domingo, 17 de janeiro de 2016

Quem Dera Acordar Duas Vezes Todos os Dias

"Ó doçura da vida: Agonizar a toda a hora sob a pena da morte, em vez de morrer de um só golpe."
William Shakespeare

Sócrates, já em sua época, defendia a imortalidade da alma. Ele chegou a conclusão que o ser humano é uma entidade espiritual que vive por algum tempo na matéria. Segundo seu pensamento, o Homem se distancia da realidade autêntica ao nascer, porém "lembranças inconscientes" de "verdades eternas" o faz sentir necessidade de retornar ao mundo que conheceu. Nesse sentido, no mundo físico, a alma humana fica conturbada, pois está atrelada a uma realidade perecível e apenas voltando-se a si mesma, ela pode ter um vislumbre novamente do que é puro. É quando as angústias do ser tendem, se não a desaparecer, pelo menos a se tornarem menos importantes. Sabedoria. Então, a morte torna-se fundamental para Sócrates, porque ela representa liberdade. Ele acreditava que os filósofos genuínos estavam sempre prontos para morrer, pois almejam, mais que ninguém, conhecer o que é a verdade.

Quanto a Montaigne, ele tem o seguinte pensamento sobre a morte, em suas palavras: "Ninguém morre antes da hora. O tempo que perdeis não vos pertence mais do que procedeu o vosso nascimento, e não vos interessa: considerai com verdade que os séculos inumeráveis, já tornados, sóis para vós como se não tivessem sido. Qualquer que seja a duração de sua vida, ela é completa. Sua utilidade não reside na duração e sim no emprego que lhe dais. Há quem vive muito e não viveu, e meditai sobre isso enquanto o podes fazer, pois depende de vós, e não do número de anos, todos vividos bastante imagináveis."

Penso que Sócrates acreditava que apenas após a morte poderemos conhecer a essência da existência, enquanto Montaigne acreditava que a vida nos basta e se não pudermos chegar a essa conclusão, já estaremos mortos.

Desviando: Vasculhando na internet vi um vídeo de poucos segundos, em que Richard Dawkins é questionado por alguém da plateia: "E se o senhor estiver errado?" Detestei o vídeo, pareceu uma situação armada, para que ele pudesse responder o que tenho visto ele repetir em todo lugar que aparece, como um disco riscado (neste post a resposta dele não será relevante). Porém, aquela pergunta ficou em minha cabeça por alguns dias: "E se eu estiver errado, sobre as responsabilidades, sobre as escolhas, sobre as decisões? E se eu estiver errado sobre as limitações e as possibilidades?"

Voltando: Em uma segunda-feira qualquer, eu acordei de madrugada e fiz tudo diferente. Vesti uma bermuda e uma camiseta, peguei o carro e dirigi, ainda no escuro, por algumas horas estrada a fora. Não levei o relógio. Foi que em algum momento o sol raiou e eu percebi uma área muito arborizada à direita, onde a neblina da madrugada começava a se desfazer. Saí da estrada, parei o carro, tirei o calçado, as meias, abri a porta e pisei na grama úmida, como há muito não fazia. Havia me esquecido da textura da grama fria, tão familiar 25 ou 30 anos atrás. Andando por entre as árvores, cheiro bom de mato, o sol tentando escapar por entre os espaços das copas, iluminando um tronco aqui ou ali, como o holofote ilumina o apresentador no teatro. Ao tocar um dos pontos iluminados, outra lembrança, a textura da casca seca de uma árvore. Mais alguns passos, um rio passando devagar. Sentei à margem, o sol começava a despontar mais quente. Fiquei ouvindo o barulho da água e dos pássaros, que talvez cantavam mais alto por estarem achando estranho uma presença desconhecida entre eles. Até que o ar gelado da madrugada deu lugar ao calor do sol e o escuro deu lugar ao céu azul. Como havia acordado muito cedo, adormeci e, apesar de não ter levado o relógio, acordei com o som do despertador, no horário que costumo levantar para sair para o trabalho. Sentei-me a beira da cama, esfreguei os olhos e me perguntei, "e aí, tem coragem?" Resolvi não arriscar. Aprontei-me e fui para a segunda-feira padrão.

E se eu estiver errado e precisar de muito menos? E se aquela segunda-feira fosse o dia da minha demissão? E se aquela segunda-feira fosse o dia da minha morte? Eu teria mudado de ideia? Teria achado que fiz a escolha errada ao acordar com o despertador? E se for hoje? Por que parece que sempre teremos tempo, que teremos várias chances para o que talvez seja a última oportunidade?


