terça-feira, 24 de dezembro de 2019

Admirável Futuro Novo

"O problema do nosso tempo é que o futuro não é o que costumava ser."


O nome ouroboros vem do grego "oura" (calda) e "boros" (devora). É um conceito representado por uma serpente ou um dragão devorando a própria cauda. Entre as muitas interpretações, aquela com a qual eu mais me identifiquei, ou para a qual eu gostaria de apontar, foi dada pelo Dictionnaire des symboles: o ouroboros simboliza o ciclo da evolução voltando-se sobre si mesmo.


Uma discussão a respeito da mais nova produção do grupo Porta dos Fundos está em alta. É um "especial" de Natal chamado "A primeira tentação de Cristo". Ela critica, ou satiriza, a pessoa de Jesus, mas não somente a dele. Está disponível na NetFlix para quem desejar assistir. Também coloco aqui o trailer, para quem tiver preguiça de ver o filme, assim como eu. Confesso que também não vi o trailer, mas eu não conto para ninguém se você também não contar. Enfim, o debate promovido gira em torno da representação de Jesus como gay.

Desviando: Eu fiquei com uma dúvida sincera. Eu não sei quem o grupo tentou satirizar, se Jesus ou se os gays. Afinal de contas, foi preciso transformar Jesus em gay para criar comédia. Os comediantes não são capazes de criar piadas de Jesus em si mesmo? É preciso usar o subterfúgio do homossexualismo? Então, sinceramente, de quem se está rindo?

Voltando: O ponto no qual desejo focar a atenção é o fato do grupo Porta dos Fundos estar sendo duramente tachado pelo filme. Eles produziram uma crítica, digamos que contra a religião, e por isso estão sofrendo revides bem pesados. Minha dúvida, há algum tipo de censura nesse ciclo? Por exemplo, quem reprova a equipe que produziu o filme estaria sendo repressor? Talvez. O problema é que, se impedíssemos a manifestação de quem condena a crítica, não seríamos tão autoritários quanto? Quem tem autoridade, ou competência, para definir qual julgamento pode ser feito e qual não pode? Eu não sei como resolver esse impasse.

Então, fiquei pensando em um exemplo para tentar esclarecer minha dúvida, mas, obviamente, não a resposta. Vamos pensar na nudez e no ato de cobrir-se. Ambos podem ser considerados formas de expressão. O problema é que os dois são conflitantes entre si. Aqueles que usam a nudez para manifestar sua mensagem são atacados, ou se ofendem, por aqueles que se cobrem. E aqueles que se cobrem são atacados, ou também se ofendem, por aqueles que se desnudam. Então, qual a medida correta? Há um equilíbrio? Ou melhor, deveria mesmo haver um equilíbrio? Talvez sejamos passionais demais com relação às nossas opiniões, de ambos os lados.

Eu tentei muito, mas não consegui. Inevitavelmente, terei que usar uma palavra que carrega muitíssimos (pré) conceitos. Ela é a democracia. E a pergunta que me veio à mente foi: a democracia é poder falar, ou é deixar falar? Eu exerço a democracia quando eu falo o que eu quero, ou quando eu deixo falar o que querem? A democracia nos dá poder, ou ela nos dá limites?

Sinceramente, não sabemos o que é democracia. Talvez ela não seja nada além de um sistema político. Porém, mesmo reduzida a esse sentido, ela ainda consegue ser imperfeita, pois tem êxito apenas em permitir que a escolha seja feita pela maioria, não significando que será a escolha correta, ou a melhor. E o que desejamos em essência, a decisão tomada pela maioria ou a decisão correta? Se chegarmos a essa resposta, quem sabe exista uma ínfima chance de que tudo seja resolvido.

Talvez a democracia seja somente uma palavra mágica, atrás da qual nos protegemos dos erros que gostamos de cometer. De fato, hoje em dia ela é um deus intocável, algo divino. Critique Jesus Cristo, mas "lave a boca com sabão" antes de falar contra a democracia. Será que eu poderia fazer um filme em que a democracia fosse uma tirana ensandecida? Será que ririam do meu filme?

A democracia, assim como o ouroboros, está se voltando contra si mesma. Ela está mordendo a própria cauda. O sistema (acho brega usar esse termo, mas por falta de outro) está se alimentando de si mesmo. E não poderia ser diferente. Como todo sistema criado pela humanidade, a democracia também é em si, ou tornar-se-á, uma forma de tirania quando deixar de servir aos humanos e passar a servir a si mesma. Aconteceu isso com todas as forma de governo do passado.

Finalmente, que novo sistema passará a ser a esperança na história da humanidade quando a democracia colapsar sobre si? Será somente o fim de um ciclo, ou a grande serpente, mordendo a partir de sua cauda, alcançará a própria cabeça? Concordo que, entre todas as formas de governo que já criamos, a democracia é a menos pior delas. E é isso o que me preocupa, haverá algo melhor quando esta última não servir mais? Quem sabe finalmente surja algo que não tenha sido criado por nós.

