sábado, 22 de agosto de 2020

Pausa para o Café

"Renda-se, como eu me rendi. Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei. Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento."

Clarice Lispector 

O café não é original da flora brasileira. Estima-se que o primeiro pé tenha sido plantado no estado do Pará em 1729. Porém, o ciclo cafeeiro se iniciou no Brasil apenas por volta de 1760, quando o desembargador João Castelo Branco trouxe algumas mudas do Maranhão para o Rio de Janeiro. Por curiosidade, somente alguns poucos pés vingaram, justamente os que foram plantados em seu quintal. Já no século XIX, a cafeicultura se espalhou pelo Vale do Paraíba, quando, então, a Província do Rio de Janeiro tornou-se a maior produtora do mundo. Em 1850, o Rio de Janeiro sozinho já era responsável por 80% da produção brasileira e 40% da produção mundial.

Enfim, nosso país tem sido o maior produtor de café do mundo pelos últimos 150 anos, aproximadamente. No entanto, sabe quem inventou a cafeteira? Foram os franceses, no final do século XVIII. Mais tarde, após a Segunda Guerra Mundial, um italiano inventou a máquina de café expresso, ou pelo menos a tirou do papel. Atualmente, uma empresa de origem suíça é a detentora de uma das maiores marcas de cafeteiras elétricas do mundo, senão a maior. O Brasil? Sempre foi o maior produtor de café. Isso é ruim? Não, claro que não. Mas em 150 anos não daria para ter adicionado algum item a mais ao repertório?

Usando o meu cartão de crédito, eu acumulei alguns pontos e acabei ganhando de presente uma máquina de café em capsulas. Perceba, eu não ganhei uma saca de café, mas ganhei uma cafeteira. Isso me fez refletir sobre as coisas das quais digo que me orgulho. Eu digo muitas coisas, mas meus comportamentos dizem outras. Eu engano a mim mesmo sem sequer me dar conta.

Mas por que eu lembrei de ter sido presenteado com uma maquina de café? Bem, foi porque eu pensei em uma conexão entre uma cafeteira e a vida. Mas vamos por partes. Ou melhor, vamos falar um pouco sobre vida agora.

Todas as discussões filosóficas, teológicas e até mesmo científicas sobre o que é a vida, que eu testemunhei, inevitavelmente terminaram com a definição de que ela é um presente dado a cada um de nós, assim como a minha máquina de café.

"Meu melhor amigo me deu o melhor conselho

Ele disse: cada dia é um presente, e não um direito adquirido"

If today was your last Day - Nickleback

Porém, apenas recentemente alguém me fez questionar essa conclusão. E foi neste vídeo aqui, caso você tenha interesse em ver também. Adianto que foi bem no final, exatamente nos últimos dez segundos, uma afirmação despretensiosa. No entanto, para quem for assistir, sugiro ver o vídeo inteiro, para ir entrando no clima, como aconteceu comigo. De fato, não há nada demais lá, talvez você passe por ele como quem pega as chaves do carro em direção a porta de saída. Para mim, aquela declaração final abalou o que eu achava que acreditava e me tirou do modo automático. Ou me fez parar de me enganar sem saber. Eu nunca tinha ouvido uma contra argumentação tão prática e tão simples sobre a ideia de que a vida é um presente.

Antes de transcrever a frase e dizer a minha própria conclusão, inclusive esclarecendo a relação que achei entre uma cafeteira e a vida, vou contar outra história. Esta foi vista na Netflix, na série "Sou um assassino". É o caso de um homem que, após o nascimento, foi abandonado pela própria mãe. Um amigo da mulher criou o garoto em um bairro extremamente pobre. Apenas aos cinco anos de idade, após já ter sofrido diversos abusos físicos (inclusive com uma deformação no nariz, por ter sido quebrado), a existência daquela criança foi descoberta pelo Conselho Tutelar (se podemos chamar assim). Tiraram o garoto do homem que o criava, mas em uma visita, o mesmo homem o raptou de volta. O menino foi mantido trancado em um porta-malas durante duas semanas, até ser encontrado novamente. O homem foi preso e a criança enviada a uma instituição para adoção. Na instituição, mais abusos até ser adotado. A matriarca da nova família, após seis meses do acolhimento, recebeu uma proposta de emprego fora do país. Como o processo de adoção envolve acompanhamento, o que impossibilita que a criança se mude para outra nação, o garoto precisou ser devolvido para a instituição. Meses depois, já entre seis e sete anos de vida, o menino foi adotado novamente, desta vez por um homem solteiro. Foi abusado pelo novo pai até os dezoito anos de idade. Viu outros irmãos adotivos serem abusados também. Na adolescência, conseguiu uma prova da violência do padrasto. Levou tudo até a polícia, mas foi orientado a esquecer o assunto. Depois da maioridade, saiu de casa. Viveu com amigos um tempo aqui, outro tempo lá. Um dia decidiu contar tudo aos seus avós adotivos. Eles não acreditaram, disseram que estava louco. Em um ataque de fúria, sua consciência apagou. Quando caiu em si novamente, lhe disseram o que ele havia feito, pois não se lembrava de nada. Esfaqueou brutalmente seus avós, usando até cinco facas diferentes, pois, à medida que as lâminas cravavam nos ossos dos idosos, tamanha violência, o cabo se quebrava e ele buscava outra faca na cozinha. O homem foi sentenciado ao corredor da morte e nenhum advogado quis usar o passado dele como defesa. Uma ou duas décadas depois, um grupo de advogados responsável por revisão de sentenças de morte abraçou a causa. A sentença foi reduzida. Hoje ele cumpre prisão perpétua. Pois é, que baita presente foi a vida que ele ganhou.

Desviando: Meu objetivo com esse relato não foi tentar promover uma discussão sobre os limites entre culpa e inocência. Meu desejo foi apresentar a vida de um homem, assim como ela me foi narrada. Eu poderia parar a história dele antes do crime e imaginar qualquer outro fim diferente, mas eu continuaria dizendo: que baita presente que ele ganhou. Além disso, concordo com o fato de que muitas pessoas sofrem abusos na vida, mas não se tornam uma assassina. Mesmo assim, qual a estatística? Quantas pessoas em mil, ou em um milhão, acabariam como ele? Quantas não? Aliás, já falei sobre a estatística regendo as nossas vidas nesse texto aqui.

Voltando: Enfim, sobre o vídeo que mencionei lá no início, o diálogo foi este:

"Pedro Loss: Porque a vida é um presente.

Monark: Sobre essa lógica de que a vida é um presente... Aí eu penso em uma menina que nasce em uma tribo na África, cheia de traficantes, é estuprada desde os seis anos e morre aos quatorze de anemia. C@ra&ho, que presente."

Sem mais delongas, minha conclusão é simples. Eu não tenho a menor ideia do que seja a vida e já não me inquieta não saber. Ela permanece completamente indiferente às nossas expectativas, e não há propósito mesmo nesse descaso. Tentar encontrar um desígnio para a passividade da vida às nossas expectativas seria o mesmo que perguntar para uma máquina de café expresso o porque ela faz café. Provavelmente ela responderia: "Café? Eu não faço café. Ao acionar o botão, eu apenas executo uma centena de circuitos. Querer ver o café no final de todo o processo não fala sobre mim, mas fala sobre você."