Desviando: Há muito tempo assisti o filme "Millenium – Os homens que não amavam as mulheres". (Cuidado, spoiler) O protagonista invade a casa de quem ele suspeita ser o psicopata assassino, para fazer uma investigação particular. Porém, o dono da casa chega e o "mocinho" tem que dar um jeito de fugir de lá. Quando estava quase escapando, o dono da casa percebe a fuga e chama o "mocinho" pelo nome. Com receio de ser indelicado, o "mocinho", ao invés de fugir, retorna a casa e dá uma desculpa qualquer de porque estava lá. Depois de algum diálogo, o assassino não se esconde mais atrás de suas manipulações, ataca, prende o "mocinho" e pergunta por que as pessoas não acreditam em seus instintos, por que o medo de ofender é mais forte do que o medo da dor, afinal de contas, ele não precisou fazer nada violento para que o "mocinho" retornasse a casa ao invés de fugir, bastou o medo de ser deselegante. Não tão diferente, pergunto-me, "por que temos mais medo de sair do plano, de deixar de cumprir rituais e padrões que não entendemos, ou nem sequer questionamos, do que decidir pelo que nos foi dado poucas chances para se fazer?"

Voltando: Por que em momentos críticos parece que entendemos melhor o valor das coisas, ou ao menos as classificamos segundo critérios mais lógicos? Fiquei pensando em como eu gasto meu tempo. Quantas horas dos meus 70, talvez 80 anos de vida, eu passarei olhando para a tela de um celular, ou acordando cedo para ficar horas gerando algum valor bem impessoal? Ou quanto tempo ficarei distante de pessoas que eu amo, pois todos temos que dar um jeito de se encaixar no plano de alguma maneira para sobrevivermos, seja onde for? Quantos lugares e paisagens não conhecerei, quantas experiências palpáveis deixarei de ter, pois estava sentado em uma sala (em casa ou no cinema) vendo um filme, ou lendo livros, que mostram-me lugares que eu poderia conhecer ao vivo? Ou quanto terei perdido dos meus curtos anos porque estava em um museu vendo quadros (essa ficou chique), que simulam sensações que eu poderia sentir na pele? Está certo, concordo, tem lógica, mas convenhamos, não faz sentido.

"Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água que não para, de longas beiras: e eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro — o rio."

A Terceira Margem do Rio – Guimarães Rosa

As máquinas vão dominar o mundo? Essa pergunta pode vender ingressos de cinema, mas não é a realidade. O mundo já está dominado, pela lógica. Ou as coisas se encaixam como uma engrenagem, ou... Não sei completar, não sei que tipo de vida existe além do "grande plano". Como diria o ex-agente Smith, até fugir do plano parece fazer parte do plano.

"Smith: Aí, algo aconteceu, algo que eu sabia que era impossível, mas que aconteceu assim mesmo. O senhor me destruiu, Sr. Anderson. Depois disso, eu sabia as regras, entendia o que deveria fazer, mas não fiz. Não consegui. Fui compelido a ficar. Compelido a desobedecer. E agora aqui estou, por sua causa, Sr. Anderson. Por sua causa, não sou mais agente do sistema. Por sua causa, mudei, estou desconectado. Um novo homem, por assim dizer. Como você, aparentemente livre.
Neo: Parabéns.
Smith: Obrigado. Mas, como você sabe, as aparências enganam, o que me traz de volta ao motivo de estarmos aqui. Não estamos aqui porque somos livres, mas porque não somos. Não há como fugir da razão, como negar o propósito, pois, como ambos sabemos, sem propósito, não existiríamos. Foi o propósito que nos criou. O propósito nos conecta. Ele nos impele. Nos guia. Nos motiva. O propósito nos define. O propósito nos une. Nós estamos aqui por sua causa, Sr. Anderson. Para tirar o que tentou tirar de nós. O propósito."

Matrix Reloaded (2003)

Enfim... Para mim? Acho que acredito um pouco em Sócrates e um pouco em Montaigne. A eternidade desponta quando reconhecemos a morte e começa quando criamos coragem de viver (já mencionei algo aqui). É, eu sei, só faltou um filósofo que nos dissesse como.

6 comentários:

  1. Nossa Sandrini!! Muito legal esse blog. Esse texto parece que saiu da revista Vida Simples. Algo que eu leria da Monja Coen caso ela assistisse matrix...

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  2. Uma cidade que pode ajudar: https://pt.wikipedia.org/wiki/S%C3%A3o_Tom%C3%A9_das_Letras

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  3. Fala André, estou um pouco atrasado nos textos mas lendo todos. Não pq vc é meu amigo mas pq são realmente bons. Parabéns!
    Este especialmente vai fazer eu dormir meditando. Ficou na minha cabeça seu pensamento sobre o sonho, vou dormir pensando na frase "E AÍ TEM CORAGEM". Provavelmente irei acordar com o despertador e constatar que tenho mais medo de ofender do que da dor.
    Obrigado por compartilhar um pouco de seus pensamentos. Abraço

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    1. Opa Eric. Valeu pelo comentário. É realmente acolhedor saber que não estou só com as inquietações que tenho na minha cabeça. Esse mundo que a gente está construindo é de fato muito estranho.

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