Bem-vindo ao futuro. Fim!

sábado, 30 de novembro de 2019

Sério Mundo Louco

"É impressão minha, ou o mundo está ficando mais louco?"


Eu acredito ter uma limitação, mas não sei dizer bem qual é. Não sei se sou simplista demais, ou ingênuo, se sou inconformado, ou muito crítico. Quem sabe seja apenas um raciocínio infantilizado de minha parte. É, pode ser isso, infantilidade.

Deixe-me fazer uma introdução com esse exemplo que ocorreu na Espanha. A reflexão gira em torno de uma pergunta de prova e a respectiva resposta dada por uma criança. No teste, o professor solicitou: "Escreva com cifras os seguintes números". Abaixo, à esquerda, você pode encontrar os números por extenso e, à direita, as respostas da criança.

Dez: 11
Noventa e oito: 99
Oitenta e um: 82
Sessenta e seis: 67
Trinta: 31

Perceba na foto original que todas as respostas foram consideradas como incorretas. Porém, foi o aluno quem não entendeu a questão, ou foi o professor quem não entendeu a resposta? Entendo que a palavra "seguinte" no enunciado tornou ambígua a questão do professor e a simplicidade de uma criança percebeu isso.


Minha impressão é que, à medida que nos tornamos mais velhos, fazemos julgamentos priorizando as experiências vividas. Tendemos a pensar menos criativamente e mais comparativamente. O aluno da questão acima tentou entender o que o professor escreveu. Eu, como já fiz centenas de testes como esse, quase nem precisei do enunciado para saber o que deveria ser feito. É por isso que as perguntas que as crianças nos fazem são tão inteligentes e difíceis de responder, pois nossos juízos não se baseiam mais em pensar em conceitos, mas em encaixá-los em algum padrão. Para nós, os adultos, as coisas não precisam ser necessariamente explicadas, elas precisam apenas ter um nome (e quanto mais glamoroso o nome, melhor). As crianças ainda precisam que os rótulos sejam explicados, pois faltam-lhes experiências.

Penso que é esse tipo de raciocínio infantil que me faz achar o mundo tão maluco. Sou ciente que estou muito aquém de uma criança, mas o pouco que eu ainda não amadureci me faz sentir a necessidade de escrever todo esse desabafo (sim, meus textos são mais úteis a mim do que a você, se é que são úteis a você). Enfim, ao passo que o mundo me parece cada vez mais louco, menos eu sei lidar com ele. Isso acontece o tempo todo, mas vou dar apenas um exemplo.

Há aproximadamente um mês, eu vi uma manchete em um website que dizia, "para influenciadora, funk é machista porque reflete a sociedade". Essa afirmação estimulou uma discussão em minha mente. Considerando que a cultura e a arte são sim uma forma de expressão da sociedade, as perguntas que faço são: O funk reflete a sociedade inteira ou apenas parte dela? Se o público que consome funk representar 30% da sociedade e o público que consome algum gênero musical romântico representar 40%, a sociedade deve ser definida como machista, ou como romântica? Entendo que faltam dados estatísticos para tirar essa conclusão. E por fim, quando a influenciadora usou a palavra "sociedade", ela incluía mulheres, ou ela se referia apenas à parcela masculina?

Calma, não se deixe enganar por essa discussão, todas essas minhas perguntas não são ainda o ponto onde quero chegar. O mundo não é louco por causa disso. A maluquice vem agora.

Uma influenciadora se deu ao trabalho de levantar um ótimo debate sobre machismo e sobre funk. Eu li a manchete e comecei a divagar sobre o assunto, enquanto continuava rolando o cursor do mouse, descendo para as próximas notícias do website. Então, toda a reflexão perdeu instantaneamente o valor, pois uma segunda manchete me mostrou que a mesma sociedade, que está com a temática sobre machismo em alta, também está achando "bonito" mulheres darem amor e sexo em troca de bens materiais. Veja a figura abaixo e você vai entender. Essa foto não foi montada. As duas manchetes apareceram nessa mesma ordem, no mesmo website, no mesmo dia.


Desviando: Para quem não sabe o que significa Sugar Baby, segue a definição que eu encontrei no Wikipédia: Sugar dating é expressão da língua inglesa para relacionamentos românticos. Refere-se à relação entre duas pessoas de idades distintas, nas quais uma das partes é sustentada por dinheiro, presentes ou outros benefícios em troca da relação amorosa. Nesse tipo de relacionamento, sugar baby é aquela pessoa que recebe os agrados financeiros, enquanto que seu parceiro é referido como sugar daddy.

