quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Não Sei Se Vejo TV ou Se Compro uma Lamborghini

"Pois todo o que se exalta será humilhado, e o que se humilha será exaltado."
Jesus (Lucas 14.11)

No mês de Outubro do ano de 2014, foi publicada uma reportagem sobre algumas mães que abriram duas páginas em redes sociais denunciando serviços de má qualidade no "Hospital Municipal Ronaldo Gazolla", no Rio de Janeiro. A luta delas é contra a qualidade dos serviços de atendimento que resultaram na perda de seus filhos. Uma das páginas chama-se "Mamães que perderam bebes na maternidade Ronaldo Gazolla".

Mais de um ano depois, no mês de Dezembro de 2015, uma outra reportagem, desta vez em um telejornal, divulgou que o Ministério Público possui indícios de que a organização social Biotech é suspeita de fraudar mais de 48 milhões de reais de hospitais públicos no Rio de Janeiro, entre eles o "Hospital de Acari", como é popularmente conhecido o mesmo "Hospital Municipal Ronaldo Gazolla". Na operação, foram confiscados quatro apartamentos que valem juntos 24 milhões de reais, 20 quilogramas em joias de ouro e 10 carros de luxo.

Em uma das conversas gravadas, entre uma médica e um dos sócios da organização Biotech, é possível perceber que pelo menos uma criança pode ter morrido em função da falta de óxido nítrico, que foi racionado por contenção de custos. Qual o motivo da contenção? Seria possibilitar que o hospital seja sustentável em suas atividades, assimilando algumas perdas para que muitas outras vidas possam ser salvas? (Pensamento cruel de minha parte, mas tentando ao menos buscar alguma humanidade nas decisões da organização administradora). Ou seria para maximizar a geração de lucros destinados a cofres particulares? (Consta no site da organização que a Biotech não tem fins lucrativos). Uma das mães entrevistadas, ao narrar o descaso com sua filha morta, chorou.

Desviando: Um dia conheci um funcionário muito dedicado, que fazia mais do que lhe era conferido em sua atribuição. Passou anos tratando a empresa como se ela fosse sua própria, defendendo-a como defenderia sua casa. Defendendo seus colegas de trabalho como se defendesse sua própria família. Em determinado dia, uma atividade não foi bem sucedida e o resultado ruim superou os esforços. Sua dedicação foi colocada em cheque, da mesma forma como quando os resultados eram positivos (estranho). Neste dia ele se cansou, surtou e pela primeira vez na vida, em anos de trabalho, foi sincero e disse tudo o que ele via como problema, para quem quisesse ouvir. Afinal de contas, ninguém tem "sangue de barata", mesmo o mais paciente dos homens. Nesse dia ele passou a fazer parte do problema. Então ele se questionou. Ao chegar em casa, pela primeira vez se perguntou, "o que eu produzi hoje, o que produzi em todos esses anos?" Ele percebeu que não tinha nem mesmo o direito de chorar.

Voltando: Nós podemos ver muitas coisas na TV, desde um programa inútil, sensacionalista, que explora as dificuldades alheias em troca de alguns pontos da audiência, até um bom documentário, com muito a acrescentar ao caráter e intelecto de uma pessoa. Podemos ver também o noticiário, que nos apresenta um mundo bem maior que o bairro onde vivemos. E foi justamente em um telejornal que uma imagem chamou muito a minha atenção recentemente. Foi a entrevista com um senhor, com marcas de expressão no rosto que deixam dúvida se pela idade ou pela labuta, que teve sua casa destruída pela lama de uma barragem rompida. Enquanto "engolia o choro" e desviava os olhos da câmera como quem não tem coragem de mostrar que homens também choram, ele disse que agora sua família está incompleta, que não tem mais casa e não tem mais emprego. Não aguentei. Aproveitei que eu estava sozinho em frente a TV e não "engoli o choro". Chorei por ele.

