quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

Uma Árvore se Conhece pelos Frutos

"Nenhuma árvore boa dá fruto ruim, nenhuma árvore ruim dá fruto bom. Toda árvore é reconhecida por seus frutos. Ninguém colhe figos de espinheiros, nem uvas de ervas daninhas." 

Jesus Cristo

A nanotecnologia é a ciência que estuda processos em escala molecular. Vamos pensar em um exemplo desmedido apenas para facilitar a compreensão. Sabemos que um lápis é essencialmente composto por grafite e celulose. Então, imagine uma fábrica muito pequena, com ferramentas invisíveis à olho nu e capazes de conectar moléculas orgânicas uma a uma, como peças de LEGO. Após certo tempo de processo, o lápis assumirá um tamanho suficientemente grande, podendo ser reconhecido. E depois de mais alguma espera, o teremos pronto à nossa disposição. Para nós, como não somos capazes de ver as ferramentas e a matéria-prima, parecerá que o lápis se materializou lentamente diante de nossos olhos.

Ainda não se obteve vantagem em produções macroscópicas – como um lápis – utilizando processos nano tecnológicos. Os resultados obtidos até então são também em escala molecular. Por exemplo, já é possível produzir princípios ativos medicamentosos com maior grau de pureza, e construir dispositivos eletrônicos mais rápidos para serem usados em computadores.

Mas há algum processo nano tecnológico capaz de obter resultados macroscópicos? Sim, a vida. Por exemplo, uma árvore é uma fábrica molecular muito complexa. Átomos e moléculas são rearranjados no interior de uma semente recém plantada, produzindo e reproduzindo pequenas partes pacientemente. Ao longo dos anos, um caule é construído, líquidos e nutrientes fluem das raízes às folhas, gás carbônico é consumido enquanto oxigênio é produzido (e vice-versa), luz é absorvida, flores brotam e pássaros se aninham nos galhos. Durante esse ciclo, com a ajuda de insetos, chaves moleculares especificas são unidas, originando novas sementes. Isso dispara nano processos adicionais que ligam moléculas de mais compostos orgânicos, formando açucares e outras substâncias, materializando uma capa protetora ao redor do gérmen. Uma maçã, por exemplo. Estas são colhidas, digeridas e as sementes são depositadas em terras distantes. Um novo ciclo se inicia sem que o ciclo anterior tenha sido encerrado. É uma fábrica capaz de produzir novas fábricas. Agora, duas árvores vão continuar trabalhando juntas, a todo vapor. Todos os processos imperceptivelmente microscópicos, alheios ao tempo, mas com um resultado macroscópico. E só discorremos sobre árvores.

Desviando: Já falei aqui que se Alice tivesse nascido no País das Maravilhas, ela não se admiraria dele. E se descobríssemos um planeta onde árvores dão balas de goma? Por que deveríamos nos surpreender, uma vez que o processo envolvido na construção de balas de gomas, molecularmente falando, assemelhar-se-ia àquele para produzir cachos de uvas? Mais do que aquilo que a árvore oferece, maravilhoso é o método que ela usa para ofertá-lo. Portanto, deslumbrar-se com uma planta que dá jujubas deveria ser o mesmo que maravilhar-se com uma que dá tomates. Vou além, deveríamos ficar mais fascinados ainda com nossas árvores, pois os frutos fazem bem para a saúde, mas jujubas não. De qualquer maneira, ou ficamos espantados com as duas, ou com nenhuma. Sim, infelizmente nascemos aqui e tudo ficou muito trivial.

Voltando: Existem vários tipos de árvores frutíferas e, como diz a citação inicial, cada uma delas se conhece pelo fruto. É interessante pensar na implicação disso. Significa que a maçã ganhou o nome primeiro e somente depois a árvore foi chamada de macieira. E como aquela ideia é uma analogia, me perguntei, que tipo de árvore nossa geração tem sido?

Desviando: Seríamos capazes de dizer que uma pessoa esclarecida teve a ajuda da matemática, para enxergar o mundo de uma forma mais lógica, e da língua portuguesa, para ensiná-la a organizar as ideias e expressá-las? Ou diríamos que porque essa pessoa foi ensinada a se relacionar com terceiros, regras, deveres e meio ambiente, então ela teve bons resultados em matemática e em português? Uma pessoa é o resultado sociocultural de uma época, ou o resultado de uma política pública para educação?

Voltando: Para compor meu raciocínio, comecei pensando em uma criança de seis ou sete anos de idade. Tentei listar, mentalmente, as estruturas que ela tem completas e as que não tem. Como ela deve ver o mundo? O que ela entende quando observa o relacionamento entre adultos, ou a forma como se manifestam? Como absorve a realidade? O que descarta e o que reproduz? Por exemplo, o que aprenderia uma criança cujo pai reiterasse a bronca do professor? E o que ela assimilaria se o pai, na presença dela, a defendesse da mesma reprimenda? Nos dois casos, o que se esculpiria em termos de comportamentos, regras, deveres, autoridade, querer e poder?