Voltando: É isso, foi exatamente aqui que eu fiquei confuso. Pense comigo, letras de funk que tratam mulheres como objeto é machismo, mulheres que decidem dar seu carinho e corpo em troca de bens materiais são independentes e modernas (aqui você precisa entender que também estou fazendo referência a outras reportagens, que trazem esse enfoque de independência e modernidade à prática Sugar Baby, como essa).

Enfim, guardadas as devidas proporções entre a inteligência criativa de uma criança e a minha limitada apenas a comparações, eu gostaria de ousar fazer uma pergunta infantil. Se um homem falar a uma mulher que acha que ela está desvalorizando a si mesma ou a todo o seu grupo, ele estará sendo machista, ou feminista? Dando um exemplo prático, se um homem criticar a prática Sugar Baby, ele estará sendo machista ou feminista? E não, não são perguntas retóricas ou irônicas, elas são sinceras.

Em um mundo estranho como o nosso, eu já não sei mais qual ideia devo apoiar, ou com quem devo concordar. Alguém já me aconselhou, "para manter sua mente saudável, faça-se de louco".

"O palhaço não sou eu, mas sim esta sociedade monstruosamente cínica e tão ingenuamente inconsciente que joga ao jogo da seriedade para melhor esconder a loucura."

Ah, você ainda quer saber... Sim, eu acho que nossa sociedade é machista.

segunda-feira, 28 de outubro de 2019

Rato de Laboratório

"Não morda a isca do prazer até que você se certifique que não existe nenhum anzol."

Certa vez, ouvi falar de um experimento com ratos. Primeiro, gostaria de dizer que, se você tem poder para escolher os padrões de testes de laboratório que serão executados, não escolha animais, na medida do possível; ou, pelo menos, trabalhe com ética. Segundo, vou descrever o experimento sobre o qual ouvi falar.

O teste era comportamental e simples. Foi colocado um botão na gaiola de um rato de modo que, apenas quando o animal acionasse o dispositivo, seria disponibilizada uma dose de água para saciar sua sede. À medida que o rato ficou desesperado por um gole d'água, ele tocou o botão por acaso e recebeu a porção programada. Com o passar do tempo, e após algumas ocorrências casuais, o roedor aprendeu que obteria sua recompensa sempre que acionasse o dispositivo. A partir de então, ele passou a apertar o botão sempre que sentia sede. Bingo, acabamos de ensinar a um rato o princípio de causa e efeito, de plantar e colher, de reforço e recompensa. Um ser vivo, um cérebro foi condicionado a apertar um botão.

Desviando: É curioso que todos os testes comportamentais pareçam ser tão elementares, sempre. Nós acreditamos que a vida é tão complexa, quando, de fato, os experimentos apontam para uma simplicidade muito óbvia. Acho que complicamos devido nossa necessidade de nos sentirmos especiais. Já falei um pouco sobre isso aqui.

Voltando: Sem delongas, nós somos tão passíveis de condicionamento quanto um rato. Basta considerarmos as várias empresas que se utilizam desse recurso, ou dessa limitação de nossa parte, ou dessa simples característica (se desejarmos ser menos dramáticos e não nos sentirmos tão especiais). Empresas de tecnologia, de moda, de automóveis, restaurantes, prestadores de serviços, emissoras de televisão, websites etc vivem tentando nos submeter à necessidade por seus produtos através de condicionamento.

Analogamente, criminosos também tentam se aproveitar desta brecha em nosso cérebro. Entre eles, os hackers, sempre tentando nos "fisgar". São pessoas que querem nos extorquir e roubar. Eles criam os mais diferentes tipos de iscas via e-mail, via mensagens de celular, ou telefone. Fazem de tudo para obterem acesso aos nossos dados pessoais e conseguirem, assim, acessar nossas contas nos bancos, nossas listas de contatos etc. A essa prática dá-se o nome de phishing, por exemplo.

Eu não sei como você vê a si mesmo, mas eu nunca assumi ser facilmente fisgado. Até poderia aceitar ser desatento no dia a dia, mas nunca dei o braço a torcer à vulnerabilidade. Sempre me vi como um ser racional, pensante, consequentemente, capaz de discernir uma armadilha. Eu controlo a minha vida, não controlo? Por isso, sempre acreditei que seria capaz de identificar quando tentassem me condicionar. Não é uma mera propaganda na TV que vai fazer eu sair de carro desesperadamente a uma loja para adquirir um produto; que baita autocontrole que tenho.

Bem, foi com esse tipo de onipotência à tona que, recentemente, eu levei um "tapa da realidade". Ela, a senhora Realidade, praticamente disse para mim: Você é um moleque!

