terça-feira, 23 de junho de 2015

Teste de Visão do Pica-Pau

"De vez em quando é bastante tentador dizer a verdade com uma piada." Horácio
Marcelo Gleiser, em seu livro "A dança do Universo", atenta para o fato de que Galileu, Kepler e Newton, cada um a seu tempo e até certo ponto um influenciado pelos outros, reduziram o mundo a partículas maciças que interagem sob a ação de forças ditadas pelas três leis do movimento e pela lei da gravitação universal de Newton. Ressalta que, implícito nessa descrição mecanicista do universo, nós encontramos um rígido determinismo. Conhecendo a posição e a velocidade de qualquer corpo em um dado momento, usando as leis de Newton, seria possível, a princípio, conhecer as posições desses mesmos corpos em qualquer momento do passado e do futuro. Por exemplo, a posição dos planetas em relação ao Sol.

Ainda no mesmo livro, o autor menciona que Laplace, baseado nesse conceito determinista, tinha a crença, mais como uma alegoria do que como um pronunciamento metafísico sério, de que existia uma "super mente" que conhecia tudo no Universo sobre passado, presente e futuro, uma vez que essa "super mente" conheceria as posições e velocidades de todos os objetos do Universo em um dado instante. Assim, todo movimento, pensamento ou surpresa nas nossas vidas seriam conhecidos por essa super inteligência, consequentemente tornando o destino completamente previsível, sem espaço para o livre-arbítrio.

Mesmo sem conhecermos mecânica quântica ou a dinâmica caótica de sistemas complexos, mais por instinto, conseguimos perceber que há algo de errado nesse determinismo extrapolado. No entanto, nossa ideia aqui será nos atermos a uma possível "super mente", utilizando o mesmo raciocínio determinista, mas agora aplicado à probabilidade.

Vamos imaginar um super computador que foi projetado para ser o melhor jogador de xadrez. Vamos colocar esse super computador dentro da cabeça de um robô, cujo corpo consiste em algo parecido com o nosso: pernas, braços, tronco e sentado em uma cadeira, de frente a uma mesa onde se encontra o tabuleiro de xadrez. Imaginar dessa maneira irá nos ajudar a visualizar melhor algumas ideias mais a frente.


O limite do imaginado super computador está bem além do que temos hoje de mais moderno, mas a questão aqui não são as limitações, ou o "como", mas o "o que". Imaginemos que ele pode realizar em alguns segundos, ou minutos, todos os cálculos das possíveis jogadas a serem executadas por ele e por seu adversário em uma partida, desde o primeiro movimento até o último, sempre de forma a escolher a melhor delas em beneficio próprio. Sempre que seu adversário fizer uma nova jogada, ele poderá simular dentro de seus circuitos todas as demais jogadas dele e de seu adversário até o final do jogo, e então escolher a melhor. Atente-se ao fato de que estamos falando de todas as jogadas possíveis do inicio ao fim, a partir de qualquer nova jogada realizada. Agora imagine que você se sentou na outra cadeira para uma partida de xadrez.

Desviando: Em 1996 o campeão mundial de xadrez Garry Kasparov enfrentou um computador chamado Deep Blue (IBM). O humano perdeu a primeira partida de uma série de seis, mas depois venceu três e empatou duas. Já em 1997, após uma grande atualização, o computador foi declarado a primeira máquina a vencer um campeão mundial de xadrez (humano), com duas vitória, três empates e uma derrota. O computador era capaz de analisar 200 milhões de posições por segundo e ainda tinha em sua base de dados mais de 700 mil partidas de mestres e grandes mestres do xadrez. Depois disso, ele foi... descontinuado.

Voltando: Poxa... O nosso jogo de xadrez imaginário com o super computador não será uma partida de xadrez, será uma surra. Vamos tentar inferir algumas coisas dessa partida, extrapolar outras e usar muito a imaginação. Quando nós conseguíssemos tomar uma peça do computador, como poderíamos saber se foram nossos méritos e não uma armadilha? (aposto que teria sido uma armadilha) Como saberíamos que não caímos numa armadilha maior? Quantas jogadas seriam necessárias para sermos derrotados? Poderíamos dizer em algum momento que a máquina fez uma jogada errada? Tudo não seria apenas uma questão de tempo e não de uma partida em si mesma? Quantas partidas suportaríamos jogar (perder) sem desistir? E se vencêssemos uma partida (duvido)? Teriam sido nossos méritos? Ou teria algo maior por trás dessa vitória? Acreditaríamos mesmo nessa improvável conquista? Caminhando um pouco mais nesse sentido, imaginando que o computador pudesse ter algum tipo de consciência, o que a máquina teria visto e que nós não vimos, quando nos deixou vencer? O que ela teria entendido e que nós não teríamos entendido? Por que o super computador continuaria jogando, vitória após vitória? Ou ele se levantaria, espalharia todas as peças e chegaria a conclusão de que não há propósito, de que ele sempre venceria, virando as costas para nós?

