domingo, 20 de março de 2022

A Miopia de Pandora

"Eu não procuro saber as respostas, procuro compreender as perguntas." 

Confúcio

Na mitologia grega, o titã Prometeu entregou aos homens o segredo da manipulação do fogo. Como castigo, Zeus o sentenciou a uma vida eterna amarrado a uma rocha e, dia após dia, uma águia lhe devorava o fígado, que se regenerava todas as noites.

Os homens não ficaram sem punição. Pandora foi a primeira mulher criada a pedido de Zeus e enviada à Terra para se casar com o irmão de Prometeu. A ela, foi entregue uma caixa, com uma única recomendação, a de não abrir o artefato. Porém, dotada de grande curiosidade – não por acaso –, Pandora não se conteve. Ao abrir a caixa, acabou liberando diversos tipos de males ao mundo, ganância, inveja, ódio, dor, doença, fome, pobreza, guerra, morte etc. Desesperada, Pandora tentou fechar a peça imediatamente, de modo que reteve o único dom que os deuses haviam colocado na caixa, a esperança.

Uma análise do caráter didático do mito nos permite inferir que o desejo e a desobediência humanos são causas para os males observados no mundo. Enquanto, a esperança, sempre guardada conosco, nos impede de sucumbir, ajudando-nos a superar a realidade adversa. Poderíamos ainda sugerir que, enquanto o mal se exterioriza, a esperança não requer ser percebida.

Com mais ênfase no século XIX, Nietzsche tratou de uma possível nova interpretação para o mito da "Caixa de Pandora". Segundo ele, a esperança também seria uma forma de punição dos deuses, pois ela manteria os homens "amarrados" às causas de seus sofrimentos a despeito do nível de tortura.

A psicanalista, pesquisadora e professora Maria Homem reafirma a ideia de Nietzsche neste vídeo. Enquanto discorre sobre Ghosting – grosso modo, termo usado para designar o término repentino de um relacionamento sem deixar explicações –, ela pontua que, a esperança é a mãe de todas as desgraças liberadas da "Caixa de Pandora", pois nos prende a uma expectativa que não é e nunca se tornará real, a do alívio.

Veja, não sinto a necessidade de discordar de Nietzsche, ou da Maria Homem. Entretanto, sinto-me impelido a não discordar do mito grego. Neste último a esperança é um dom, não uma desgraça. Também nele, foi o desejo e a desobediência que liberaram todos os males. O mito diz que a esperança foi colocada na caixa como um desafogo aos homens, devido tamanho castigo dos deuses, assim como foi com Prometeu, que podia descansar pelo menos durante às noites.

A esperança existe porque as desgraças existem, não o contrário. Em um mundo vazio de infortúnios, tampouco teríamos condições de conhecer o que é a esperança. Outro sábio discorreu muito bem sobre esse nexo causal...

"Mas, quando vier o que é completo, então o que é incompleto será aniquilado. (...) Porque agora vemos como num espelho, de forma obscura; depois veremos face a face. Agora meu conhecimento é incompleto; depois conhecerei como também sou conhecido. Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor, estes três; porém o maior deles é o amor."

Paulo de Tarso

Perceba que Paulo, assim como no mito, também associou a esperança a uma realidade incompleta e imperfeita, de modo que, em um mundo pleno, onde o que se espera já chegou, a esperança perde a função e desaparece. Não é ela quem gera a espera.

Para especular sobre a causa dos desgostos, à vista do mito, eu pensei em uma criança que possui um cilindro em mãos e uma caixa com uma entrada triangular. Sem dificuldades, consegui imaginá-la se "irritando com o mundo" por não conseguir colocar o cilindro dentro da caixa. E então, o que move a criança em sua luta e lhe gera angústias? Seria a esperança de que a peça vai em algum momento se encaixar? Não, imagino que não. O que a impulsiona é um desejo além da realidade. O que a irrita é a impossibilidade da satisfação de sua vontade. O que lhe causa desassossego é a "mão pesada" das leis da física lhe aplicando o corretivo contra a desobediência.