Frente a várias notícias sobre ataques de hackers a grandes corporações, a empresa onde trabalho iniciou uma campanha de educação cibernética. Ela é constituída por boletins informativos, treinamentos, simulações e vídeos. Tudo para ensinar os funcionários a se auto-protegerem do phishing. Nesse processo, o departamento de tecnologia da informação disponibilizou uma ferramenta, um botão chamado "Phish Alert", no software gerenciador de e-mails. Ao receber uma correspondência suspeita, devemos clicar sobre esse botão de emergência, assim reportando o caso para que seja providenciada uma contramedida à tentativa de ataque.

Dias se passaram, eu recebi alguns e-mails suspeitos, mas não reportei nenhum através do botão de emergência. Até que, certo dia, ao receber mais uma correspondência duvidosa, eu resolvi usar a ferramenta de proteção. Foi quando, instantaneamente, uma mensagem de parabéns retornou como resposta. Aquele e-mail suspeito, que eu havia reportado, tinha sido enviado pela minha própria empresa para me testar. Foi uma simulação, para verificarem se eu estava colaborando com a campanha de proteção de nosso sistema de informática.

Pois é, eu fui fisgado, mas não por um hacker e sim pela área de tecnologia da informação da minha empresa. Explico... A mensagem de parabéns foi a dose de água para o ratinho e o botão "Phish Alert" era a única coisa que me separava daquela recompensa. Naquele dia, eu reportei mais cinco e-mails suspeitos, no mínimo. Fiz aquilo porque estava preocupado com minha segurança ou com a segurança da empresa? Desculpe a sinceridade, mas não. Eu ficava esperando a mensagem de parabéns, só para dizer para mim mesmo: Toma essa, passei no teste de novo. Que boçal. Somente algum tempo depois, eu percebi que: não merecia os parabéns, pois não fizera nada além da minha obrigação; os parabéns foram uma forma de me recrutarem para a campanha. A "armadilha" deles funcionou, pois continuo clicando no botão de emergência e pelo mesmo motivo, sede.

Percebi que eu sou mais vulnerável do que eu imaginava, ou tão vulnerável quanto eu não gostaria que fosse. Aliás, eu já havia percebido isso antes, como citei aqui.

Enfim, eu estou sempre mordendo a isca, de um jeito ou de outro, ciente ou não, a favor ou contra. Portanto, as perguntas corretas são: que tipo de isca eu estou mordendo? quais as necessidades que eu alimento em mim mesmo que me fazem ficar cego, ou melhor, vulnerável a algum tipo de controle externo? A questão não é se vou ou não vou morder a isca, pois essa já está mais que respondida. A pergunta é, que isca eu quero morder?

Eu sou tão rato quanto um rato. Aliás, a única diferença que percebo entre o rato e eu, é que ele não sabe que é um rato, enquanto eu penso que não sou um. Ah, e também, ele não escolhe a ratoeira onde vai entrar, mas talvez eu possa escolher as minhas.


domingo, 29 de setembro de 2019

Alguma Coisa Está Fora de Ordem

"Tenho um sorriso bobo, parecido com soluço, enquanto o caos segue em frente com toda a calma do mundo."

A personagem William Wallace, no filme Coração Valente de 1995, luta contra os ingleses pela independência da Escócia. Como não pesquisei a história do verdadeiro William, limito-me a falar apenas sobre o herói hollywoodiano. Pois bem, nos raros momentos em que o guerreio não está empunhando a espada em batalhas pelos campos escoceses, ele discorre sobre ideais de independência, que julga serem sublimes à ponto de valerem a sua própria vida, caso seja necessário. No final da película (cuidado, spoiler), William é capturado e torturado diante do povo salivante por dor, sangue e morte (naquela época ainda não havia a TV). Finalmente, o protagonista tem a chance de colocar à prova todos os discursos moralistas que proferiu ao longo do enredo. No ápice da dor, o carrasco diz que, se William declarar em alto e bom tom que se rende ao rei da Inglaterra, ele gozará da misericórdia dos lordes, que darão ordem para cessar a tortura. William ameaça proferir algumas palavras, todos silenciam e, em seu último suspiro, grita: LIBERDADE.

Analogamente, Joana D’Arc, neste caso uma personagem real, lutou em favor da França para livrá-la dos domínios da também Inglaterra. Nesse caso, sua morte foi diferente. Joana foi queimada em uma fogueira em praça pública. Ou seja, mais um caso de um bem maior sobrepujando a vida do herói.

Superman é outra personagem interessante. Ele tem superpoderes e, por isso, sua história não termina em morte. Porém, uma vez imune a praticamente qualquer tipo de dano físico, o ponto fraco dele acaba sendo a humanidade. Como acontece com todo herói imaginário que se preze, Supermam possui um grande amor, a senhorita Lois Lane. E temendo que a vida dela seja usada para atingi-lo, ele mantém sua identidade em segredo mesmo para ela. Ou seja, o salvador da humanidade acaba solitário, privando a própria vida, ou mais especificamente a própria felicidade, em prol de um bem maior.

