domingo, 20 de setembro de 2020

Mãos ao Alto

"É a possibilidade que me faz continuar, não a certeza; uma espécie de aposta da minha parte. E embora você possa me chamar de sonhador, de tolo ou de qualquer outra coisa, acredito que tudo é possível."

Noah Calhoun – The Notebook (2004)

Os jogos de apostas são muito antigos. Por exemplo, os primeiros "dados" que se tem registro são da civilização sumeriana, por volta de quatro mil anos a.C., e tinham o formato de pirâmides. Os egípcios também tinham sua maneira de jogar, eles usavam hastes numeradas, cujos exemplares foram encontrados na tumba de Tutancâmon. Já os assírios produziam dados de seis faces a partir do osso do calcanhar de animais. Os jogos com cartas apareceram somente no século IX, na China, e no século XIV, na Europa.

Esses tipos de jogos resumem-se na vitória, ou melhor, na sorte de um sobre o azar de outro. E eles costumam ser considerados muito sérios, pelo menos quando realizados entre adultos. Historicamente, e mesmo atualmente, uma aposta pode valer tanto quanto um contrato assinado, se não mais. Por exemplo, Tácito escreveu sobre os Germanos em 99 d.C.:

"Eles praticam o jogo de dados, em que um irá, naturalmente, se maravilhar, sobriamente, e bastante, como se fosse um negócio sério, com ousadia em ganhar e perder em que, quando eles não têm nada mais a jogar, eles apostam a sua liberdade e sua pessoa na última queda do dado. O perdedor resigna-se voluntariamente à servidão, e mesmo se ele é mais jovem e mais forte do que seu adversário, ele se permite ser amarrado e vendido. Assim, grande é a sua firmeza em um caso tão ruim: eles mesmos chamam isso de 'manter a sua palavra'."

As apostas são tão intensas quantos são os riscos envolvidos. Vejamos alguns exemplos...

Pensemos na aposta da megasena. Como já falei aqui, ganhar é quase impossível (uma chance em 50.063.860). Por outro lado, nossa perda (três ou quatro reais por aposta) comparada ao prêmio, ou ao nosso saldo do banco, é analogamente ínfima. Então, vale a pena arriscar às vezes.

Poderíamos também apostar uma moeda nas faces dos dados. Nesse caso, a chance de vitória é de uma em seis. Você escolheria uma das faces e eu outra, então veríamos quem seria sorteado primeiro, ficando com a rica moedinha do outro. Uma moeda pode ter tão pouco valor que pagaria os segundos de diversão.

Agora, usaremos a mesma moeda da aposta anterior para fazer as vezes do dado. Eu escolho cara e você coroa. Isso dará a cada um de nós uma chance de vitória em duas possíveis (opa, já melhorou, cinquenta por cento). Porém, desta vez, apostaremos nossos carros (uhm, não sei se quero continuar).

Neste último exemplo, eu estou andando na rua e sou parado por um assaltante. Por algum motivo (talvez seja um apostador), após me pedir o dinheiro, ele gira o tambor do revólver e o fecha aleatoriamente. Então diz que tem apenas uma bala. Eu sei que aquela pistola tem espaço para oito projéteis, ou seja, minhas chances são de sete em oito. A arma está apontada em minha direção. Desta vez vale a pena arriscar reagir?

Desviando: Como o próprio Batman disse sobre o Superman, em Batman VS Superman: "Havendo um por cento de chance de ele ser nosso inimigo, devemos considerar isso como certeza absoluta". Concordo com o Bruce Wayne, o Clark Kent pode causar um bocado de estragos, é bom se precaver.

Voltando: Enfim, à medida que os riscos aumentam, nossa confiança de que os números estejam a nosso favor diminui. A pergunta que sempre utilizamos para interpretar as estatísticas é "o que está em jogo?". E essa questão vai ser o pano de fundo para todo o resto deste texto.

