terça-feira, 31 de maio de 2022

Mundo Caído

"Posso partilhar tudo, menos o sofrimento." (Oscar Wilde)

Eu já vi algumas situações... muito intensas. Por exemplo, vi uma mulher sendo esbofeteada, de mãos dadas com o filho – em torno de três anos – que a encarava assustado, enquanto ambos caminhavam para o local de suas execuções, apenas porque professavam uma religião diferente daquela dos donos das metralhadoras – eu os vi serem mortos e já falei disso aqui. Também vi um bebê de dois meses morrer após ter sido arremessado pelo próprio pai através da janela de um apartamento. Eu vi animais de estimação serem vestidos, alimentados e abrigados em melhores condições do que crianças com fome, sede e frio. Eu vi crianças morrerem desnutridas e doentes. Vi recém-nascidos serem encontrados embrulhados dentro de caçambas de lixo e até em um lago – no caso do lago, o bebê tremia de frio e chorava com os lábios roxos. Também vi fetos, de todos os tamanhos, abortados e acondicionados em frascos de vidro. Eu vi um jovem e seu fiel cão de estimação morrerem em um acidente de carro, lamentável e ironicamente, como uma "punição" à coragem de terem escolhido viver. Enfadonhamente, vi pessoas sem coragem terem vidas mais longas. Aliás, vi pessoas boas se darem mal e pessoas más se darem bem. Também vi um homem muito franzino, após um dia pesadíssimo de trabalho, sem coragem de levantar a cabeça e encarar os olhos de outro homem, apenas porque o outro homem tinha sido socialmente "condecorado" com o título de chefe – de qualquer coisa. Vi pessoas agradecendo displicentemente um serviço prestado, sem olhar nos olhos de quem executou o favor, sem lhe dar a devida importância – o choque veio quando meu olhar cruzou o olhar do funcionário, nos entendemos. Eu vi um cachorro abandonado na rua, com espasmos, com fome e com sede, não ser alimentado para que não fizesse morada no lugar onde se encontrava – seria um incômodo, um estorvo. A propósito, falando de cachorros, certa vez eu vi um cão atropelado em uma autoestrada, com os ossos quebrados, tentando se levantar. Acho que a falta de racionalidade dos animais não os permite entender que não conseguirão se mover com os ossos quebrados, talvez por isso, ele repetia constantemente os mesmos movimentos, como um disco riscado, que toca sempre os mesmos segundos de música até que alguém puxe a tomada da vitrola. Ninguém desconectou a tomada do cão – pensando friamente, teria sido menos cruel se fosse feito. A inocência dos animais definitivamente nos comove. Eu vi o vídeo de um homem que, para mostrar virilidade, sem qualquer outro motivo, deu um tiro de espingarda, "à queima roupa", na testa de uma égua – ele falou algumas palavras idiotas antes. Eu vi quando o equino caiu morto. Eu vi um homem morrer asfixiado dentro do porta-malas de um carro, por causa da fumaça de uma bomba de gás lacrimogênio lançada por policiais. Vi pessoas se jogando pelas janelas de prédios em chamas – também ouvi o barulho do impacto no solo. Vi homens degolando outros homens à base do facão. Eu vi imagens de corpos sem vida e mutilados nas ruas de países em guerra. Também vi questões "menores", como desrespeito a pais, avós e professores, impaciência com filhos e crianças, intolerância entre familiares, crimes entre irmãos, disputas por dinheiro e tantas outras desavenças no âmbito familiar, todas praticadas por pessoas que defendem um mundo melhor, desde que, sem perceber, seja um mundo longe delas – aquela antiga história dos revolucionários que querem salvar os povos, mas não querem arrumar a cama. Enfim... Não estou dizendo que sei que essas coisas acontecem, mas estou dizendo que eu vi tudo isso e muito mais e, como diz o ditado, "com estes olhos que a terra um dia há de comer".

Ah, eu vi um homem que viu tudo isso e não fez nada, ou pior, que até fez algumas dessas coisas.

No conto "História Interrompida", de Clarice Lispector, a personagem principal disse, em certo momento: "Peguei numa folha de papel e enchi-a de alto a baixo: 'Eternidade, Vida. Mundo. Deus. Eternidade. Vida. Mundo. Deus. Eternidade...' Essas palavras matavam o sentido de muitos de meus sentimentos e deixavam-me fria por umas semanas, tão minúscula eu me descobria."

