sexta-feira, 29 de abril de 2022

O Quarto Poder

"Em tempo de revolução, cuidado com a primeira cabeça que rola. Ela abre o apetite ao povo." 

Victor Hugo

O futebol foi criado na Inglaterra por volta de 1863. Desde então, ocorreram algumas mudanças, principalmente com as regras – mas que não descaracterizaram o esporte como concebido. Atualmente, o regulamento é composto de apenas dezessete diretrizes. Entre elas, a diretiva de que uma partida deve ser conduzida por um árbitro (regra número 5). Um fato curioso é que, até 1868, os dois times acertavam as faltas entre acordos de cavalheiros, pois não havia árbitros. Mesmo após a introdução da figura do juiz de futebol, tudo continuou sendo decidido entre os capitães das duas equipes, por algum tempo. O árbitro foi munido de autoridade somente a partir de 1894.

Outra curiosidade sobre o futebol está relacionada aos cartões amarelo e vermelho. Em 1966, num jogo conturbado entre Argentina e Inglaterra, problemas de comunicação, entre o árbitro alemão e os atletas, dificultaram a expulsão de um jogador sul-americano e a punição de dois jogadores britânicos. O líder da arbitragem daquela ocasião, Ken Aston, viu a necessidade de tornar a comunicação independente do idioma e dos gestos. A inspiração veio dos semáforos de trânsito. Entretanto, somente na Copa do Mundo de 1970, os cartões seriam utilizados pela primeira vez, quando foram incorporados à diretriz número 12 das regras do futebol.

É extremamente complexo submeter decisões a dois lados que se opõem, pois: há conflito de interesses; há vozes simultâneas; não se garante a idoneidade entre todos os agentes; pode haver subjetividade de interpretação; talvez haja ignorância quanto às regras; corre-se o risco de haver manipulação por causa de ganhos (extracampo, no caso do futebol); pode envolver emoção; pode haver erros, enganos e equívocos; entre outros.

Considerando a dificuldade de desenvolver um jogo de futebol mesmo com um árbitro e todas as suas regras, tentei imaginar qual deveria ser a complexidade quando os próprios atletas tomavam as decisões. E fui além, cogitei, por um momento, o que ocorreria se as torcidas tomassem as decisões de uma "simples" partida? Foi isso que me fez lembrar de um comportamento social recorrente.

Há alguns poucos meses, um apresentador de podcast brasileiro e um deputado federal sofreram um "cancelamento" virtual de significativas proporções. Ambos defenderam a ideia de que o Nazismo não deveria ser criminalizado e que, inclusive, um partido deveria ser autorizado. Entre os motivos, encontra-se a "preocupação" de que os ideais extremistas se desenvolvam nas "sombras". A lógica do raciocínio deles consiste em considerar que é "melhor" ter um inimigo à mostra do que um escondido. Ainda assim, eles disseram acreditar que grupos inclinados ao extremismo, uma vez expostos, seriam – e deveriam ser – combatidos diretamente pela sociedade.

De minha parte, o Nazismo deve, precisa e tem que ser criminalizado, mas não vou expor os porquês, pois já foram todos exaustivamente esgotados nos meios de comunicação ao longo de semanas. Basta fazer uma pesquisa rápida na internet. A discussão que quero promover é outra...

O que gostaria de colocar em pauta é a confiança dos dois "cancelados" no absolutismo do povo. Eu considero os poderes Legislativo, Judiciário e Executivo como extensões da sociedade. Então, uma vez que esses poderes decretam que o Nazismo é crime, passam a sentenciar de acordo com essa diretriz e dão cabo da condenação, isso é o mesmo que dizer que a sociedade encontrou seu modo de repudiar e combater aquelas atrocidades, ainda que "indiretamente".

Aliás, já paramos para ponderar o motivo pelo qual os Três Poderes foram criados? Que necessidade, ou deficiência, eles vieram suprir? Portanto, a minha dúvida é, por que "precisamos" tanto de uma intervenção direta do povo? É mesmo o povo quem tem interferido? Enfim, fiquemos com as perguntas, pois não tenho as respostas. Entretanto, suspeito que poderíamos encontrar algo na história, um certo "fetiche", de alguns grupos, por revoluções.

Desviando: Reitero, eu tenho dificuldade em compreender a ideia que separa o povo do governo, pelo menos em países ocidentais democráticos. Mas sim, entendo que o governo não atende à todas as demandas sociais como deveria, por diversos motivos. Seria leviano, ingênuo e negligente de minha parte esperar que ele me representasse cabalmente. Por isso, sob certos aspectos, o povo deveria "assumir as rédeas" de algumas "melhorias" diretamente. Por exemplo, suponhamos que nossos representantes vetem a distribuição gratuita de absorventes a quem necessita, seja por interesses partidários, seja por sinceridade no controle dos gastos públicos. Porém, o que me impediria de comprar mensalmente alguns itens e entrega-los gratuitamente a quem precise deles, caso eu considere isso uma pauta válida e necessária? A não ser que a sugestão por essa benfeitoria possa ser também apenas uma manobra político-partidária (como saber?). Essa é outra dúvida, até que ponto eu acho mesmo pertinente uma pauta que anuncio aos quatro ventos (facebook, instagram, youtube e twiter) ser válida e necessária? Certa vez alguém disse: "Assim também a fé, se não tiver as obras, é morta em si mesma."