Portanto, o que seriam o desejo e a desobediência do mito da "Caixa de Pandora", senão manifestações do egocentrismo e do narcisismo humanos? Apenas "recentemente", o adulto – ou alguns deles – achou útil colocar tudo na conta da esperança, pois aplaca a agonia da frustração sem responsabilizar o egocentrismo, já que o mal passa a encontrar sua causa na virtude, mas não na indecência da egolatria. Isso me parece muito oportuno, para uma sociedade que supervaloriza o "Eu", para uma época em que cada um tem sua própria verdade.

Desviando: Interessante, criei uma frase: "Negue a si mesmo e o diabo se revelará". Acho que influenciado por outro aforismo, mesmo que eu tenha me lembrado dele somente depois: "(...) resistam ao diabo e ele fugirá de vocês." (Tiago)

Voltando: Supondo, por um momento, que meu intuito com esse texto seja apenas tentar elucidar o conceito de esperança, eu poderia dizer que ela é o levantar-se da cama a despeito de todas as intempéries da realidade. A esperança é como andar... Nós não prestamos atenção aos passos, não os planejamos, não os calculamos através de raciocínios exaustivamente minuciosos. Nós somente andamos. Nós somente continuamos. Nós somente vivemos. A esperança é um "anjo de luz", que não precisa ser reconhecido para exercer sua influência e obter seus resultados. Ela não requer glória.

Entretanto, assim como citei no início do parágrafo anterior, meu objetivo vai além da petulância de tentar definir qualquer tipo de virtude e ou de desgraça. Não obstante, eu entendo que esse tipo de discussão tem seu valor, não como forma de encontrar respostas, mas como meio de ponderar a realidade – e as narrativas.

Talvez possam também pensar que eu tenha tentado refutar o filósofo Nietzsche e a psicanalista Maria Homem, mas o fato é que as chances jogam a favor deles. Tenho que me render, considerando a diferença entre os currículos, é mais provável que seja eu o equivocado. De qualquer forma, também não sei se almejo ter, um dia, gabarito que me autorize disputar ideias em pé de igualdade com pessoas de tamanha envergadura acadêmica e intelectual.

Desviando: O professor Clóvis de Barros Filho tem uma história interessante sobre a disputa de ideias apenas por ideias, quero dizer, sem o apadrinhamento da autorização social. Ele menciona um exemplo próprio, quando descobriu que o valor do discurso não está no que se diz, mas na legitimidade do porta-voz. Como professor iniciante, ele teve seu microfone cortado enquanto fazia uma pergunta que colocava em xeque o que estava sendo debatido, em um congresso sobre ética nas profissões. Quinze anos depois, então com o atual reconhecimento público, ele foi convidado para discursar no mesmo congresso, tendo, desta vez, seu discurso – de quinze anos atrás – sido socialmente autorizado. Recomendo ouvir a história diretamente dele, neste vídeo.

Voltando: Finalmente, apesar de todo aquele palavreado pseudo-filosófico, meu ponto é observar que, se não ficarmos atentos, deformam as narrativas, acobertam a realidade, pensam por nós e quando nos dermos conta – se nos dermos conta –, teremos retornado à caverna cheia de sombras, sem oferecermos nenhuma resistência. E não me refiro a estar certo ou errado, mas ao conhecimento formado através da "mastigação moderna" por parte de outros.

Quando se ganha uma caixa de presentes – cheia de ideias – como garantir que seu conteúdo não se torne desgraça, mas se manifeste como virtude? Não consigo imaginar outra forma, senão corrigindo nossa miopia com os ótimos óculos da leitura e dos estudos. Isso nos capacita questionar com propriedade, pois não o fazemos por nós mesmos, mas através das lentes de grandes pensadores anteriores a nós. E, acredite, a imponência intelectual deles é de dar inveja. Além disso, como diz um antigo provérbio: "o primeiro a se manifestar está sempre correto, até que venha alguém e comece a lhe fazer perguntas." E temos ficado atentos a todos os aspectos das perguntas?