domingo, 12 de dezembro de 2021

Lançamento do e-book "Formigueiro 52A"

"Palavra puxa palavra, uma ideia traz outra, e assim se faz um livro, um governo, ou uma revolução."

Machado de Assis

É com muita alegria que compartilho o lançamento do meu e-book, "Formigueiro 52A", em parceira com a Editora Brilho Coletivo, já disponível na Amazon. Ele é uma evolução direta deste blog, que mantenho desde abril de 2015. E assim como no blog, o livro ganha forma a partir das inquietações geradas pela realidade paradoxal, delirante e fantasiosa que criamos.

A obra apresenta onze contos, com os quais tento revelar minha alma inquieta – por assim dizer... desconfortável com a lógica que usamos para construir nossa realidade. Como gosto muito de comparações, a leitura de cada história poderia se assemelhar a um salto ao mar, fazendo com que o leitor se sinta leve, deixando-se lançar distraidamente à realidade óbvia do contexto de cada narrativa. Entretanto, o "impacto na água" é inevitável, quando os paradoxos do comportamento humano são revelados, provocando espanto e irritação, ora pela revelação do equívoco dos paradigmas, ora pelas incoerências agora tão claras – antes displicentemente desapercebidas –, ou ainda pelo leitor se sentir inevitavelmente impelido em colocar em xeque as certezas do presente século – ou pelo menos algumas delas.

Soma-se aos contos a sessão de comentários, através dos quais as motivações para cada história são reveladas. No entanto, diferente do que se possa esperar, em cada uma das análises não são encontradas respostas para os dilemas apresentados nas narrativas, mas elas acrescentam mais angústias, perguntas e reflexões, agora na forma discursiva, assim como aperfeiçoado ao longo de anos, através deste blog.

Acesse o e-book aqui, confira a descrição/sinopse, adquiria o seu e deixe seu comentário.

Atualização: Agora também é possível adquirir a cópia impressa do livro “Formigueiro 52A", lançado através da plataforma “Clube de Autores”, clicando aqui, ou usando o botão "Clube de Autores" no painel ao lado.

Formigueiro 52A: Nós nascemos nesta terra, nesta realidade, e tudo nos parece equivocadamente óbvio

Agradecimento: a todos que me acompanham neste blog e que, por isso e mesmo sem saber, me motivaram a escrever este e-book, apenas estando juntos aqui comigo.


sexta-feira, 26 de novembro de 2021

Leite Derramado... Que Leite?

"E assim é o ser humano: tão vazio que se preenche com qualquer coisa, por mais insignificante que seja." 

Blaise Pascal

O fonógrafo de cilindro foi, na prática, o primeiro dispositivo mecânico de gravação e reprodução sonora. Inventado por Thomas Edison em 1877, popularizou-se de tal maneira que tornou o cilindro um dos itens mais consumidos entre os anos de 1880 e 1910. Em 1889, surgiu o gramofone, ou fonógrafo de disco, cuja concepção é atribuída a Emile Berliner. Os discos eram mais fáceis de produzir, transportar e armazenar, além disso, permitiam gravações de som nos dois lados. Não à toa, após certo aprimoramento, os discos dominaram a indústria fonográfica até o final do século XX. Mais adiante, avanços na elétrica e no magnetismo possibilitaram a criação das fitas cassete, oficialmente lançadas em 1963, pela empresa Philips. Elas consistiam em fitas com dados armazenados magneticamente também dos dois lados, contribuindo ainda mais com a economia de espaço e facilidade de manuseio – também introduziram a facilidade da regravação doméstica. Já entre as décadas de 80 e 90, surgia o disco compactocompact disk (CD) –, que permitiu o armazenamento de dados digitalmente. Entretanto, o CD foi pouco longevo, pois a tecnologia que permitiu o seu surgimento, também foi o seu fim. Hoje, o principal meio de gravação e reprodução de som é o digital (pen-drives, celulares e streamings).

Dias atrás ouvi uma gravação de voz, era uma despedida incerta de alguém. Incerta, pois insinuava uma expectativa de que o trágico destino ainda pudesse ser apenas uma hipótese equivocada. Dizem que a "esperança é a última morre", ou que "no fim tudo dá certo".

