"De vez em quando é bastante tentador dizer a verdade com uma piada." Horácio
Marcelo Gleiser, em seu livro "A dança do Universo", atenta para o fato de que Galileu, Kepler e Newton, cada um a seu tempo
e até certo ponto um influenciado pelos outros, reduziram o mundo a partículas
maciças que interagem sob a ação de forças ditadas pelas três leis do movimento e pela lei da gravitação universal de Newton. Ressalta que, implícito
nessa descrição mecanicista do universo, nós encontramos um rígido determinismo. Conhecendo a
posição e a velocidade de qualquer corpo em um dado momento, usando as leis de
Newton, seria possível, a princípio, conhecer as posições desses mesmos corpos
em qualquer momento do passado e do futuro. Por exemplo, a posição dos planetas
em relação ao Sol.
Ainda no mesmo livro, o autor menciona que Laplace, baseado nesse conceito
determinista, tinha a crença, mais como uma alegoria do que como um pronunciamento
metafísico sério, de que existia uma "super mente" que conhecia tudo no Universo
sobre passado, presente e futuro, uma vez que essa "super mente" conheceria as
posições e velocidades de todos os objetos do Universo em um dado instante.
Assim, todo movimento, pensamento ou surpresa nas nossas vidas seriam
conhecidos por essa super inteligência, consequentemente tornando o destino
completamente previsível, sem espaço para o livre-arbítrio.
Mesmo sem conhecermos
mecânica quântica ou a dinâmica caótica de sistemas complexos, mais por
instinto, conseguimos perceber que há algo de errado nesse determinismo
extrapolado. No entanto, nossa ideia aqui será nos atermos a uma possível "super
mente", utilizando o mesmo raciocínio determinista, mas agora aplicado à
probabilidade.
Vamos imaginar um super computador que foi projetado para ser o melhor
jogador de xadrez. Vamos colocar esse super computador dentro da cabeça de um
robô, cujo corpo consiste em algo parecido com o nosso: pernas, braços, tronco
e sentado em uma cadeira, de frente a uma mesa onde se encontra o tabuleiro de
xadrez. Imaginar dessa maneira irá nos ajudar a visualizar melhor algumas
ideias mais a frente.
O limite do imaginado super computador está bem além do que temos hoje
de mais moderno, mas a questão aqui não são as limitações, ou o "como", mas o "o
que". Imaginemos que ele pode realizar em alguns segundos, ou minutos, todos os
cálculos das possíveis jogadas a serem executadas por ele e por seu adversário
em uma partida, desde o primeiro movimento até o último, sempre de forma a
escolher a melhor delas em beneficio próprio. Sempre que seu adversário fizer
uma nova jogada, ele poderá simular dentro de seus circuitos todas as demais
jogadas dele e de seu adversário até o final do jogo, e então escolher a
melhor. Atente-se ao fato de que estamos falando de todas as jogadas possíveis
do inicio ao fim, a partir de qualquer nova jogada realizada. Agora imagine que
você se sentou na outra cadeira para uma partida de xadrez.
Desviando: Em 1996 o campeão mundial de xadrez Garry Kasparov enfrentou
um computador chamado Deep Blue (IBM). O humano
perdeu a primeira partida de uma série de seis, mas depois venceu três e
empatou duas. Já em 1997, após uma grande atualização, o computador foi
declarado a primeira máquina a vencer um campeão mundial de xadrez (humano),
com duas vitória, três empates e uma derrota. O computador era capaz de
analisar 200 milhões de posições por segundo e ainda tinha em sua base de dados
mais de 700 mil partidas de mestres e grandes mestres do xadrez. Depois disso,
ele foi... descontinuado.
Voltando: Poxa... O nosso jogo de xadrez imaginário com o super
computador não será uma partida de xadrez, será uma surra. Vamos tentar inferir
algumas coisas dessa partida, extrapolar outras e usar muito a imaginação. Quando
nós conseguíssemos tomar uma peça do computador, como poderíamos saber se foram
nossos méritos e não uma armadilha? (aposto que teria sido uma armadilha) Como
saberíamos que não caímos numa armadilha maior? Quantas jogadas seriam
necessárias para sermos derrotados? Poderíamos dizer em algum momento que a
máquina fez uma jogada errada? Tudo não seria apenas uma questão de tempo e não
de uma partida em si mesma? Quantas partidas suportaríamos jogar (perder) sem
desistir? E se vencêssemos uma partida (duvido)? Teriam sido nossos méritos? Ou
teria algo maior por trás dessa vitória? Acreditaríamos mesmo nessa improvável
conquista? Caminhando um pouco mais nesse sentido, imaginando que o computador
pudesse ter algum tipo de consciência, o que a máquina teria visto e que nós
não vimos, quando nos deixou vencer? O que ela teria entendido e que nós não teríamos
entendido? Por que o super computador continuaria jogando, vitória após
vitória? Ou ele se levantaria, espalharia todas as peças e chegaria a conclusão
de que não há propósito, de que ele sempre venceria, virando as costas para nós?