Foi possível perceber que há determinismo nessa partida de xadrez, mas apenas até um certo nível? O computador não saberia qual jogada faríamos, mas ele saberia quais são todas as jogadas possíveis, ou todas as consequências possíveis, assim que fizéssemos uma. Então, ele faria a sua jogada e esperaria novamente pela nossa próxima. Uma questão de superioridade intelectual, se assim podemos categorizar essa "inteligência artificial" (entre aspas, pois não se trata de inteligência, mas basicamente apenas de capacidade de processamento).

Com o mesmo tipo de raciocínio, mas deixando a matemática de lado, e se existissem computadores quase perfeitos em retórica, neurolinguística, psicologia, lógica, razão, consciente e inconsciente... especialista em humanos? Como poderíamos dialogar com uma máquina dessas sem sermos manipulados, sem sermos iludidos a acreditar que existe escolha e opinião, quando na verdade tudo se resumiria a sugestões perfeitas na nossa mente? Jogadas perfeitamente planejadas, mais armadilhas, fazendo com que concluíssemos aquilo que a máquina deseja, acreditando que fomos nós que concluímos. Como a super máquina jogadora de xadrez desejava, seria apenas uma caminhada para o movimento final e a derrota. Durante o diálogo, o que seriam as nossas vontades, os sentimentos, a raiva, o amor, as decisões, a obediência, a rebeldia e até mesmo aquilo que dizemos acreditar? Não poderiam ser apenas uma analogia as perdas de peças durante uma partida. Não seriam apenas sintomas, efeitos colaterais? Haveria diálogo? A máquina não poderia também querer espalhar as peças e virar as costas? (espero que o espalhar as peças aqui não esteja relacionado aniquilação).

Não estamos falando de adivinhação, de mágica, de magia, de fantasia, de invasão de mentes, de hipnotismo, mas estamos falando do domínio sobre todas as probabilidades, consequentemente de manipulação e de como estaríamos suscetíveis. Estamos falando de superioridade intelectual praticamente ilimitada.

Muito aquém do limite que estamos tentando imaginar, nós já conseguimos adestrar animais mesmo que eles nem tenham condições de se questionarem se executam as tarefas porque querem ou porque são mandados. Até com humanos, nós já possuímos técnicas para definir regras de comportamento, estilos de vestimenta, padrões de consumo, formar opiniões e modos de vida, com todos os alvos acreditando que estão sendo senhores sobre suas ações, ou nem mesmo percebendo que estão sendo sugestionados. O livro "Subliminar" de Leonard Mlodinov é uma boa pedida sobre esse assunto, recomendo. Em uma das pesquisas relatadas no livro, percebeu-se que a venda de vinhos em uma adega segue o padrão da nacionalidade da música de fundo que está sendo tocada. Se a música for francesa, os vinhos mais vendidos serão os franceses, e praticamente em todas as vendas o consumidor, de forma consciente, ou não tinha percebido que havia uma música de fundo, ou não tinha conseguido definir a nacionalidade da música.

Se você está concordando com minha linha de raciocínio, terá de concordar também que, caso um dia uma consciência dessas viesse a existir, deveríamos torcer para que ela visse algum propósito em nossa existência, pois não consigo imaginar uma super potencia cuidando de algo que não lhe interesse. Ela deveria ter algum tipo de cuidado pela inteligência menos favorecida, por qualquer que seja o motivo. E deveríamos torcer também para que ela nunca interferisse em nossas vidas, ficando escondida, se revelando apenas àqueles que tivessem interesse em encontrá-la. Caso contrário, não poderíamos separar o que seria proveniente de nós do que seria proveniente dessa supra consciência. Como conseguiríamos conhecer o limite entre nós e ela, se estivéssemos com nossas mentes ilimitadamente suscetíveis a ela?

Desviando: É estranho podermos tirar alguns conceitos até do desenho animado do Pica-Pau. Há um episódio em que ele quer renovar a carteira de motorista, então o Leôncio tenta aplicar o teste de visão, mas em todos os testes o Pica-Pau apenas repete "não consigo ler nada". Durante todo o episódio, o Pica-Pau é colocado diante de letras, as vezes um letreiro, outra vez um prato de sopa de letrinhas, sempre com o Leôncio tentando obrigá-lo a soletrar corretamente. Mas em todos os casos o Pica-Pau repete "não consigo ler nada" e o Leôncio acaba ficando bem nervoso. Quando a imagem foca no letreiro ou na sopa de letrinhas, as letras que ele deve soletrar formam a seguinte frase "I can’t see a thing", que no contexto do episódio quer dizer "não consigo ler nada". Veja aqui esses cortes que mencionei. Os especialistas em humor dizem que costumamos rir de nós mesmos.

Voltando: Após toda essa imaginação surreal, posso concluir que usar argumentos como "não se pode ver", "não há provas", "não interfere", "onde está?", para negar a existência de uma super mente, pode ser bem incoerente, pois, segundo nossa linha de raciocínio, são justamente esses argumentos que esperamos estar relacionados a essa existência, caso o interesse dela não seja espalhar as peças pelo tabuleiro (por enquanto as peças ainda parecem inteiras). Assim como fez o Pica-Pau, afirmou com suas ações, mas negou com suas palavras. E passo a concordar com os especialistas em humor, de que costumamos mesmo rir de nossas próprias incoerências.

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