Estas três histórias falam de personagens que colocaram a honra, a promessa, um ideal, um bem maior acima da própria vida e felicidade. Ou será que a felicidade deles era justamente fazer valer o tal do bem maior? Minha pergunta é, o que essas histórias querem me ensinar? O que eu estou deixando escapar? Elas tem algum significado mesmo, ou eu sou (me considero) maior que elas e não valem minha atenção?

Percebi-me refletindo sobre um exemplo bem banal. Pensei na instituição casamento. O conceito de ter o amor como motivo para uma união oficial é relativamente novo, algo em torno de 150 a 200 anos. Antes disso, o mais amplamente aceitável era utilizar o casamento como uma forma de legitimar uma sociedade entre famílias. Então, questionei-me, os casais do passado eram felizes? Bem, a resposta vai depender da definição para felicidade. Se a definição que vale é a atual, de casar-se com quem se ama, aquelas pessoas não eram felizes. Mas se o sentido for honrar um compromisso, ou construir uma aliança, sim, aquelas pessoas eram bem felizes.

Desenvolvendo um pouco mais o conceito moderno de casamento, há pontos positivos e negativos em basear uma decisão no que podemos chamar de paixão, ou bem estar. E sim, eu vou falar apenas dos negativos. Aqueles sentimentos, por mais fortes que sejam, passam. A paixão, por exemplo, é como uma dose de qualquer entorpecente injetado direto na veia. O efeito sempre passa e são necessárias porções cada vez maiores, ou drogas diferentes, para continuar obtendo o mesmo efeito. Portanto, quando a felicidade se baseia sobre esse tipo de fundação, ela está fadada a ter que ser reconstruída a cada êxtase que se exauri. Porém, quando a felicidade se suporta sobre conceitos como promessa, honra e moral, a chance de mantê-la a longo prazo, inclusive de ficar mais forte e firme, é muito elevada. Um bem maior sempre estará lá, ele não se consome com o tempo. E mais ainda, essa felicidade é lúcida, pois depende exclusivamente do cumprimento do que se decidiu. Ela não depende do estado de espírito ou dos hormônios na corrente sanguínea, que com o tempo se consomem.

Quando eu troco um ideal moral por algo efêmero, eu estou construindo minha casa sobre terreno arenoso. Então, eu sempre vou ter que reconstruí-la após ondas e mais ondas, ou ventos e mais ventos.

É engraçado, pois nós, que a todo momento buscamos nos eternizar, fazemos isso justamente do jeito errado. Pense, a moral, a honra e o bem maior são coisas que deixamos marcados nos outros. Já a felicidade baseada no próprio umbigo é individualista, é algo que nós levamos conosco, e só conosco. Quando deixamos tudo para trás para nos preocuparmos apenas com nossa felicidade, nós já morremos, pois as pessoas aprendem a viver sem nossa presença. Entretanto, quando nós temos por felicidade o cumprimento das promessas, a honra a um ideal e a luta por um bem maior, nós deixamos marcas na vida dos outros. A felicidade particular é uma preocupação consigo mesmo. Moral e honra são preocupações com os outros, é dizer que nossa felicidade é a felicidade dos outros. É fazer com que o mundo precise de nós, pelo menos um mundo em quase oito bilhões de mundos.

Ouvi alguém dizer que a justiça humana é a luta por compensações em nosso favor, custe o que custar e a quem custar, depois de termos sofrido sacrifícios. Já a justiça divina é lutar pelo bem maior sempre, independente do sacrifício que teremos que sofrer. Calma... Não aplique esse raciocínio da forma como Hitler fez. Ele sacrificou o outro em prol de si mesmo, e foi exatamente esse individualismo e egoísmo que sutilmente criticamos parágrafos acima. Refiro-me ao oposto, a justiça divina é o sacrifício próprio em prol de um bem maior para o outro.

Desviando: Alguma vez você já escolheu a si mesmo ao invés de escolher o outro e sentiu, lá no fundo, que não deveria ter feito isso? Pois é, temo que essa sensação lhe acompanhe para o resto da vida. A não ser que, se ainda houver tempo, você volte atrás. E se tem uma coisa que eu aprendi nessa vida é que precisa-se de mais coragem para tomar a decisão correta do que a decisão errada.

"Porque nós somos aqueles que querem jogar
Sempre querem ir
Mas você nunca quer ficar
Nós somos aqueles que querem escolher
Sempre querem jogar
Mas você nunca quer perder
(...)
Quando você deixa de ter uma mente pequena
Você liberta sua vida"

Voltando: Enfim... Dito tudo isso, eu gostaria de apelar para as suas sensações, mas não para a sua racionalidade. Durante seu dia, você não tem a sensação de que tem algo errado com esse mundo, mas que você não consegue explicar? Ao olhar para as pessoas, ao ouvir suas conversas, ao presenciar suas manifestações, ao saber ao que dão importância, ao ver como se relacionam, ao presenciar suas futilidades, você não tem uma sensação de desconforto? Quando você pensa na sua própria vida, você não sente que está faltando algo, ou fazendo algo errado, mas que você não sabe bem o que é? Você pode sentir o caos? Consegue senti-lo no seu dia a dia?

