda: "Ser livre nos torna responsáveis diante da escolha. Ser livre representa angústia. Curiosamente, a liberdade profunda, que não existia até há pouco tempo – escolha de profissão, de casamento, de estado civil e até de gênero sexual –, essa escolha que não existia de forma tranquila, não nos tornou brutalmente felizes". Eu não sei você, mas, de fato, eu sempre tive certa dificuldade em preparar meus pratos em restaurantes do tipo self-service.

Étienne trata ainda, em seu trabalho, de algumas estratégias do tirano: "Trair o pássaro com um apito, ou o peixe com a isca do anzol é mais difícil que atrair o povo para a servidão, pois basta passar-lhe junto a boca um engôdo insignificante. O teatro, os jogos, as farsas, os espetáculos, as feras exóticas, as medalhas, os quadros e outras bugigangas eram para os povos antigos engôdos da servidão, preço da liberdade, instrumentos da tirania."

No caminho das estratégias de controle, Karnal tentou estabelecer as diferenças entre a imposição e o voluntariado. Ele usou um exemplo: "Celulares. Nossa vida exposta ao mundo. Nossas coleiras eletrônicas. Somos localizados onde estivermos. Fornecemos as informações alegremente. Hitler dirigiu uma ditadura bárbara com o auxílio da Gestapo. Hoje, uma central de celulares tem mais informações sobre o cidadão do que a Gestapo jamais sonhou. Na democracia atual há mais controle do que na ditadura, mas há mais liberdade. Somos um exemplo jamais sonhado por Étienne de servidão voluntária. Construímos nessa época de liberdade a gaiola mais dourada que o ser humano já criou. As gaiolas durante as ditaduras eram feitas de chumbo. A nossa gaiola é brilhante, decorada com o que há de mais moderno. A gaiola que Étienne denunciou poderia ser derrubada, a nossa eu creio que não, pois é gostoso morar nessa gaiola. Outro aspecto da servidão, que Étienne não tratou: nosso amor a gurus. Por que queremos que alguém nos diga o que fazer, o que comer, o que ler e o que pensar? Por que há programas de como se vestir, como cozinhar e como cantar? Por que eu quero tanto que me digam o que eu devo ser? O sucesso da autoajuda não é apenas dizer coisas doces, mas é dizer o que eu quero ouvir. O que se coloca no lugar da liberdade? O problema não é derrubar a ditadura, não é sair da casa dos pais, não é romper com o marido opressor, não é deixar um emprego com chefe autoritário. O problema é, o que eu coloco neste lugar?"

Citando Marcel Conche, "o tirano tiraniza graças a uma cascata de tirania". Karnal acrescenta: "Quem humilha, também foi humilhado. Quem controla, foi controlado e se vinga controlando mais. Assim o tirano vai do topo a base da pirâmide, sendo respeitado voluntariamente por pequenos tiranos que se produzem na sala de aula, no trânsito, nos condomínios e nas famílias."

Para encontrar a alternativa a uma vida de tirania, uma vida de controle, é necessário entender algumas pistas deixadas por Étienne. Ele diz que quando os maus se reúnem, há uma conspiração, mas não uma sociedade. Como a amizade floresce na igualdade, o tirano não pode possuir amigos, pois coloca-se acima de todos. O preço da tirania é o isolamento. Assim, a opção para escapar de controles é a única relação humana onde o controle não pode existir, onde a isonomia é muito grande: a relação de amizade.

Finalmente, a frase de Michel de Montaigne, em homenagem póstuma a seu amigo Étienne: "E se me esforçarem a dizer por que eu o amava, sinto que isso não possa ser expresso. Apenas, eu responderia, porque era ele, porque era eu."

Karnal concluiu sua palestra dizendo: "Meu amigo é diferente e é igual, porque é ele. Meu amigo me permite que eu seja eu mesmo. O amigo faz que eu seja mais eu. O tirano faz que eu seja menos eu. O amigo se dirige a mim sendo ele. Eu me dirijo ao tirano sendo súdito." Ele ainda extrapola o conceito: "Parem de seguir gurus de moda, de culinária, de comportamento, de expressão. Parem de seguir gurus que ditam coisas. Parem de querer que te digam o que ou quem você deveria ser. Libertem-se da servidão voluntária."

Desviando: Às vezes, você passa uma vida inteira ouvindo algumas frases e justamente porque as escutou tantas vezes, repetidamente, você acha que entendeu o que elas significam. Após assistir a palestra de Leandro Karnal, se Étienne De La Boétie e Michel de Montaigne tiverem razão em seus conceitos, eu passo a compreender de fato, em toda a sua complexidade, a seguinte mensagem, proferida dezesseis séculos antes de Étienne:

"Já não os chamo servos, (...) em vez disso, eu os tenho chamados amigos (...)"