"Mas eu desconfio que a única pessoa livre, realmente livre, é a que não tem medo do ridículo."
Luis Fernando Veríssimo
Como sabemos, o espelho é um objeto que reflete
a luz e por consequência imagens. Os primeiros de que se tem conhecimento datam
de 7.000 anos atrás e eram feitos de cobre. Mais adiante no tempo, os espelhos
também passaram a ser construídos com prata e bronze polidos. Atualmente os
espelhos são feitos de três camadas, uma de vidro na parte da frente, uma de
prata com alguns produtos químicos e a última de tinta na parte de trás, para
bloquear a passagem da luz. Possivelmente, a superfície da água tenha inspirado
a construção do primeiro espelho.
Pode parecer trivial podermos reconhecer a nossa imagem em um espelho,
mas não são todas as espécies do planeta que possuem essa habilidade. Aquelas
que se tem conhecimento que podem reconhecer a própria imagem são, por exemplo, os golfinhos, os chimpanzés
(importante frisar que não são todos os primatas que possuem essa habilidade) e
os humanos. Se não estou enganado, li em algum lugar que os pinguins também possuem
essa habilidade. Este vídeo é bem interessante,
mostra a reação de alguns animais selvagens diante de um espelho.
Um espelho reflete o que somos por fora, os aspectos físicos que
possuímos, mas a influência deles é tamanha que quase podemos ver também o que
não está lá. É como se eles pudessem nos mostrar o que queremos ver e não o que
é. De qualquer maneira, em nenhuma situação somos capazes de ver o que há por
dentro. Nem tudo fica exposto diante de um espelho. Isso nos remete ao
pensamento de que temos a incrível habilidade de mostrar apenas o que nos interessa
que seja visto.
Desviando: Lembro-me que por volta de 1997 o SBT trouxe uma série
americana para o Brasil que se chamava Blossom. Era uma comédia,
que relatava a vida de uma adolescente cujo nome dava título ao seriado. Em um
dos episódios, a protagonista se encontra com alguém, e dá um grito escandaloso.
Não me lembro se foi porque acabou descobrindo algo, ou se porque admirava o
garoto com quem se encontrou, lembro-me vagamente da cena. O ponto é que depois
de dar o grito, a cena muda para o inicio novamente e ela pergunta para a
pessoa a sua frente, "eu gritei?", ao que a outra personagem responde que não e
ela fica aliviada. O objetivo da cena foi mostrar o que a protagonista viveu
por dentro de uma forma cômica. O que chamou minha atenção foi a vida secreta
que vivemos dentro da nossa mente e a naturalidade com que a vivemos, em
contraponto a estranheza que sentimos ao ver a vida secreta de outra pessoa
sendo exposta. Não estamos preparados para aceitar o que as pessoas são no
íntimo, muito provavelmente pelo fato de que não estamos preparados para expor
a nós mesmos, por mais natural e comum que o íntimo possa ser.
Voltando: Tenho pra mim, que o nosso medo da exposição está intimamente
ligado ao medo de expor nossas falhas, fraquezas e limitações, ou expor o que
realmente somos. É quase que um medo de reconhecermos a nós mesmos (fiquei na
dúvida se deixava ou tirava o "quase que" desta última frase). Talvez seja medo
do ridículo, mas fiquei pensando, qual o problema de ser ridículo, aliás quem
ou o que definiu o que é ridículo? Enfim, cada um de nós vive duas vidas, uma
que acreditamos que somente nós conhecemos, mesmo que não necessariamente a
aceitemos, e aquela que vivemos diante do resto do mundo, essa sim politicamente
aceita. É como se disséssemos, "eu finjo que sou e você finge que eu sou mesmo."
"Eu
sorrio quando estou com raiva
Eu
engano e minto
Eu
faço o que eu tenho que fazer
Para
sobreviver
Mas
eu sei o que está errado
E
eu sei o que está certo
E
eu morreria pela verdade
Na
minha vida secreta
Aguente,
aguente, meu irmão
Minha
irmã, aguente firme
Eu
finalmente tenho minhas ordens
Eu
marcharei através da manhã
Marchando
através da noite
Atravessando
as fronteiras
Da
minha vida secreta
Examinado
através do papel
Faz
você querer chorar
Ninguém
se importa se as pessoas
Vivem
ou morrem
E
o mercador quer que você pense
Que
isso é preto ou branco
Graças
a Deus que não é assim tão simples
Na
minha vida secreta"
Desviando: No mesmo
documentário da Philos TV, "À procura da religião", que eu já citei aqui, um
pastor (não entendi bem de qual religião) deu um ponto de vista interessante.
Enquanto ele narra alguns momentos de crise que viveu com sua fé, em virtude de
perdas duras, ele menciona que a cruz é um símbolo religioso que existe há mais
tempo do que se imagina (não pesquisei para ter certeza se isso é verdade,
portanto não estou totalmente confiante desta afirmação) e que esse objeto, com
uma trave horizontal e outra vertical, representa a conexão entre o "céu" e a "terra".
Então, ele observa que os cristãos foram os primeiros a adicionar um terceiro
item a este símbolo, bem no meio, um homem nu e exposto publicamente gritando, "Pai,
por que me abandonou?". Ele conclui que a dúvida e o desamparo fazem parte da
fé, fazem parte do elo entre o "céu" e a "terra", entre o "perfeito" e o "imperfeito".
Completa dizendo que não podemos nos encontrar com Deus enquanto não olharmos
para nós mesmos, não reconhecermos nossas dúvidas e limitações e,
principalmente, enquanto não nos expormos.
Voltando: Pode parecer bom que, durante nossa evolução biológica, nós
não tenhamos conseguido desenvolver a capacidade de ler pensamentos. Seria
aterrorizante se alguém pudesse saber o que se passa na minha vida secreta. No
entanto, faço essa avaliação sob o aspecto atual, de um mundo que foi moldado
por pessoas que não podem ler os pensamentos alheios. É uma avaliação análoga a
daquela tia neurótica por limpeza. Ela fala que se ganhasse na loteria não
compraria uma casa grande, pois daria muito trabalho para limpar. Ela avalia a
situação sob o aspecto de quem não tem dinheiro, mas se esquece que com muito
dinheiro ela poderia pagar para uma equipe de pessoas limpar a grande e bonita
casa nova. Portanto, talvez se tivéssemos desenvolvido a capacidade de ler
pensamentos, se não tivéssemos outra alternativa que não a exposição do que
realmente somos, teríamos evoluído segundo o verdadeiro sentido da palavra evolução.
Sermos nós mesmos talvez não seria tão ruim.
Chega de pensar no "se". Não lemos
pensamentos e não temos coragem de nos expor. Eu também não tenho a esperança
de que um dia construiremos um mundo melhor sobre o aspecto da transparência e
ingenuidade. Não tenho a esperança de que um dia todos nós aceitaremos, sem
julgamentos, a sinceridade nas outras pessoas e, portanto, teremos coragem de
sermos autênticos também. Aliás, o que vem primeiro, a aceitação da
autenticidade no outro ou a coragem de nós mesmos sermos sinceros? Deixa pra
lá. Enfim, então qual a medida? Talvez a melhor resposta que possamos dar seja
parte daquela do homem nu preso a cruz, sermos sinceros pelo menos cada um
consigo mesmo. A imagem no espelho não é um leão e não há nada que possamos
fazer sobre isso.
Curiosidade ou dica? Jesus,
após se expor, entre os vários nomes que recebeu, também foi chamado de leão.
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