domingo, 21 de junho de 2020

Papo de Pescaria Pós Moderna

"Além das aptidões e das qualidades herdadas, é a tradição que faz de nós aquilo que somos."

Imagine que você possui um barco feito de madeira atracado em um cais. Digamos que você o tenha nomeado como Bombarco. Suponhamos que, com o passar do tempo, as tábuas que constituem a embarcação comecem a ficar obsoletas e precisem ser gradualmente substituídas. Após várias semanas, todas as partes do navio foram trocadas por madeiras novas, e as antigas peças foram esquecidas em um depósito. O Bombarco permaneceu ancorado no mesmo local durante todo o período. Agora, imagine que alguém tome as madeiras antigas do depósito e reconstrua o barco exatamente como ele era, mesmo que um pouco avariado. E então, qual dos dois é o Bombarco? Pois bem, esse é o paradoxo do barco de Teseu.

Esse problema baseia-se na imprecisão da linguagem natural. Nós temos a ilusão de que somos capazes de definir bem as coisas, mas de fato não conseguimos. Usamos muita simbologia tentando constantemente delimitar ideias e conceitos, mas isso funciona somente até certo ponto.

Desviando: Outro exemplo é o paradoxo de sorites. Ele diz que não podemos definir em que momento um monte de areia deixa de ser um monte, à medida que vamos tirando grãos um a um. O senso comum sugere que um monte de areia tem as propriedades abaixo, mas essas mesmas propriedades se contrapõe umas as outras.

1. Dois ou três grãos de areia não são um monte.
2. Um milhão de grãos de areia são um monte.
3. Se "n" grãos de areia não formam um monte, tampouco o seriam "n+1" grãos.
4. Se "n" grãos de areia são um monte, também o seriam "n−1" grãos.

Voltando: Analogamente ao barco de Teseu, existe um mito de que todas as células de nossos corpos são trocadas a cada sete anos. O equívoco desta ideia é que as células nervosas de uma pessoa saudável não são substituídas, mas duram a vida toda. É por isso, por exemplo, que lesões de medula espinhal são irreversíveis. Porém, vamos supor que o mito seja verdade. Então, se reconstruíssemos o meu corpo juntando todas as minhas células de sete anos atrás, quem seria eu?

Vamos tentar comparar o barco com nossos corpos? Para isso, colocaremos Teseu dentro do navio e o manteremos lá o tempo todo, durante as substituições graduais das tábuas de madeira, assim como ocorre com nossas células nervosas. Portanto, se o marinheiro passa a ser uma propriedade necessária para caracterizar o barco, aquela onde ele se encontra torna-se a única embarcação relevante. Da mesma forma, é possível que eu e o meu outro corpo reconstruído existamos ao mesmo tempo, sem crises existenciais.

Há algo que nos define, mas não conseguimos determinar. Nós sabemos e entendemos isso, mas não conseguimos descrever, exatamente como uma criança que aprende o conceito de mãe muito antes de ser capaz de explicá-lo.

Enfim, por que estou dizendo tudo isso? Porque pessoas que viveram dois, três ou quatro milênios antes de nós já pensavam nesse mesmo assunto, às vezes de forma não tão direta. E o resultado foi o surgimento de uma sabedoria prática que, com o passar do tempo, tornou-se uma tradição. Indivíduos como aqueles meditaram sobre esses conceitos e criaram nomes para tentar estabelecer os limites que nossa linguagem tem tanta dificuldade de especificar. Alguns chamaram de alma, outros de espírito, outros de ser, outros de mente, ainda outros de essência. Esses títulos são precisos? Provavelmente não, mas passaram por duras provas por milhares de anos.

Nos dias de hoje, alguém cheio de opinião, mas com pouca informação, pode ouvir falar sobre espírito e alma, por exemplo, e dizer que isso é baboseira, que é ilusão, que não tem significado, que não é verdade. Algumas pessoas tem usado o vazio para refutar tudo. E por que o vazio? Porque elas não tem nada para colocar no lugar. Elas apenas contestam, geralmente porque, e por algum motivo desconhecido, parece ser mais intelectual negar.