Quem sabe esse meu texto seja apenas uma tentativa de dar uma resposta a essa minha sensação. Ou talvez algo esteja acontecendo mesmo. Quem pode saber? Aliás, essa sensação tem sido a inspiração para todos os meus textos nesse blog. Eu não sei explicar bem o que está acontecendo no mundo, mas parece ser algo inevitável.

"Saiba disto: nos últimos dias sobrevirão tempos terríveis. Os homens serão egoístas, avarentos, presunçosos, arrogantes, blasfemos, desobedientes aos pais, ingratos, sem valores, sem amor pela família, irreconciliáveis, caluniadores, sem domínio próprio, cruéis, inimigos do bem, traidores, impulsivos, soberbos, mais amantes dos prazeres do que amigos de Deus, tendo aparência de piedade, mas negando o seu poder."



domingo, 25 de agosto de 2019

Copo Meio Cheio, ou Meio Vazio?

"Pode ser que nos guie uma ilusão; a consciência, porém, é que nos não guia."




Ilusão de ótica é uma imagem que engana o nosso sistema visual, fazendo-nos ver algo que não está presente ou que é de outro modo. Geralmente, isso ocorre porque imagens deste tipo confundem os atalhos que nosso cérebro desenvolveu para interpretar com sucesso o mundo à nossa volta.

Na figura abaixo à esquerda, vemos o quadrado A mais escuro que o quadrado B. Porém, veja na figura à direita que, quando inserimos duas retas da mesma cor de A, elas se misturam também à cor de B. Isso indica que, na realidade, os dois quadrados possuem a mesma tonalidade. O que causa a ilusão é a quantidade de luz que chega aos nossos olhos.


Nosso cérebro desenvolveu-se para ser capaz de diferençar um quadrado branco pouco iluminado de um quadrado negro muito iluminado. Para fazer essa diferenciação, ele precisa considerar a luminosidade constante e, assim, em situações como da figura acima, ele acaba sendo iludido.

Repare em outro exemplo, na figura abaixo. Apesar de serem iguais, nosso cérebro tem a ilusão de que as retas horizontais possuem tamanhos diferentes, sendo que a inferior parece ligeiramente menor.


Este segundo engano acontece, pois nossa mente aperfeiçoou-se em estimar perspectivas. É este atalho que ela toma que nos permite, por exemplo, entender que uma pessoa não está diminuindo de tamanho ao passo que se afasta de nós. Novamente, nos aproveitamos de um recurso útil de nosso sistema visual para persuadi-lo.

Pois bem, baseado na ocorrência de ilusões de ótica, eu tive um lampejo. É possível que nosso cérebro seja ludibriado também por ilusões de conceito, assim como com ilusões de ótica?

O primeiro caso que veio à minha mente foi o de pessoas famosas. Veja, por exemplo, os astros internacionais Marilyn Manson, Lady Gaga e Miley Cyrus (poxa, não citei nenhum brasileiro; não sei se isso foi bom ou ruim). Quando estas pessoas estão sobre um palco, ou diante de uma câmera, vivem uma personagem rebelde, passando uma mensagem de liberdade, de mentalidade progressista e de rompimento com os padrões. Um adolescente admira esta demonstração de espírito "selvagem" e livre, pois parece ser a resposta para seus sentimentos em ebulição. Então, aquele jovem passa a copiar a maquiagem, as roupas, o comportamento, as palavras, a rebeldia etc de seu ídolo. Aquela "criança" começa a viver durante 24 horas de seu dia o conceito que aprendeu com o famoso. Porém, o astro, em si mesmo, vive aquele comportamento somente durante suas exibições. No cotidiano, aquele ídolo é tão prosaico quanto qualquer um. A pessoa formadora de opinião sugere comportamentos fora do padrão quando é vista, mas quando não é, ela tem hábitos tão banais quanto os de uma pessoa comum. Portanto, o cérebro do jovem foi enganado por uma ilusão de conceito.