Desviando: Interessante, escrevendo o parágrafo anterior, lembrei-me de um relato de Leonard Mlodinow, em seu livro Subliminar. Darei crédito ao "modo automático" de minha mente, no seu processo de "ligar pontos", sem tentar entendê-la. Leonard disse que, certa vez, o seguinte experimento foi feito... Separaram dois grupos de pessoas e disseram a todos que um novo teste havia sido desenvolvido, para detectar um tipo qualquer de câncer. O exame consistia em lamber uma fita de papel, de modo que o diagnóstico seria dado pela alteração, ou não, da cor da fita. Com os grupos separados, a um foi dito que, se a fita permanecesse branca, após a lambida, o resultado era negativo para o tipo de câncer em questão. Ao segundo grupo foi dito que, se a fita continuasse branca, o resultado era positivo. O que não foi dito aos dois grupos é que as fitas eram simples pedaços de papel e que não havia nada nelas que pudesse fazê-las mudar de cor. Enfim, todas as pessoas do primeiro grupo lamberam uma única vez a fita e se deixaram aliviar da tensão nos ombros. Enquanto as pessoas do segundo grupo, uma a uma, lamberam a fita, uma, duas, três, quatro, incontáveis vezes, até a exaustão, no anseio desesperado de que ocorresse a alteração de cor, até desistirem e devolverem as fitas aos experimentadores, com o olhar de uma criança que é obrigada a devolver o brinquedo a um adulto. Sei qual olhar é esse e me compadeço quando ele vem de adultos. Às vezes, podemos senti-lo até no tom de voz. Acho que foi essa a associação da minha mente com a gravação que mencionei.

Voltando: A pessoa dona da voz fez a gravação minutos, ou quem sabe segundos antes de sua morte. O que ela não sabia ainda era "como" lhe aconteceria, ligeiramente diferente de nós, que, por enquanto, não sabemos "se" algo pode nos acontecer em minutos.

O que me inquietou foi o fato de aquela gravação ter sido feita vinte anos atrás e não existir nada nela que me fizesse desconsiderar a possibilidade de ter sido feita há somente vinte minutos. Aliás, eu só me dei conta que era uma gravação antiga minutos após tê-la ouvido, quando entendi do que se tratava.

É muito estranho que a evidência da existência de uma pessoa não seja suficiente para identifica-la no tempo. Não tendo, aquela mensagem, sido gravada há vinte minutos, mas sim há vinte anos, faz com que ela não signifique nada hoje. Digo, perde-se a necessidade de efeito para uma causa – ou vice-versa. É só um registro, mas não um "gatilho". E por não significar nada hoje, permanecendo a indiferença da evidência no tempo – por não ser possível identificar se hoje, ou se há vinte anos –, por que eu deveria acreditar que a mensagem teve algum significado no momento em que foi criada? A gravação, no instante em que a ouvi, era somente um "nó" no tempo, unindo o "agora" com o "há vinte anos". Ela fez o passado parecer um sonho. Nós parecemos um sonho.

Percebe? A marca no tempo não perpetuou, ao contrário, revelou a insignificância. Chego à conclusão de que um legado não nos eterniza, mas nos confina. Ele confirma que não somos nada. Uma marca no tempo é apenas um "nó", eliminando todo significado e importância que damos ao "tique-taque". Não faz a menor diferença. Não fazemos a menor diferença.

Desviando: A quem possa interessar, aquela gravação foi a despedida de uma passageira de um dos voos do atentado de 11 de setembro, em 2001, nos EUA. Também já falei sobre nossa insignificância aqui.

Voltando: É muito estranho ouvir uma pessoa falar sobre a hipótese da sua morte, minutos ou segundos antes de ela se concretizar, quando hoje sabemos que foi tão certa. A irracionalidade de nosso cérebro parece nos impelir a tentar entrar em contato com aquela pessoa, do "agora" para "há vinte anos", e dizer a ela o que precisa ser feito, ou o que ela vai enfrentar. Nossa mente não "desata" bem "nós" no tempo.

Nossos corações, definitivamente, não foram preparados para aceitar o leite derramado, inclusive e principalmente, quando a jarra de leite é a nossa própria existência. E essa é causa, encarar o leite derramado nos revela que nós nem sabemos se existimos de verdade.



terça-feira, 19 de outubro de 2021

Vento, Ventania...

"Na admissão de uma opinião ou doutrina, os homens consultam primeiramente o seu interesse, e depois a razão ou a justiça, se lhes sobeja tempo." 

