sábado, 20 de fevereiro de 2016

Onde Eu Vim Parar?

"Há uma exuberância na bondade que parece ser maldade."
Friedrich Nietzsche


O livre mercado é um princípio capitalista e refere-se a livre concorrência, oferta e procura dentro de um mercado comum. Resumindo, com o objetivo de adquirir clientela e consequentemente alavancar seus negócios, uma empresa se vê obrigada a oferecer produtos de melhor qualidade e a preços mais atrativos do que seu concorrente. Esse sistema, que privilegia os consumidores ao possibilitar que escolham as melhores ofertas, é contrário ao mercantilismo praticado no século XVI, por exemplo, período em que o monopólio dominava a economia. No livre mercado o consumidor "dita as regras", enquanto no monopólio quem possui mais recursos é quem "dá as cartas".

Oficialmente, no Brasil, vive-se os princípios do livre mercado, assim como na maioria dos países capitalistas ocidentais. Mais ou menos...

Durante o Carnaval de 2016, eu vi uma reportagem na TV informando que vendedores ambulantes, de um dos principais circuitos do Carnaval de Salvador, se "revoltaram", pois estavam proibidos de vender nas ruas uma marca de cerveja diferente da marca patrocinadora do Carnaval. Isso parece-me mais com a lei da selva (ops... mercantilismo) do que com a lei do livre mercado. Conquista mais aquele que pode mais, mas não necessariamente aquele que tem o melhor preço e a melhor qualidade. E o cliente? Não tem alternativa de preço, sem falar de gosto.

Outro exemplo? Você já esteve em um restaurante e pediu o refrigerante X para beber, ao que o atendente te respondeu, "desculpe senhor, aqui só trabalhamos com a marca Y"? Neste caso, a marca Y é exclusiva no restaurante porque todos os clientes preferem-na, ou porque ela tem recursos suficientes para bancar a exclusividade? Se fosse pelo primeiro caso, poderíamos dizer que a qualidade e o preço do produto é indiscutivelmente mais atraente (ponto para os consumidores). Porém, como sabemos, a razão é a segunda opção, por isso é natural que paguemos preços absurdos por algo que talvez não quiséssemos consumir. Um viva ao pseudo livre mercado.

Desviando: Eu tenho um ótimo negócio para você. Eu vou até a sua casa, te ensino a preparar o seu quintal para o plantio e depois a como cuidar de uma horta. Então, te ensino a comercializar o que plantou e você, do alto de sua infinita gratidão por todo o bem que estou fazendo ao lhe ensinar um oficio, enviará o dinheiro que conseguir aqui para minha casa. Fechado? Não? Definitivamente você não sabe fazer negócio.

Voltando: No dia 16 de Fevereiro, eu vi outra reportagem na TV que me deixou pensativo (talvez as minhas inquietações fossem resolvidas apenas deixando de ver telejornais). A reportagem afirmava que os EUA e Cuba assinaram um acordo para retomarem, após 50 anos, voos comerciais regulares entre os dois países. Foram especificamente duas coisas que chamaram a minha atenção. A primeira foi que apenas companhias aéreas americanas terão permissão para fazer os voos, as cubanas não. Já a segunda, dita mais para o final da reportagem, foi que além dos voos, Washington "autorizou" (exatamente essa palavra) que uma empresa do Alabama abra uma fábrica de tratores em solo cubano.

Por que os voos cubanos não serão autorizados a pousarem em território americano? Por que uma empresa cubana não é autorizada a se instalar nos EUA? O que é melhor para um país, a entrada de dinheiro, ou a oferta de emprego? As duas coisas estão tão intimamente relacionadas que fica difícil diferenciar o peso de cada uma delas para o desenvolvimento do país e o bem estar da nação. Por isso ficamos na dúvida se os EUA são os "mocinhos" ou são os vilões. De qualquer forma, os EUA já devem ter encontrado a resposta para o que é mais importante, pelo menos em benefício próprio, visto as autorizações dadas e os acordos realizados junto a Cuba. Parece providencial uma reaproximação a um mercado "virgem" para o livre mercado nos moldes em que está sendo executada, principalmente em um período de tamanha fragilidade econômica  mundial. Não parece?

Desviando: Em 1965, pelo menos 500 mil indonésios foram assassinados por supostamente serem comunistas (eu ainda continuaria indignado com esse número se eles fossem comprovadamente comunistas). Os trabalhadores haviam se organizado e montado um sindicato para lutar contra a exploração e péssimas condições de trabalho. Frente um forte lobby praticado pelas empresas da região, um grupo paramilitar foi contratado, inclusive patrocinado pelo governo indonésio na época, para sufocar a organização sindical. O resultado? Um genocídio.

Mais recentemente, Joshua Oppenheimer produziu dois documentários sobre aquele genocídio de 1965 na Indonésia, "The act of killing (2012)" e "The look of silence (2014)".  Em um deles há, por exemplo, imagens em um campo de concentração, com um grupo de trabalhadores extraindo látex para a empresa americana Goodyear. Onde quero chegar? Eu quero chamar atenção para algumas palavras do produtor dos dois documentários, que me fizeram comparar o que ouço com o que vejo.

"E a Goodyear usava escravos de campos de concentração, a mesma coisa que as empresas alemãs faziam perto de Auschwitz 20 anos antes. É uma crise de consciência para os americanos, nos faz pensar que talvez a ideologia anticomunista da Guerra Fria não seja a razão real para nossas intervenções. Talvez fosse uma desculpa, como a que os assassinos que vemos nos meus filmes usam. Talvez seja uma desculpa oficial para fazer aquilo que as corporações queriam. Isso faz com que façamos perguntas difíceis sobre nossa política externa."

Sabe o que eu fui fazer após ler o artigo onde encontrei todas essas informações? Eu fui checar a marca do pneu do meu carro. E fiquei triste, muito triste. A ignorância é de fato uma benção, neste caso era um ótimo álibi. O saber implica em uma carga bem pesada para se carregar.

Voltando: O que me intriga não é o capitalismo, o livre mercado, o monopólio ou o mercantilismo. Isso é só uma "fatia do bolo". O ponto é que eu também não sei mais no que acreditar quando ouço falar sobre democracia, sobre direitos, sobre deveres, sobre escolhas, sobre liberdade, sobre o cotidiano, sobre a vida.

Porque quando pensamos sobre o que vemos, tudo parece tão diferente do que dizem que é? Pois eu já não consigo explicar o que vejo e não acredito mais no que ouço. Onde eu vim parar?

Agradecimento: Ao ER por compartilhar o artigo com as informações sobre o genocídio na Indonésia de 1965.

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