Seguindo essa "sugestão", eu tentei fazer o mesmo, pensar em coisas grandiosas que tornariam minhas visões insignificantes. Já falei aqui, por exemplo, que colocar todo o tempo da existência do Universo dentro da escala de um ano, faz os últimos cinco milênios da humanidade caberem nos 15 segundos finais do ano. Outro fato interessante é que a nossa galáxia, a Via Láctea, possui 100 mil anos-luz de diâmetro. Isso significa dizer que, se nós pudéssemos viajar à velocidade da luz – 300 mil quilômetros por segundo – levaríamos 100 mil anos para percorrer a galáxia de uma extremidade à outra. A próxima curiosidade está relacionada à orbita de Plutão, pois ele leva 248 anos para completar uma volta no sol. Portanto, considerando o ano de 2022, na última vez que Plutão esteve no ponto onde ele está agora, o rei Luís XV da França estava sendo sepultado – em 1774. Como se não bastasse, também podemos dizer que existem mais estrelas no Universo do que grãos de areia na Terra. A nossa galáxia possui uma média de 300 bilhões de estrelas, e ela é somente uma em 140 bilhões de galáxias no Universo. Poderíamos citar ainda o Supervazio encontrado no espaço, uma região com baixíssima densidade de galáxias, "sugadora" de luz e com diâmetro em torno de 1,8 bilhão de anos-luz – e já sabemos qual a grandeza de um único ano-luz. Por fim, gostaria de mostrar a imagem abaixo, uma foto do planeta Terra, registrada em 1990 pela sonda Voyager 1, quando ela alcançava os limites do nosso sistema solar – ínfimos 6 bilhões de quilômetros de distância. Isso, nosso planeta é aquele pálido pontinho azul, quase imperceptível, coincidentemente riscado por um raio de luz refletido pelas lentes da sonda. Aliás, recomendo este poema de Carl Sagan, com o mesmo título, "Pálido Ponto Azul".

Sim, eu tentei, mas novamente fui estimulado pelas ideias de Clarice Lispector, desta vez, escritas no conto "Gertrudes Pede Um Conselho": "Cada pessoa é um mundo, cada pessoa tem sua própria chave e a dos outros nada resolve; só se olha para o mundo alheio por distração, por interesse, por qualquer outro sentimento que sobrenada e que não é o vital; o 'mal de muitos' é consolo, mas não é solução." Assim, é este tipo de ideia que explica minha incapacidade de transformar a grandiosidade do espaço sideral em solução para as minhas visões. A nossa imponente realidade consegue ser um consolo, mas não o remédio.

Não sou capaz de imaginar nenhum bem nesta Terra que, subtraído do mal, possa resultar em zero. Quantas crianças sorrindo seriam necessárias para assumir que o choro de apenas uma não tem importância? Quantas crianças alimentadas nos autorizaria negar comida a somente uma faminta? Uma única criança sofrendo é mais relevante que o deleite de todas as crianças que já existiram e existirão juntas. Quero dizer, não conheço nenhum bem que faz o mal ser como se não fosse, ou não tivesse sido. Algo que diga, "ah sim, agora o mal está explicado, ou está autorizado acontecer". E não estou falando somente de crianças, tampouco somente sobre choro e fome, como bem mostraram minhas visões.

Desviando: Curioso, lembrei-me de um aforismo de Jesus: "Haverá mais alegria no céu por um pecador que se arrepende do que por noventa e nove justos que não precisam arrepender-se." Parece que encontro apoio na sensação explicada pelo seguinte ditado, "basta uma fruta podre para estragar toda a caixa".

Voltando: Para fechar aquela equação, é necessário algo além de nosso Universo, algo inimaginavelmente impensado, inexplicavelmente inconcebível, sobrenaturalmente além do mundo natural. Não há bem suficiente na nossa realidade para extirpar o mal futuro e dar cabo de qualquer sombra do mal passado, como se nunca tivesse sido. Antes é necessário algo que ainda não exista do lado de cá do véu. Logo, é imperativo que as profecias estejam certas, ainda que hoje elas sejam somente um arquétipo surrealista de um absoluto incompreensível.

Quero dizer... O Céu existe? Não sei, tampouco saberia dizer o que esperar dele. Se ele existir, um dia saberemos. Entretanto, hoje, eu acredito em sua existência, por pura necessidade, para não enlouquecer, no "menos pior" dos finais possíveis.