domingo, 10 de maio de 2020

O Último Bicho-Papão

"Se, a princípio, a ideia não é absurda, então não há esperança para ela."

O Bicho-Papão é um ser imaginário das mitologias portuguesa e brasileira. Ele também pode ser reconhecido através de outros nomes, como Papa-Gente, Cuca e Boitatá. O monstro é a personificação do medo, ou seja, é a própria criança quem o cria, dando-lhe também a forma, em sua mente.

O mito tem uma função, proteger as crianças de perigos. Os pais frequentemente usam o bicho para ameaçar os filhos que não se comportam bem, ou para afastá-los de algum risco sério e real. E eu concordo com essa sabedoria prática. Se olharmos para os efeitos, mas não para as causas, o Bicho-Papão existe mesmo. Pense comigo... Para a criança, o monstro é alguém que pode devorá-las. Para os pais, o monstro é um local, um alguém, ou uma situação que pode tirar a vida do filho, ou feri-lo gravemente. Então, como imaginei, do ponto de vista da consequência, mas não da causa, o monstro de fato existe, pois o resultado potencial é real. O nome do bicho é somente uma questão de abreviar todas as probabilidades em um único "objeto". Simples praticidade.

A outra alternativa seria tentar explicar a física dos corpos e o conceito de morte a uma criança de três ou quatro anos, que teima em subir uma escada que dá acesso a um telhado. Mas não seriam todas essas coisas que os contos de fada tentam explicar para as crianças, mas de uma forma lúdica? Assim, o surgimento do mito resume-se ao fato da mente de uma criança não conseguir compreender bem as relações entre causas e efeitos do mundo real. E quer saber? Às vezes, mesmo um adulto precisa de um Bicho-Papão, pois uma rede de causa e efeito pode ser tão complexa que acaba sendo mais prático para o cérebro simplesmente substituir por um monstro.

No fim das contas, tanto para as crianças, quanto para os adultos, o monstro acaba sempre sendo um aliado, por mais que o temamos. Aliás, a aliança se dá justamente pelo fato de o monstro ser temido. Interessante isso...

E foi justamente pensando neste aspecto colaborativo que me deu vontade de falar de um Bicho-Papão específico. Apenas a título de exemplo, eu vou focar em um único aspecto da sociedade moderna, no caso, a luta feminina em prol de seus anseios, aos quais sou plenamente a favor (é sempre prudente deixar avisado). De outra maneira, seria muito abrangente se eu tentasse discorrer sobre todos os problemas sociais que enfrentamos atualmente.

De fato, explicando melhor, eu não quero falar exatamente sobre as lutas das mulheres, mas quero usar esse tema como um pano de fundo para poder expor o nosso Bicho-Papão. E para apresentá-lo, preciso fazer a seguinte pergunta, que outro sistema, além do capitalismo, possibilitaria que mulheres fossem independentes, autossuficientes e "empoderadas", ou que lutassem por tudo isso?

Desviando: Não gosto da palavra "empoderada(o)". Para mim, ouvi-la é como ouvir alguém raspar uma pedra no quadro negro de uma sala de aula. E minha aversão não é pelo contexto, mas pela palavra mesmo, em qualquer circunstância. Aliás, tenho a mesma sensação com a palavra "guerreira(o)", mas essa pelo contexto em que modernamente tem sido aplicada. Causa arrepios.

Voltando: De fato, o capitalismo não somente permite as conquistas, como é ele quem cria a ideia da luta. Percebe? Não fazem sentido independência, "empoderamento" (afe!) e conquistas em um mundo que não seja competitivo, que não nos permita sermos "selvagens".

Segundo Pondé, no livro "Filosofia para Corajosos", se o capitalismo entrar em crise e acabar, as mulheres vão voltar a se dedicar apenas à prole e os homens vão voltar a caçar, matar e morrer.

O marxismo e companhia, com seus conceitos e ideologias, disseram que nossas classes econômicas definem parte de nossos pensamentos e emoções. Se isso estiver certo, acho que as conquistas do mundo moderno devem certo grau de agradecimento ao capitalismo, seja por criar o confronto e ao mesmo tempo permitir a batalha. Reitero, afinal de contas, em qual outro tipo de sistema temos autonomia para lutar?

Nesse momento você pode estar afirmando para si mesmo: "então é isso, ele é capitalista". Se você estiver pensando isso mesmo, eu responderia a você da forma como um poeta já fez: "eu sou um Zé-Ninguém, aqui em baixo as leis são diferentes". Ou quem sabe, eu diria que, por causa das complexas relações de causa e efeito do mundo real, você só esteja preferindo criar um monstro e dar um nome para ele, assim como eu vou fazer agora... O que estou dizendo é que o menos pior de todos os sistemas construídos por mãos humanas é um baita de um Bicho-Papão, pois, da mesma maneira como a lenda, enquanto nos ameaça, ele nos mantém distante de perigos reais, aqueles sistemas que não deram certo (eu sei, que sistema que deu certo?).

Desviando: Dias atrás eu li o prefácio do próprio autor, o socialista George Orwell, para a edição inglesa do livro "A Revolução dos Bichos". Aquela introdução foi escrita há aproximadamente 80 anos e ela descreve com tamanha precisão parte dos mesmos problemas que ainda enfrentamos atualmente. Vejamos um trecho:

"Além da conhecida noção marxista segundo a qual a 'liberdade burguesa' é uma ilusão, existe hoje uma difundida tendência a argumentar que a democracia só pode ser defendida por métodos totalitários. Se a pessoa tem apego pela democracia, diz o argumento, precisa esmagar seus inimigos lançando mão de qualquer meio. (...) Noutras palavras, a defesa da democracia envolve a destruição de qualquer independência de pensamento. Foi este o argumento usado, por exemplo, para justificar os expurgos na Rússia. (...) Essas pessoas não veem que, quando se endossam métodos totalitários, pode chegar um momento em que deixarão de ser usados a favor para se voltarem contra o individuo. Caso se transforme num hábito jogar fascistas na prisão sem julgamento, o processo talvez não se limite aos fascistas. (...) Mas pelo menos devíamos parar de aceitar absurdos em nome da defesa das liberdades contra o fascismo. A liberdade, se é que significa alguma coisa, significa o nosso direito de dizer às pessoas o que não querem ouvir. As pessoas comuns ainda acreditam vagamente nessa doutrina, e agem de acordo com ela."

Voltando: Pelo teor da minha escrita e para que não fiquem dúvidas, é necessário reiterar algo que já mencionei em alguns textos anteriores, como por exemplo, aqui, aqui e aqui. Enfim, eu não acredito que exista a mínima possibilidade de que a gente dê certo por nós mesmos. Receio que já tenhamos tentado todas as possibilidades. A citação de George Orwell deixa claro que os problemas tem se repetido dentro de um intervalo de apenas 80 anos. Porém, sem medo de errar, afirmo que desde que inventamos a escrita, há aproximadamente cinco mil anos, estamos apenas andando em círculos. Já vivemos todo tipo de sistema social-político-econômico. Já lançamos os dados tantas e tantas vezes. Faça um exercício mental, tente "ler" a história da Terra como se estivesse de fora dela. Tudo tem sido o mais puro trabalho de Sísifo. Então, fio-me na esperança de que a salvação venha de fora, pois é a única coisa que ainda não nos ocorreu.