Gostaria de falar então da maior perda que nos acomete, a morte. Sendo a nossa, ou a de alguém querido, talvez ela seja o que há de pior. Por causa dela buscamos o conforto, que é uma tentativa de desacelerar o processo de degeneração de nossos corpos e, por consequência, prolongar a vida. Com medo da morte podemos dedicar nossos esforços, dia a dia, naquilo que não nos agrada, mas nos sustenta. Esse medo é tão forte que, nos tempos de pandemia atuais, trocamos nossa liberdade pela segurança, e não damos espaço à "ousadia" dos poucos (ou muitos) "ignorantes" que preferem a liberdade (até algumas décadas atrás, era mais honrado lutar pela liberdade, mesmo que, ou principalmente se, tivéssemos que dar nossas vidas por isso). Aliás, acabei de lembrar de um trecho de música. É provável que nos emocionemos com a letra, com a melodia e com a voz, mas é fato que não acreditamos mesmo nisso, certo? Não deveríamos apostar nisso, concorda?

"Morrendo jovem, eu estou jogando pra valer

Foi assim que meu pai fez da vida dele uma obra de arte"

Ride - Lane Del Rey

Poderia ser a morte uma prova de que nossa realidade deu errado? Esta é uma pergunta que me permite "teologar" um pouco, ainda que meu objetivo seja continuar olhando para mim, saber quem eu sou de verdade, como sempre.

Suponha que Deus exista e tenha criado a nossa realidade. Uma vez que ela seja falha, com a presença da morte, poderíamos concluir que Deus é falível. Pois, mesmo todo poderoso, Ele só foi capaz de criar um universo defeituoso. Uma criação imperfeita apontaria para um criador igualmente imperfeito. No entanto, essa é uma conclusão de Deus a partir da nossa realidade. E a história nos mostra que, eventualmente, nos enganamos ao tirar conclusões a partir do nosso ponto de vista. Tempos atrás, por exemplo, achávamos que a Terra era o centro do Universo e que o Sol girava ao nosso redor (tem gente que ainda acredita nisso, fazer o quê?).

Então, vou tentar concluir a realidade a partir do lado de fora, se é que isso seja possível (sim, assumo certa petulância de minha parte). Partiremos do pressuposto de que Deus é infalível. Um ser perfeito, que tem ao seu alcance as infinitas alternativas, só poderia escolher seguir com aquela que seja a melhor de todas. Não haveria, portanto, alternativa mais perfeita que a realidade vigente.

E é agora que eu me pergunto, qual das duas formas de encarar a realidade é a correta? Claro que não me questiono para encontrar a resposta, pois, por motivos intelectualmente óbvios (faltam-me muitos neurônios), não a encontrarei. O que estou fazendo é tentar expandir minha visão para a possibilidade de uma verdade além do meu umbigo. Arriscar uma afirmação no sentido da resposta, garantiria mais o meu engano do que o meu acerto, tiraria da realidade, ou de Deus, o direito dela, ou dEle, à dúvida.

Desviando: Concordo, também é muito difícil crer no Deus externo a mim quando a existência dEle implica que o deus em mim sofra. Só pode ser obra do cruel acaso. Mais uma vez, como centro do Universo, é insuportável aceitar que a melhor realidade que poderia existir seja esta onde eu tenha que derramar lágrimas.

Voltando: Enfim, frente aos riscos envolvidos com cada uma das duas possibilidades para a realidade, não consigo apostar em uma certeza. Eu sofro do mesmo mal de Blaze Pascal, como também já havia citado aqui. Por mais paradoxal que possa parecer, o ceticismo me faz ter fé. Preciso ser honesto comigo mesmo, não consigo crer que minhas incertezas sejam sinceras, se eu não me render a elas.

A minha dúvida está com uma arma apontada para a minha incredulidade. Ela tem apenas uma bala em oito possíveis. E minha melhor aposta é me manter com as mãos apontadas para cima.