Voltando: O mais irônico, no caso do "cancelamento" do apresentador e do deputado, é que os dois foram submetidos àquilo que disseram apoiar, um repúdio direto da "sociedade" aos potenciais ideais nazistas. Aconteceu exatamente o que eles sugeriram. A "sociedade" fez o primeiro deles perder a participação no programa de entrevistas e ser bloqueado nas mídias sociais de maior relevância – perdendo o direito, inclusive, à monetização de seus conteúdos. O outro foi submetido a uma investigação da Procuradoria Geral da República – aliás, ambos foram, mas não pesquisei qual foi o desfecho disso.

Isto posto, o apresentador e o deputado entenderam o que aconteceu com eles? Perceberam que foram submetidos àquilo que sugeriram? Foi isso mesmo que idealizaram? Uma vez à mercê da materialização de suas idealizações, eles continuam defendendo a "nova" organização da sociedade (intervenções diretas) em detrimento da "tradicional" (intervenção das partes competentes)? Ou essa é só mais uma daquelas "brilhantes" ideias que deveriam servir apenas para os outros?

Supondo que todo o caso anterior tenha sido, de fato, guiado pelo povo, converge-se, inevitavelmente, à outra dúvida, qual deveria ser a voz da sociedade? Aquela que sai diretamente de suas bocas e de seus cliques? Ou aquela manifestada pelos Três Poderes? Não, não foi bem colocado. Pode parecer que meu posicionamento seja contrário à voz do povo. A pergunta correta é, que parte da sociedade deveria criar as regras, julgar e executá-las? O "juiz de futebol" ou a "torcida"? E quanto a todos aqueles problemas que ocorriam quando não havia árbitro em uma partida de futebol? Como lidar com eles? Isso é um avanço ou um retrocesso?

Enfim, como acredito que não haverá retorno, talvez precisemos de uma reestruturação. Alguém poderia dizer que a "sociedade" agiu desproporcionalmente contra os dois "cancelados". Porém, esse é o meu ponto, quem faz a regulação do Quarto Poder, a voz do "povo"? Pois, os Três Poderes há muito estabelecidos regulam-se entre si – aliás, o objetivo da divisão de poderes é justamente esse, definir os limites.

Outro exemplo de desproporcionalidade: você deve se lembrar do caso do cachorro Manchinha, morto por um segurança no estacionamento do Carrefour, mas talvez não se lembre do jovem morto em um supermercado no Rio de Janeiro. Veja, eu nem sei o nome do supermercado do segundo caso, quanto mais o nome do rapaz. Além disso, o homem que matou o cachorro foi sentenciado e condenado pelo "povo", e está pagando a pena até hoje. No caso dos assassinos do jovem, ainda nada.

Lembro de outro caso icônico, em 1994, quando uma emissora de televisão tradicional e outros veículos de reportagem divulgaram o caso da Escola Base, no qual o senhor e a senhora Shimada – e mais seis pessoas ligadas à escola – foram acusados de molestar e praticar orgias com crianças no horário escolar. Indignado, o "povo" imediatamente assumiu às "rédeas" da situação. Os envolvidos, por pouco, não foram linchados. A escola foi depredada e fechada e o casal Shimada foi à falência, com dificuldades financeiras pelo resto de suas vidas. Entretanto, tudo não passou de "fake news", sem que ninguém (no caso, o "povo") fosse responsabilizado pelos danos causados às verdadeiras vítimas, a família Shimada e seus funcionários. Sugiro esse link para conferir a história na íntegra.

Desviando: "Você deixou seus pés correrem livremente

O tempo passou enquanto caíamos

(...)

Você teria coragem de olhá-los bem nos olhos?

Porque eles vão te perseguir

Até a escuridão

Sim e eles vão perseguir você

Até você cair

E eles vão te perseguir

Até o seu interior

Até que você não possa mais rastejar

E ladeira abaixo nós vamos"

Way Down We Go - Kaleo

Voltando: A história mostra que o "povo" já julgou, sentenciou e executou muitas pessoas (até o próprio Deus), mas foge ao meu conhecimento quantas vezes ele realmente esteve certo, neutro, idôneo e, principalmente, autônomo. E, infelizmente, não consigo imaginar formas de garantir isso. Como citei, não confio tanto assim em um "povo" absolutista.