segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

À Espera de Um Milagre

"Que o teu orgulho e objetivo consistam em pôr no teu trabalho algo que se assemelhe a um milagre."

Estudando um pouco a história de algumas instituições filantrópicas, achei interessante divulgar um caso. Não é que eu tenha elementos para assegurar a entidade escolhida como a mais idônea, ou que eu a considere como minha representante, ou mesmo como a melhor entre as pesquisadas – apesar de identificar-me com ela. O ponto é que eu precisava de um exemplo para a reflexão, então acabei selecionando aquela que está ao meu alcance.

O Exército de Salvação é de denominação cristã protestante e uma das maiores instituições de caridade do mundo (se quiser ajudar clique aqui). Foi fundada em 1865, por William Booth, em Londres. Ela chegou ao Brasil em 1922 e atua em mais de 120 países através de igrejas, lojas beneficentes, abrigos, centros comunitários, hospitais, escolas, lares para idosos, creches, centros de recuperação, veículos e equipes de emergência. O lema da instituição são os três "S": Sopa; Sabão; e Salvação.

Desviando: Uma curiosidade do período da fundação foi que, à medida que o Exército de Salvação crescia em seu país de origem, no final do século XIX, também crescia uma oposição. Formou-se o Exército do Esqueleto, que perturbava os encontros e as atividades sociais do Exército de Salvação. Quem fazia parte da resistência? Donos de bares e tabernas que estavam perdendo suas clientelas, já que as pessoas deixavam seus vícios para se juntar as causas sociais.

Voltando: E pensando em socorro (cogitei usar a palavra caridade, mas ela aponta mais para quem doa do que para quem recebe), lembrei-me de uma discussão com um colega. Devemos mesmo fazer algo pela sociedade? Ou melhor, devemos mesmo socorrer quem precisa, fazendo algo que, a princípio, seria responsabilidade do Estado?

Eu não queria entrar nesse mérito, mas sinto-me compelido a esclarecer. Eu não acredito que o Estado tenha que dar um prato de comida a todos os necessitados, mas ele poderia atuar nesse problema de outra forma, investindo na sociedade – por exemplo, na economia, na educação, na indústria etc. Assim, haveria um melhor casamento entre as disponibilidades de emprego e de mão de obra. E foi exatamente aí que surgiu a dúvida. Se todos dermos um prato de comida a quem precisa, a incompetência do Estado não ficará mascarada? Não seria melhor que não socorrêssemos?

Não consigo divagar sobre essa dúvida sem "começar do começo". Existe o caminho mais fácil, que, inclusive, é o que está em vigor desde os primórdios. E ele é tão fácil – por não exigir esforço de raciocínio – que torna-se extremamente difícil evitá-lo. É uma corrente quase sem elos fracos. Exemplos? Se uma pessoa leva um tapa no rosto, é justificável, ou pelo menos explicável, que ela "pague na mesma moeda". Se falam mal dela, compreende-se por que ela fala mal de outras pessoas também. Se mentem para ela, não é estranho que ela também tenha suas "mentirinhas". Se não podemos ter, então vamos procurar alternativas paralelas, não é justo que somente nós fiquemos sem.

Desviando: Lembro-me de, quando criança, pedir autorização a minha mãe para poder acompanhar amigos em alguns passeios. Quando ela desconfiava de algum risco, prontamente me proibia. Eu tentava argumentar, "mas meu amigo vai". Ela respondia, "se ele se jogar no poço você também vai?". Parece ingênuo, mas nós ainda nos comportamos como as crianças que fomos outrora, a única diferença é que nossas brincadeiras estão mais sérias.

Voltando: A situação pode se complicar caso as leis e os códigos morais comecem a ser colocados em cheque. Não pense que estou exagerando. Já ouviu a história, recente, de que cada um tem sua própria verdade e que é politicamente incorreto contrariá-la? Se matarem um ente querido meu, eu posso agarrar-me a minha verdade e procurar por vingança. Se me roubarem, é simples, eu roubo outra pessoa e reponho a minha parte. E por aí vai...

