"Pois todo o que se exalta será humilhado, e o que se humilha será exaltado."
Jesus (Lucas 14.11)
No mês de Outubro do
ano de 2014, foi publicada uma reportagem sobre algumas mães
que abriram duas páginas em redes sociais denunciando serviços de má qualidade
no "Hospital Municipal Ronaldo Gazolla", no Rio de Janeiro. A luta delas é contra
a qualidade dos serviços de atendimento que resultaram na perda de seus filhos.
Uma das páginas chama-se "Mamães que perderam bebes na maternidade Ronaldo Gazolla".
Mais de um ano depois, no
mês de Dezembro de 2015, uma outra reportagem,
desta vez em um telejornal, divulgou que o Ministério Público possui indícios
de que a organização social Biotech é
suspeita de fraudar mais de 48 milhões de reais de hospitais públicos no Rio de
Janeiro, entre eles o "Hospital de Acari", como é popularmente conhecido o mesmo "Hospital
Municipal Ronaldo Gazolla". Na operação, foram confiscados quatro apartamentos
que valem juntos 24 milhões de reais, 20 quilogramas em joias de ouro e 10
carros de luxo.
Em uma das conversas gravadas, entre uma médica e um dos sócios da
organização Biotech, é possível perceber que pelo menos uma criança pode ter
morrido em função da falta de óxido nítrico, que foi racionado por contenção de custos. Qual o motivo da contenção?
Seria possibilitar que o hospital seja sustentável em suas atividades,
assimilando algumas perdas para que muitas outras vidas possam ser salvas? (Pensamento
cruel de minha parte, mas tentando ao menos buscar alguma humanidade nas
decisões da organização administradora). Ou seria para maximizar a geração de
lucros destinados a cofres particulares? (Consta no site da organização que a Biotech
não tem fins lucrativos). Uma das mães entrevistadas, ao narrar o descaso com
sua filha morta, chorou.
Desviando: Um dia conheci um
funcionário muito dedicado, que fazia mais do que lhe era conferido em sua
atribuição. Passou anos tratando a empresa como se ela fosse sua própria,
defendendo-a como defenderia sua casa. Defendendo seus colegas de trabalho como
se defendesse sua própria família. Em determinado dia, uma atividade não foi
bem sucedida e o resultado ruim superou os esforços. Sua dedicação foi colocada
em cheque, da mesma forma como quando os resultados eram positivos (estranho).
Neste dia ele se cansou, surtou e pela primeira vez na vida, em anos de
trabalho, foi sincero e disse tudo o que ele via como problema, para quem
quisesse ouvir. Afinal de contas, ninguém tem "sangue de barata", mesmo o mais paciente dos homens. Nesse dia ele passou
a fazer parte do problema. Então ele se questionou. Ao chegar em casa, pela
primeira vez se perguntou, "o que eu produzi hoje, o que produzi em todos esses
anos?" Ele percebeu que não tinha nem mesmo o direito de chorar.
Voltando: Nós podemos ver muitas coisas na TV, desde um programa inútil,
sensacionalista, que explora as dificuldades alheias em troca de alguns pontos
da audiência, até um bom documentário, com muito a acrescentar ao caráter e
intelecto de uma pessoa. Podemos ver também o noticiário, que nos apresenta um
mundo bem maior que o bairro onde vivemos. E foi justamente em um telejornal
que uma imagem chamou muito a minha atenção recentemente. Foi a entrevista com
um senhor, com marcas de expressão no rosto que deixam dúvida se pela idade ou
pela labuta, que teve sua casa
destruída pela lama de uma barragem rompida. Enquanto "engolia o choro" e desviava os olhos da câmera como quem não
tem coragem de mostrar que homens também choram, ele disse que agora sua
família está incompleta, que não tem mais casa e não tem mais emprego. Não
aguentei. Aproveitei que eu estava sozinho em frente a TV e não "engoli o choro".
Chorei por ele.