Então, comparei dois momentos. Que tipo de acessos as crianças têm hoje e que eu não tive em minha época? Ou que elas não têm, mas eu tive? Não vou fazer afirmações, mas vou indagar para incentivar a opinião própria. O erotismo (eufemismo) está mais acessível? As músicas estão menos inocentes, têm menos conteúdo? A defesa aos direitos está superabundante? Os deveres têm sido submetidos à felicidade? Os relacionamentos estão mais instáveis, menos seguros? Ainda há ociosidade criativa – a criança cria algo em razão do aborrecimento de não ter o que fazer? A prática dos relacionamentos interpessoais está real ou virtual? O que nós estamos plantando? Que geração brotará da nossa?

Está certo, darei minha opinião. É difícil chegarmos a uma classificação sóbria quanto a melhor ou pior. Diferenças entre gerações existem, mas a definição de bom ou ruim passa pela especificação do resultado desejado. Entretanto, suponhamos que quiséssemos concluir tendenciosamente que a próxima geração será pior que a nossa, ainda assim estaríamos equivocados no seguinte sentido, esquecemos que é a árvore que se conhece pelos frutos.

Mudemos o assunto "de pato para ganso". Agora pensaremos sobre aborto, mas não o interpretaremos sob o seguinte aspecto, "que tipo de sociedade vai ser construída a partir dele?". Antes o avaliaremos de acordo com outra visão, "que tipo de sociedade o frutificou?".

Talvez o aborto seja um mal necessário – bem como a pena de morte. Porém, não podemos nos esquecer de que somos sempre os culpados. Não dá para comemorar o aborto. Nós abortamos porque estupramos, violentamos, somos pedófilos, promíscuos, egoístas e individualistas – nesse caso eu me incluo; nunca abortei, mas escolhi não ter filhos. Nós abortamos porque não queremos "trocar" nossas vidas pela chance à vida de uma pessoa com necessidades especiais, porque não há ninguém que nos apoie emocional, moral e financeiramente, porque nos deixam sozinhos e sem condição para seguir em frente com um bebê. Nós abortamos porque nossa "moral" e status social condenam jovens solteiros que engravidam, ou porque estimulamos os impulsos deles a enésima potência, ou não os ajudamos a controlá-los, no momento hormonal mais crítico deles. Abortamos porque não conseguimos resolver nenhum dos problemas anteriores ao aborto. Nós erramos antes, durante e depois.

Reitero, talvez o aborto seja necessário. Necessário, mas ainda um mal. Não dá para fazer um carnaval, bater palmas, pintar a cara, soltar rojões e lotar uma praça pública em meio a uma pandemia mundial, festejando a conquista pelo direito ao aborto. Essa "vitória" tem que ser chorada amargamente, com luto, como uma mãe que decidiu racionalmente que o melhor desfecho para a sociedade é destinar seu filho criminoso à cadeira elétrica. Porém, ela chora copiosamente, com o peito carregado de dor, se perguntando, "onde foi que eu errei?", "porque saio impune?". Você já chorou algum dia como se o coração fosse sair do peito, por uma pessoa que se foi, pela qual você deveria ter feito algo para que ela não fosse?

Nós já não nos preocupamos mais que tipo de árvore temos sido, pois decidimos que bastará descartar os frutos "ruins" dentre os "bons". Já escolhemos quem nasce e, dos nascidos e amadurecidos, quem vive. E para ficar em paz, dizemos que virou lei.

Desviando: Durante o nazismo era lei entregar e matar judeus. Talvez por isso dormiam em paz. Uma lei é mesmo capaz de fazer milagres psicológicos como nenhum psicanalista é capaz de fazer.

Voltando: Nós falhamos e não tenho esperança alguma que vamos nos endireitar um dia. A história mostra que nunca sequer nos inclinamos à correção. Alguém vai reparar por nós. Dê o nome que desejar, acaso, natureza, universo, Deus. Seja lá quem você acredite que tenha dado origem à vida, já mostrou ao longo da história que possui suas formas de se livrar da morte. A má notícia para nós é que, nesse jogo, escolhemos ser a morte. Temo, com um sorriso cínico que teima em querer escapar, que essa árvore será cortada pela raiz.



4 comentários:

  1. Que incrível é tirar férias e maratonar os textos inteligentes do Sandrini! Obrigado por continuar a escrever Sandrini, seus textos são muitas vezes melhor dos que eu leio na Super interessante. Talvez vc deva trabalhar para eles :). Sandriniiiii, faz um podcast no Spotify, seria um luxo te ouvir no caminho do trabalhoooo! Abraços!!

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    1. Olá Luciano. Muito bom receber um comentário seu. Obrigado. Hahaha, quem sabe eu devesse escrever para eles mesmo (gostei dessa). De fato, estou pensando sobre esse assunto de podcast. Um luxo é ter alguém que lê o que escrevo. Aproveite as férias... Grande abraço.

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  2. Um prazer é ler o que você escreve.

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