Hoje o revide ainda é crime, mas qual será a evolução de um mundo de quase oito bilhões de verdades? Sabe qual o problema em aplaudir versos como, "é pela paz que eu não quero seguir admitindo"? É que qualquer tipo de ideologia pode se apoderar deles, principalmente em um mundo de verdades relativas.

Cada um por si, "olho por olho e dente por dente". Essa é a "lei da selva", mas não da consciência. Essa é a lei de animais, mas não de seres que pensam. Em épocas "menos" abastadas intelectualmente, mas não conceitualmente, o "poeta" diria que isso é "carne", mas não "espírito" (concordo, seria ultrajante pensar que os donos contemporâneos do Universo pudessem aceitar explicações utilizando palavras tão primitivas, mesmo que seja necessário pensar para entendê-las).

Como eu disse, é difícil quebrar a corrente, mais fácil é terceirizar a responsabilidade. É confortável dizer que eu sou o produto do sistema, pois isso não exige mudança de minha parte – inclusive, a responsabilidade do sistema já tornou-se um postulado, como se define em filosofia. Desconfortável é pensar que o sistema é o produto da minha existência. Eu reclamo do mundo, mas não tenho a mínima intenção de deixar de ser seu facilitador. Eu continuo achando que não faço parte do Estado.

É óbvio que, ao levar um tapa no rosto, eu sinto uma ânsia em retribuir na mesma medida, ou em proporções até maiores, para que não seja descontado apenas a violência física, mas também a moral. É óbvio que, quando eu vejo poucas pessoas ajudando, eu fico desanimado e penso em desistir. Porém, como diria a personagem Neo, no filme Matrix Revolutions, o problema é a escolha. Somente através da escolha é possível quebrar a corrente, e ela exige esforço. A escolha faz parte da consciência, enquanto o instinto é pura inércia. Aliás, já falei um pouco de escolha aqui.

Infelizmente, eu não acredito que a Humanidade vai melhorar, tampouco que teremos cada vez mais pessoas construindo um mundo melhor. Nós matamos tanto quanto matávamos há mil anos. Estupramos, roubamos, mentimos, traímos, distribuímos mal tanto quanto há dois mil anos (já mencionei isso aqui). Nossos Governos não são melhores do que os Governos das civilizações que nos precederam, mas são apenas mais organizados, ou, mais especificamente, só estão gerenciando em maior escala – hoje é mundial. Nós somos os responsáveis pelo nosso fim.

Se acho que não vamos melhorar, porque quebrar a corrente? Por que não se entregar para acelerar o processo de degeneração? Por que não desistir e deixar cada um por si? Por que ajudar? Não sei responder essas perguntas. O que sei é que existem dois tipos de pessoas e com qual delas quero ser comparado. Existem as que esperam por milagres e existem as que são parte do milagre.

Desviando: Existem duas formas de entender a multiplicação dos pães. A primeira é a maneira tradicional, com um cesto onde, à medida que pães e peixes eram retirados e entregues a multidão, novos eram gerados lá dentro (já discorri aqui sobre o gênio da lâmpada). A segunda forma é prestar atenção aos detalhes: disse aos discípulos, "deem vocês de comer à multidão"; pediu que a multidão (pelo menos 5 mil homens, sem citar mulheres e crianças) se sentassem em grupos de cinquenta; ergueu os cinco pães e os dois peixes (para que todos vissem o que seria feito), deu graças, os partiu e entregou aos discípulos que distribuíram às pessoas; consequentemente, aqueles que estavam sentados e tinham o que dividir entenderam o exemplo e fizeram o mesmo; a multidão se fartou e ainda juntaram-se doze cestos com as sobras.

Voltando: Não é que os milagres não virão, pois eles virão sim. O ponto é que nós somos o gatilho para eles. Lembrando de outra história daquele livro antigo, já que hoje eu estou bíblico, o Mar Vermelho se abriu somente depois que Moisés, expondo-se ao julgamento de milhares de pessoas, arriscando seu orgulho próprio e sua reputação, caminhou até a praia e ousou esticar o braço sobre água. Aliás, ele fez isso sozinho, ninguém caminhou com ele até o mar, nem ao menos como apoio moral.

A pergunta, portanto, não é se devemos ou não. A questão correta é se queremos ou não. Quem sabe o que esse mundo esteja precisando seja de mais Exército nas ruas.