Recentemente, presenciei outro caso. Uma mulher, que atualmente se reconhece como homem, deu a seguinte declaração: "órgão genital não define nada". Provavelmente ela esteja certa, dependendo do aspecto avaliado. Quem pode saber? Porém, nosso objetivo não é discutir isso. O ponto que quero destacar é, de onde veio essa declaração? Pois partiu de uma pessoa que fez tratamento hormonal para criar barba e formas masculinas, e que fez uma operação plástica para retirar os seios. Percebe? Ela fez uma alegação que pode influenciar dezenas, centenas, milhares de pessoas a tomarem para si a ideia que ela transmitiu, mas ela mesma não vive aquela ótica, uma vez que uma simples barba e seios definem muita coisa para ela. Outra ilusão de conceito, pois com as palavras é dito uma coisa, mas com a vida é dito outra. No que devemos acreditar?

O conceito que ouvimos nos faz inferir diversos comportamentos e estilos de vida a respeito da pessoa que o proferiu, mas que não são necessariamente verdade. De fato, na maioria das vezes, não é verdade.

O que mais em nosso dia a dia é ilusão de conceito? Pense na política, nas reportagens de TV e da internet. Pense nos jornais impressos e nas revistas. Pense nas ideologias e nos discursos militantes espalhados pela sociedade. Pense nos padres, nos pastores, nos sacerdotes, nos médiuns e nos pais de santo. Pense sem seu chefe, no seu terapeuta, no seu coach (já que está na moda), no seu professor, no seu instrutor da academia, em seu médico. Pense em seus pais, em seus filhos, em seus parentes. Pense em seu colega de trabalho e no amigo que toma uma cerveja com você. Pense em tudo o que você ouve e lê. Então, questione-se, quais são as ilusões de conceito?

Desviando: Uma árvore pode parecer uma macieira, pode ter folhas como uma macieira, pode cheirar como uma macieira, pode dar sombra como uma macieira, mas se der laranjas, inequivocamente será uma laranjeira.

"Toda árvore é reconhecida por seus frutos. Ninguém colhe figos de espinheiros, nem uvas de ervas daninhas."

Voltando: Enfim, cheguei ao ponto que é o objetivo desta reflexão. A dúvida para a qual tentei obter uma resposta, mas que, como de costume, só me trouxe mais dúvidas.

Dias atrás, recebi um vídeo onde Eduardo Marinho questionava as ilusões oferecidas pelo mundo que construímos. Concordei com todas as observações dele, mas algo me incomodou. Não nele, mas em mim. Pensei um pouco e concluí que foi o fato de perceber que talvez não seja possível ser diferente do que se critica. Eu me perguntei, afastar-se das ilusões que o mundo oferece é menos alienado, é aproximar-se mais da verdade? Existe mesmo diferença entre uma pessoa que escolhe buscar tudo o que o mundo oferece e outra que escolhe privar-se das mesmas ofertas? Seria possível que o desapego às ilusões seja apenas uma ilusão de conceito?

Uma pessoa quer viver todas as "riquezas" e a outra quer isolar-se de todas elas. Pois agora penso que ambas são iguais, uma vez que tem o mesmo objetivo, mas o que as diferencia é o objeto. Uma quer ter muito para ser imune às frustrações, a outra não quer ter nada para ser imune às mesmas frustrações. Uma quer ter tudo para ser melhor que os outros e a outra pensa que é melhor por querer não ter nada. Ambas estão apenas querendo inflar seu ego, ou protegê-lo, cuidando do próprio umbigo. O valor de uma é material, o valor da outra é a renúncia. Porém, tanto o querer quanto o não querer continuam sendo "riquezas", ambos são motivos de busca, de orgulho e assim são considerados. Os dois tipos de pessoas continuam ansiando por satisfação. A diferença é o que cada uma reconhece como felicidade.

Desviando: "Tem aqueles achando, mais ou menos, que menos é mais
Mas se menos é mais, como você mantém um placar?
Quer dizer que pra cada ponto que faz, seu nível cai
É como começar do topo"

Voltando: Cada uma das duas pessoas do exemplo tem suas justificativas para considerar o copo meio cheio ou meio vazio, e não é possível refutá-las. Porém, o difícil mesmo é olhar para a realidade é ver apenas um copo com água.

Então fiquei pensando, quem pode libertar-se? Existe alternativa? Quem sabe a escapatória seja a opção de deixar o próprio umbigo de lado e passar a preocupar-se com o bem estar do outro e não de si mesmo. Ao invés de se inquietar com a questão se seu copo está meio cheio ou meio vazio, talvez a solução seja oferecê-lo a quem está com sede. Só espero que essa terceira alternativa não seja apenas mais uma forma de culto ao próprio umbigo.

Se desejar ler outras opiniões minhas sobre o umbigo, clique aqui, aqui e aqui.

domingo, 14 de julho de 2019

Cara de Um, Focinho de Outro

"Todo reino dividido contra si mesmo será arruinado, e toda cidade ou casa dividida contra si mesma não subsistirá."