Em Agosto de 2015 a UNESCO publicou que, com a destruição de um templo romano do século XVII em Palmira, utilizando explosivos, o Estado Islâmico cometeu crime de guerra. Sou somente eu quem fica indignado com esse tipo de publicação? Não está faltando nessas contas algumas dezenas de decapitações, esquartejamentos, estupros, afogamentos, torturas, pessoas queimadas vivas, fuziladas, afogadas e explodidas, que aliás ocorreram meses antes da destruição do templo romano, sem que nenhum órgão mundial tenha feito algum tipo de classificação oficial como a UNESCO fez pelo patrimônio cultural? As pessoas envolvidas com essas perdas estão bem longe do bairro onde moro, por isso tive um pouco de dificuldade para vê-las chorarem. Aliás, pensando agora, vi muita gente chorar na França recentemente (o mínimo que a humanidade poderia fazer pelas vidas perdidas), mas tenho visto poucas pessoas chorarem por vítimas do Boko Haram na África.

Desviando: Lembro-me que, quando eu era pequeno e fazia alguma coisa errada, meus pais me repreendiam firmemente. Como qualquer criança, eu começava a chorar ao que instantaneamente ouvia, "engole o choro". Só uma vez eu não engoli e foi o suficiente para saber que deveria engolir todas as outras vezes. Hoje em dia parece que os papéis estão invertidos. Eu perdi as contas de reportagens que vi na TV mostrando pais que "engolem o choro" para que o filhos não sofram nenhum tipo de frustração. Talvez isso explique muita coisa, mas não tenho como mensurar. Pode ser apenas uma observação volátil de minha parte.

Voltando: Essa próxima eu não vi na TV, eu vi no Youtube, mas é quase a mesma coisa. Eu estou tentando decidir se aposto ou não, que o relato foi feito por uma pessoa cujas horas vividas em frente a uma TV podem ser contadas utilizando os dedos das mãos.

"Na verdade, durante o genocídio...
Vou contar o que mais me fez sofrer.
Nós fugimos.
Depois, fui separada dos meus pais.
Depois desta separação, fiquei vivendo só nos campos de sorgo. Passei pelo menos duas semanas lá.
Depois, uma pessoa me achou. Perguntou quem eu era. Mas como eu era muito menina, não sabia distinguir os hutus dos tutsis. Eu não sabia bem.
A pessoa me observou e tocou em meus dedos e minha pele.
Eu disse que eu era tutsi ou mestiça.
Ela mandou umas pessoas me matarem a tiros. Eu perguntei por quê, o que eu tinha feito de mal.
Depois teve muito tiro. Eu fugi.
Por todos lados havia cadáveres e sangue. Então me sentei e disse a Deus:
'Seja feita a Tua vontade'.
Eu tive a sorte de sobreviver.
(Choro)"

Ao acessar o linkedin recentemente, eu li um post que dizia, "Sabe por que você nunca viu o comercial de uma Lamborghini? Porque as pessoas que podem pagar por ela não estão sentadas assistindo TV". Fiquei pensando em outros tipos de pessoas que também não assistem TV, mas não consegui entender por que elas não tem uma Lamborghini. Pensei, por exemplo, em um gari que faz dois turnos correndo atrás de um caminhão de coleta de lixo, um para pagar a comida da família e outro para pagar água e energia elétrica, que quando chega em casa só tem tempo para dormir até a próxima jornada. Talvez ele tenha tempo também para um carinho nas crianças enquanto dormem. Pensei também em uma mãe, viúva, que vi um tempo atrás, ironicamente na TV, que trabalha como faxineira, ao mesmo tempo que cuida de seu filho em estado vegetativo (não lembro o que ocorreu com o garoto). Sabe-se lá o que ela consegue fazer quando para por alguns instantes. Talvez o gari e a mãe tenham tempo pelo menos para chorar, sozinhos, quem sabe enquanto tomam banho, para ninguém perceber.

Hoje minha fé enfraqueceu. Quando chegará o dia em que o humilde será exaltado e o que se exalta será humilhado? Alguém, por favor, ajude-me a chorar com essas pessoas, pois minhas esperanças estão se desvanecendo ao passo que vejo-as chorando sozinhas. Aliás, já nem sei mais por quem devo chorar, se pelo humilde ou pelo orgulhoso, pela vítima ou pelo criminoso. Talvez eu deva mesmo parar de ver TV, quem sabe um dia eu consiga comprar uma Lamborghini.


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