terça-feira, 9 de maio de 2017

Por que a Galinha Atravessa a Rua?

"A expectativa é o maior impedimento para viver: leva-nos para o amanhã e faz com que se perca o presente"
Sêneca


No conto "A História da Sua Vida", Ted Chiang faz menção ao Princípio de Fermat. Resumidamente, ao se deslocar entre dois pontos, a luz percorre o caminho cujo tempo seja o menor possível. Pense no trajeto da figura abaixo, traçado do ponto A (no ar) para o ponto B (na água). Como o índice de refração da água é diferente do índice do ar, o feixe de luz é desviado ao atravessar a interface. A trajetória que a luz cruza é indicada pelo número 1 e é a de menor tempo entre todas as possibilidades. O caminho hipotético de número 2 é o mais curto (uma linha reta). Porém, uma percentagem maior do trajeto total é executado na água, onde a luz levaria mais tempo para se deslocar. Já o caminho 3 reduziria o percentual executado na água, mas desta vez a distância total é maior, culminando também em mais tempo.


Entre todos os aspectos que Ted Chiang trata no conto, para esse princípio, está aquele que é transcendental, quase teológico. Como se a luz soubesse o caminho que irá percorrer antes de iniciar a sua jornada e, então, decidisse por aquele que leva menos tempo. Contudo, eu não consegui deixar de lembrar que o mesmo autor, desta vez no conto "Divisão por Zero", disse que a matemática é uma ilusão. Não como um mágico que esconde cartas dentro da manga da camisa, mas como alguém que usa os nós dos dedos das mãos para saber quais meses possuem 30 ou 31 dias.

Desviando: William P. Young disse em seu livro "A Cabana" que acreditar em Deus é a experiência de maior força de liberdade, pois não podemos oferecer nada capaz de acrescentar ou diminuir o que Ele é. Isso traz, então, uma grande sensação de alívio, pois elimina qualquer exigência ou padrão de comportamento.

Ao comentar seu próprio conto, desta vez "O Inferno é a Ausência de Deus",  Ted Chiang diz:

"Pensar em desastres naturais me levou a refletir sobre a questão do sofrimento dos inocentes. Uma variedade enorme de conselhos foi dada a partir de uma perspectiva religiosa para aqueles que sofrem, e parece claro que não há uma resposta única que possa satisfazer a todos; aquilo que conforta uma pessoa inevitavelmente parece ultrajante para outra. Considere o Livro de Jó como exemplo.

Para mim, um dos aspectos insatisfatórios sobre o Livro de Jó é que, no fim, Deus o recompensa. (...) Por que Deus, afinal, devolve a sorte de Jó? Por que o final feliz? Uma das mensagens básicas do livro é que a virtude nem sempre é recompensada; coisas ruins acontecem com pessoas boas. Jó, no fim, aceita isso, demonstrando virtude, e é recompensado depois. Isso não enfraquece a mensagem?"

Cheguei a um conflito pensando sobre esses dois raciocínios, de Young e de Ted Chiang. Se eu disser que não há obrigação que me prenda a Deus e mesmo assim eu for uma pessoa abençoada, a questão pode ser revertida para: "Deus faz acepção de pessoas, uma vez que eu tenho uma vida abençoada e o outro não?" Porém, se eu associar uma vida abençoada ao cumprimento de obrigações, então eu tiro o mérito de um amor incondicional da parte de Deus e coloco em cheque Sua perfeição. Partindo da consideração de que Deus é perfeito, a contradição entre os dois raciocínios acima só pode resumir-se a um ponto, ao conceito que tenho sobre bênçãos, ou o significado que dou a elas. Em resumo, o problema só pode ser a expectativa. Também podemos assumir simplesmente que Deus não existe, nesse caso não temos mais nada o que evoluir e esse texto termina aqui.

Voltando: A luz simplesmente segue sua trajetória sem preocupar-se onde vai chegar, sem mesmo ao menos saber que está indo. Tentar encontrar uma resposta metafísica para o Princípio de Fermat seria o mesmo que acreditar que a água de uma cascata escolhe descer, pois sabe que se decidisse subir ela escaparia do planeta. Nós tentamos usar a matemática para encontrar as causas dos fenômenos da Natureza e do Universo, mas nunca vamos encontrá-las. A ciência só pode dizer como são. Interessante, lembrei-me agora como Deus se apresentou a todos aqueles que perguntaram seu nome, como "Eu Sou".

Não pude deixar de perceber, mais uma vez, que o problema somos nós. Temos implantado em nossas mentes noções de expectativas, de causa e efeito. Como se a luz tivesse o objetivo de ir do ponto A para o B, e escolhesse a forma mais rápida de fazer isso. Como se pudéssemos chegar com nossas próprias mentes, ferramentas, filosofias e religiões aos motivos pelos quais as coisas são como são. Como se ao menos fossemos capaz de entender. Como se existisse um padrão. Nós mesmos construímos as correntes que nos prendem (já falei disso aqui).

Infelizmente, nós vivemos presos às expectativas. Tente imaginar a viagem que poderíamos experimentar se fossemos livres delas. Porém, no mundo que construímos para nós, falar em ausência de expectativas é quase um sacrilégio. Ou você é acomodado, ou é deprimido. E entenda bem, não estou falando de cultivar expectativas negativas para ser surpreendido por resultados positivos, pois isso também é ter expectativas, mas com um viés diferente.
"Por que chorar por fatos da vida quando toda ela é motivo de lágrimas?"
Sêneca

"Se esperamos em Cristo só nesta vida, somos os mais miseráveis de todos os homens."
1 Coríntios 15:19

Já falei aqui que não há nada que nossa realidade possa nos oferecer que venha a preencher plenamente o vazio que temos. São apenas vislumbres da plenitude. Agora percebo que saber disso me faz experimentar uma noção maior de liberdade, mesmo que também seja apenas uma sombra.

Enfim, a galinha não atravessa a rua, mas fomos nós que construímos a pista, separando dois lados e criando a distração de ter que atravessá-la.

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