Em Agosto de 2015 a UNESCO publicou que, com a
destruição de um templo romano do século XVII em Palmira, utilizando
explosivos, o Estado Islâmico cometeu crime de guerra. Sou somente eu quem fica
indignado com esse tipo de publicação? Não está faltando nessas contas algumas
dezenas de decapitações, esquartejamentos, estupros, afogamentos, torturas,
pessoas queimadas vivas, fuziladas, afogadas e explodidas, que aliás ocorreram
meses antes da destruição do templo romano, sem que nenhum órgão mundial tenha
feito algum tipo de classificação oficial como a UNESCO fez pelo patrimônio
cultural? As pessoas envolvidas com essas perdas estão bem longe do bairro onde
moro, por isso tive um pouco de dificuldade para vê-las chorarem. Aliás,
pensando agora, vi muita gente chorar na França recentemente (o mínimo que a
humanidade poderia fazer pelas vidas perdidas), mas tenho visto poucas pessoas
chorarem por vítimas do Boko Haram na África.
Desviando: Lembro-me que,
quando eu era pequeno e fazia alguma coisa errada, meus pais me repreendiam
firmemente. Como qualquer criança, eu começava a chorar ao que instantaneamente
ouvia, "engole o choro". Só uma vez eu não engoli e foi o suficiente para saber
que deveria engolir todas as outras vezes. Hoje em dia parece que os papéis
estão invertidos. Eu perdi as contas de reportagens que vi na TV mostrando pais
que "engolem o choro" para que o filhos não sofram nenhum tipo de frustração.
Talvez isso explique muita coisa, mas não tenho como mensurar. Pode ser apenas
uma observação volátil de
minha parte.
Voltando: Essa próxima eu não vi na TV, eu vi no Youtube, mas é quase a mesma
coisa. Eu estou tentando decidir se aposto ou não, que o relato foi feito por
uma pessoa cujas horas vividas em frente a uma TV podem ser contadas utilizando
os dedos das mãos.
Vou
contar o que mais me fez sofrer.
Nós
fugimos.
Depois,
fui separada dos meus pais.
Depois,
uma pessoa me achou. Perguntou quem eu era. Mas como eu era muito menina, não
sabia distinguir os hutus dos tutsis. Eu não sabia bem.
A
pessoa me observou e tocou em meus dedos e minha pele.
Eu
disse que eu era tutsi ou mestiça.
Ela
mandou umas pessoas me matarem a tiros. Eu perguntei por quê, o que eu tinha feito
de mal.
Depois
teve muito tiro. Eu fugi.
Por
todos lados havia cadáveres e sangue. Então me sentei e disse a Deus:
'Seja
feita a Tua vontade'.
Eu
tive a sorte de sobreviver.
(Choro)"
Ao acessar o linkedin
recentemente, eu li um post que dizia, "Sabe por que você nunca viu o comercial
de uma Lamborghini?
Porque as pessoas que podem pagar por ela não estão sentadas assistindo TV".
Fiquei pensando em outros tipos de pessoas que também não assistem TV, mas não
consegui entender por que elas não tem uma Lamborghini. Pensei, por exemplo, em
um gari que
faz dois turnos correndo atrás de um caminhão de coleta de lixo, um para pagar
a comida da família e outro para pagar água e energia elétrica, que quando
chega em casa só tem tempo para dormir até a próxima jornada. Talvez ele tenha tempo
também para um carinho nas crianças enquanto dormem. Pensei também em uma mãe,
viúva, que vi um tempo atrás, ironicamente na TV, que trabalha como faxineira,
ao mesmo tempo que cuida de seu filho em estado vegetativo (não lembro o que
ocorreu com o garoto). Sabe-se lá o que ela consegue fazer quando para por alguns
instantes. Talvez o gari e a mãe tenham tempo pelo menos para chorar, sozinhos,
quem sabe enquanto tomam banho, para ninguém perceber.
Hoje minha fé
enfraqueceu. Quando chegará o dia em que o humilde será exaltado e o que se
exalta será humilhado? Alguém, por favor, ajude-me a chorar com essas pessoas,
pois minhas esperanças estão se desvanecendo ao passo que vejo-as chorando
sozinhas. Aliás, já nem sei mais por quem devo chorar, se pelo humilde ou pelo
orgulhoso, pela vítima ou pelo criminoso. Talvez eu deva mesmo parar de ver TV,
quem sabe um dia eu consiga comprar uma Lamborghini.
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