Vamos analisar outro exemplo. A palavra Lúcifer vem do latim "lux fero", que significa "portador da luz". Esse ser é considerado a personificação do mal. Mas nós já paramos para pensar porque o demônio recebeu esse título? Porque ele representa a razão que se ensoberbeceu. Pois não é curioso que há milhares de anos já associavam a razão à luz, e entendiam que se ela se envaidecesse se tornaria o mal personificado? Eu achava que a relação entre luz e razão era relativamente recente, que tinha surgido apenas com o Iluminismo no século XVIII. Além disso, textos judaicos antigos dizem que o demônio era a estrela da manhã. Consegue perceber quanta sabedoria uma ideia tradicional é capaz de carregar? No alvorecer da humanidade (estrela da manhã), quando a razão surgiu na mente da espécie homo sapiens (do latim, "homem sábio"), aqueles que se orgulharam passaram a ser entendidos como estando sob a ação da personificação do mal, o símbolo da razão presunçosa. Olhando para as pessoas de hoje, parece-me que o galo ainda está cantando.

Com o passar dos séculos, nós não estamos necessariamente ficando melhores em conhecer humanos. Nós só estamos ficando melhores em manipular números. E não estou dizendo que ficar bom em matemática seja ruim.

Atualmente estou lendo Breves Respostas para Grandes Questões de Stephen Hawking. Na introdução ele diz: "Os relatos sobre a gênese do mundo criados no passado agora parecem menos relevantes e verossímeis." Achei estranho colocar todas as narrativas sobre origem em um único pacote caracterizado por irrelevante. De fato, penso que é uma classificação injusta, porque as julga todas sob o aspecto da física. Porém, nem todo relato antigo sobre o inicio tem um propósito físico, se é que algum deles tem. A maioria tem a expectativa de dar algum sentido para os conflitos da alma humana, mas não de explicar cosmologia, por exemplo. Vou tentar exemplificar a injustiça a que me refiro usando a mesma frase de Hawking ligeiramente alterada: "Os relatos sobre os conflitos da alma humana propostos pela física parecem menos relevantes e verossímeis à luz das antigas tradições." Percebe como estou sendo arbitrário com a física? Pois ela não se propõe a esse assunto.

Mas alguém poderia me dizer: "Sim, mas convenhamos que alguns relatos antigos ousaram descrever uma gênese do mundo em apenas sete dias." E eu poderia responder: "Sim, e até hoje eu não sabia o significado e o motivo da palavra Lúcifer, e por isso o ignorava, ou acreditava que ele era apenas um vilão para histórias de ninar. Então, isso me torna humilde suficiente para considerar que, analogamente e talvez, eu ainda não tenha entendido o significado de todos os relatos antigos sobre a gênese do mundo."

Coincidentemente, ainda no mesmo livro, o cientista havia escrito: "Como nossas mentes finitas podem compreender um universo infinito? Não é pretensão de nossa parte até mesmo tentar fazê-lo?" (Hawking não acreditava em um universo infinito, mas a frase dele foi apenas sua demonstração de humildade diante de tudo o que ainda não conseguia explicar fisicamente sobre o universo) Com essa segunda citação, concluo que todos tem seus próprios infinitos e quando aceitamos nos render a eles, nós estamos apenas sendo reverentes. A verdadeira humildade é render-se à possibilidade da existência do infinito dos outros.

Eu não estou tentando convencê-lo de uma ideia em detrimento de outra, mesmo porque, acredito que cada uma delas tem seus propósitos particulares e que eles não se sobrepõem. O que estou tentando fazer é, como eu já disse aqui, mostrar que o verdadeiro cético duvida até, ou principalmente, de seu próprio ceticismo. Deveríamos ser humildes para considerar que uma ideia não passa a ser irrelevante, desnecessária ou um conto de fadas apenas porque não a entendemos, principalmente quando nunca foi de nosso interesse tentar entendê-la. Agir assim é injusto.

Finalmente, chegamos à última ilustração que eu gostaria de compartilhar. O verdadeiro cético pode ser comparado a um pescador que acredita que a modernidade chegou para superar o passado. Ele senta no cais, coloca os pés dentro d’água e usa uma vara de pescar com um molinete de última geração. O cético pós-moderno, pode ser comparado também a um pescador que acredita que a modernidade chegou para superar o passado. Ele se senta em seu sofá, coloca seus óculos de realidade virtual e brinca com seu jogo de videogame que simula a realidade de uma pescaria, rindo da persistência dos pescadores tradicionais.