Foi possível perceber que há determinismo nessa partida de xadrez, mas
apenas até um certo nível? O computador não saberia qual jogada faríamos, mas
ele saberia quais são todas as jogadas possíveis, ou todas as consequências
possíveis, assim que fizéssemos uma. Então, ele faria a sua jogada e esperaria novamente
pela nossa próxima. Uma questão de superioridade intelectual, se assim podemos
categorizar essa "inteligência artificial" (entre aspas, pois não se trata de
inteligência, mas basicamente apenas de capacidade de processamento).
Com o mesmo tipo de raciocínio, mas deixando a matemática de lado, e se
existissem computadores quase perfeitos em retórica, neurolinguística, psicologia, lógica,
razão, consciente e inconsciente... especialista em humanos? Como poderíamos
dialogar com uma máquina dessas sem sermos manipulados, sem sermos iludidos a
acreditar que existe escolha e opinião, quando na verdade tudo se resumiria a
sugestões perfeitas na nossa mente? Jogadas perfeitamente planejadas, mais armadilhas,
fazendo com que concluíssemos aquilo que a máquina deseja, acreditando que
fomos nós que concluímos. Como a super máquina jogadora de xadrez desejava, seria
apenas uma caminhada para o movimento final e a derrota. Durante o diálogo, o
que seriam as nossas vontades, os sentimentos, a raiva, o amor, as decisões, a
obediência, a rebeldia e até mesmo aquilo que dizemos acreditar? Não poderiam ser
apenas uma analogia as perdas de peças durante uma partida. Não seriam apenas
sintomas, efeitos colaterais? Haveria diálogo? A máquina não poderia também
querer espalhar as peças e virar as costas? (espero que o espalhar as peças
aqui não esteja relacionado aniquilação).
Não estamos falando de adivinhação, de mágica, de magia, de fantasia, de
invasão de mentes, de hipnotismo, mas estamos falando do domínio sobre todas as
probabilidades, consequentemente de manipulação e de como estaríamos
suscetíveis. Estamos falando de superioridade intelectual praticamente ilimitada.
Muito aquém do limite que estamos tentando imaginar, nós já conseguimos
adestrar animais mesmo que eles nem tenham condições de se questionarem se
executam as tarefas porque querem ou porque são mandados. Até com humanos, nós já
possuímos técnicas para definir regras de comportamento, estilos de vestimenta,
padrões de consumo, formar opiniões e modos de vida, com todos os alvos
acreditando que estão sendo senhores sobre suas ações, ou nem mesmo percebendo
que estão sendo sugestionados. O livro "Subliminar" de Leonard Mlodinov é uma boa
pedida sobre esse assunto, recomendo. Em uma das pesquisas relatadas no livro,
percebeu-se que a venda de vinhos em uma adega segue o padrão da nacionalidade
da música de fundo que está sendo tocada. Se a música for francesa, os vinhos
mais vendidos serão os franceses, e praticamente em todas as vendas o
consumidor, de forma consciente, ou não tinha percebido que havia uma música de
fundo, ou não tinha conseguido definir a nacionalidade da música.
Se você está concordando com minha linha de raciocínio, terá de
concordar também que, caso um dia uma consciência dessas viesse a existir,
deveríamos torcer para que ela visse algum propósito em nossa existência, pois não
consigo imaginar uma super potencia cuidando de algo que não lhe interesse. Ela
deveria ter algum tipo de cuidado pela inteligência menos favorecida, por
qualquer que seja o motivo. E deveríamos torcer também para que ela nunca
interferisse em nossas vidas, ficando escondida, se revelando apenas àqueles
que tivessem interesse em encontrá-la. Caso contrário, não poderíamos separar o
que seria proveniente de nós do que seria proveniente dessa supra consciência. Como
conseguiríamos conhecer o limite entre nós e ela, se estivéssemos com nossas
mentes ilimitadamente suscetíveis a ela?
Desviando: É estranho podermos tirar alguns conceitos até do desenho
animado do Pica-Pau. Há um episódio em
que ele quer renovar a carteira de motorista, então o Leôncio tenta aplicar o
teste de visão, mas em todos os testes o Pica-Pau apenas repete "não consigo ler
nada". Durante todo o episódio, o Pica-Pau é colocado diante de letras, as vezes
um letreiro, outra vez um prato de sopa de letrinhas, sempre com o Leôncio
tentando obrigá-lo a soletrar corretamente. Mas em todos os casos o Pica-Pau
repete "não consigo ler nada" e o Leôncio acaba ficando bem nervoso. Quando a
imagem foca no letreiro ou na sopa de letrinhas, as letras que ele deve
soletrar formam a seguinte frase "I can’t see a thing", que no contexto do
episódio quer dizer "não consigo ler nada". Veja aqui esses cortes que
mencionei. Os especialistas em humor dizem que costumamos rir de nós mesmos.
Voltando: Após toda essa imaginação surreal, posso concluir que usar
argumentos como "não se pode ver", "não há provas", "não interfere", "onde está?", para negar a
existência de uma super mente, pode ser bem incoerente, pois, segundo nossa
linha de raciocínio, são justamente esses argumentos que esperamos estar
relacionados a essa existência, caso o interesse dela não seja espalhar as peças pelo tabuleiro (por enquanto as peças ainda parecem inteiras). Assim como fez o Pica-Pau, afirmou com suas ações,
mas negou com suas palavras. E passo a concordar com os especialistas em humor,
de que costumamos mesmo rir de nossas próprias incoerências.
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