Às vezes, quando criança, alguns amigos ou parentes viam em meu irmão um comportamento, um gesto, uma expressão facial, ou um tom de voz que lembravam aos meus próprios. Então, logo usavam aquele dito que denota uma hereditariedade comportamental, dizendo a ele: "É incrível como seu irmão 'puxou' a você". Porém, como hereditariedade segue obrigatoriamente o sentido do mais velho para o mais novo, e como ele é o irmão mais novo, as mesmas pessoas, ao perceberem o pequeno equívoco causal, logo se retratavam reformulando a frase direcionada a ele: "Quero dizer, é impressionante como você 'puxou' o seu irmão". (Sinceramente, não me recordo bem, é provável que a história esteja invertida).

Mas por que eu me lembrei disso?

Esta reportagem aqui é uma resenha sobre o filme brasileiro "Divino Amor" (recomendo mesmo que você a leia). Ela conseguiu representar o que é o filme com mais competência do que a sinopse. Quero dizer, a reportagem detalhou os pontos fundamentais para o entendimento da obra, ou da mensagem. De qualquer forma, segue a sinopse:

"Joana (Dira Paes) trabalha como escrivã em um cartório e, profundamente religiosa e devota à ideia da fidelidade conjugal, sempre tenta demover os casais que volta e meia surgem pedindo o divórcio. Tal situação sempre a deixa à espera de algum reconhecimento, pelos esforços feitos. Entretanto, a situação muda quando ela própria enfrenta uma crise em seu casamento."

Se preferir, segue aqui o trailer, mas, mesmo nesse caso, os detalhes não ficaram tão claros como a reportagem conseguiu elucidar.

Minha intenção não é comentar o filme, pois, contra a minha opinião, qualquer um dos seguintes argumentos em prol da película seria mais forte: liberdade de expressão, crítica, obra de arte, ou ficção. Meu juízo perderia força, mesmo que se enquadrasse nas duas primeiras opções da mesma lista de argumentos. E antes de tudo, nem ao menos vi o filme.

Enfim, o que quero destacar especificamente é a definição sobre o cristianismo dada pelo cineasta dentro da reportagem supra citada:

"É uma religião muito sofisticada, complexa e eficiente. Tem um projeto hegemônico. Ela é capaz de se apropriar da cultura pop, da sedução e de práticas que a gente considera de esquerda para radicalizar ainda mais uma agenda conservadora."


Lendo essa ideia do cineasta, veio imediatamente à minha mente as seguintes perguntas: Quem é o irmão mais velho nessa história? O cristianismo, ou a "esquerda"? Quem "puxou" quem? Quem herdou de quem?

Cheguei a uma conclusão própria como resposta e, em função disso, tomei a liberdade de reformular a frase do cineasta:

"A esquerda é uma ideologia muito sofisticada, complexa e eficiente. Tem um projeto hegemônico. Ela é capaz de se apropriar da cultura pop, da sedução e de práticas que a gente considera cristãs para radicalizar ainda mais uma agenda progressista."

Desviando: Nietzsche disse, ou escreveu, certa vez: "O cérebro verdadeiramente original não é o que enxerga algo novo antes de todo mundo, mas o que olha para as coisas velhas e conhecidas, já vistas e revistas por todos, como se fossem novas. Quem descobre algo é normalmente esse ser sem originalidade e sem cérebro chamado sorte."

Voltando: Uma da duas opiniões sobre o cristianismo está errada, ou a do cineasta responsável pelo filme "Divino Amor", ou a minha. Um de nós dois corrompeu o verdadeiro significado em prol de propósitos pessoais. Um de nós dois está enganado. Um de nós dois está desviando a sua atenção da causa principal. Porém, apesar de creditar responsabilidade a quem seja devida, não credito culpa. Eu tendo a crer que aquele que esteja equivocado (ele ou eu), o está de forma inconsciente e com sinceridade. A pergunta é, como você vai saber? Porém, não vou tentar responder essa dúvida. Caso você se interesse por ela, siga em frente.

No fim de todo esse bla blá blá, apenas uma coisa me chateia de verdade. Assim como expliquei no inicio, meu irmão herdou algumas características comportamentais que se assemelham muito às minhas. Isso porque eu também herdei as mesmas características, elas não surgiram em mim. De fato, meu irmão não "puxou" a mim, mas ambos somos "cópias" dos nossos pais. Por isso somos chamados irmãos. E ser irmão implica em unidade, mas não em divisão. Sermos irmãos implica em objetivo comum em prol do bem da família. Da mesma forma, o cristianismo e a "esquerda" possuem objetivos comuns, mas por algum motivo não há unidade e sim divisão. Nesse caso, irmão combatendo irmão, deixando de prestar atenção àquilo que deveria uni-los. Aliás, ambos desviando seus esforços da causa primeira e voltando-os para um novo objetivo, o de querer ser melhor que seu irmão.

A rachadura já abalou o alicerce, mas a casa ainda não caiu. Será que dá tempo?