Marquês de Maricá

A Segunda Guerra Mundial, que ocorreu entre os anos de 1939 e 1945, foi causa de 70 milhões de mortes, aproximadamente. Um estado de guerra total, quando os envolvidos destinaram suas capacidades industriais, econômicas e científicas em prol do combate. Foi durante aquele conflito que ocorreu o Holocausto, quando aproximadamente 20 milhões de civis perderam suas vidas, entre eles, judeus, soviéticos, poloneses, ciganos, pessoas com necessidades especiais, homossexuais e testemunhas de Jeová. Além disso, também foi a única vez em que armas nucleares foram utilizadas, mas como "a história é [contada] pelos vencedores" – com a liberdade de parafrasear George Orwell – dizem que existiu somente um "bicho-papão" naquela batalha, o restante "entende-se" por atos "legítimos".

Desviando: Recomendo o filme Conspiração, sobre a decisão pelo Holocausto, ele é muito bom. E tenho a impressão que a frase "a história é contada pelos vencedores" também já foi dita por alguém.

Voltando: Utilizando a Segunda Guerra como pano de fundo, arriscarei tratar de um tema já mencionado superficialmente aqui, mas agora com um texto completamente dedicado a ele. A dúvida que desejo retomar é, o que torna um ideal moral elevado, seu aspecto conceitual, ou seu resultado prático?

No livro "O dilema de Einstein", o autor Jeremy Stangroom propõe o que ele chama de um impasse ético. Se tivéssemos uma máquina do tempo, deveríamos voltar ao passado e matar Adolf Hitler antes de sua ascensão? Responder que sim é um ideal moral elevado conceitualmente. Entretanto, e se nós tivéssemos nascido em consequência da ocorrência da Grande Guerra? Aliás, se tivéssemos sucesso em nossa empreitada temporal, o que seria dos filhos, netos, bisnetos e tataranetos de casais que se uniram em virtude do conflito e que hoje povoam o planeta, imensuravelmente? Muitas pessoas ficaram viúvas, conheceram novos parceiros durante e após o conflito, e seus descendentes "foram abençoados, foram férteis, multiplicaram-se, encheram a terra e subjugaram-na". Bem, poderíamos "resolver" essa questão sustentados na matemática, dada a proposta de ser a "única explicação para o Universo". Para isso, bastaria verificarmos se hoje os descendentes da Guerra superam as 70 milhões de vítimas fatais do combate – isso foi uma ironia. Pois é, por que confiamos tanto na nossa capacidade de julgamento?

O que estou tentando entender é, o que acontece com um ideal moral conceitualmente elevado quando levamos em conta as consequências práticas dele? E, caso essa história de viagem no tempo pareça abstrata e fantasiosa, o mesmo paradoxo ocorre em uma situação mais verossímil, também apresentada pelo Jeremy em continuidade à discussão do tema. Ele discorre sobre um nascimento como resultado de um estupro:

"(...) se não há uma exigência moral de alguém sacrificar a própria vida para impedir determinado mal, então também não se pode exigir que a pessoa lamente a ocorrência de um mal se a única maneira de o impedir seria à custa de sua existência.

"Entretanto, embora aqui acabe o paradoxo – obrigação moral de lamentar a ocorrência de um grande mal –, ainda seria estranho dizer que não lamentamos o Holocausto. Será que podemos trazer de volta as lamentações?

"Só podemos especular a possível construção de tal argumento. Veja, por exemplo, o que podemos dizer de um estupro que resultou em um nascimento.

"A. Sinto muito que o custo da minha existência tenha sido seu estupro.

"B. Sinto muito por você ter sofrido.

"A expressão do sentimento pode ser quanto aos fatos nus e crus da situação. 'Sinto muito que tenha sido assim. Escolho a existência, mas, se eu pudesse alterar as circunstâncias de meu nascimento, o faria'. Essa é uma forma de lamentar não a ocorrência do estupro, mas sim o fato de que só por meio dele uma existência foi possível."

Sabe por qual motivo os impasses anteriores ocorrem? Porque um ideal moral elevado conceitualmente pode deixar de sê-lo quanto aos seus resultados práticos. Ou assumimos isso, ou somos potenciais máquinas de matar à mercê de gênios em retórica.

Não foi isso o que aconteceu na Segunda Guerra Mundial? Os líderes de ambos os lados fundamentaram seus discursos sobre ideais morais elevados conceitualmente, pelo menos para seus próprios povos, sem apresentar também às suas respectivas nações quais seriam os resultados práticos dos mesmos ideais.

Não é estranho pensar isso, que verdades podem ser usadas para sustentar mentiras? Pensando assim, quem sabe Platão chegasse à conclusão que o homem não tem que sair da Caverna, mas a Luz é que deveria penetrá-la.

Bem, por enquanto estamos apenas xingando nossos "adversários" de boçais, gado, "esquerdopatas", fascistas, facínoras, escrotos, safados, etc. Tem xingamento para todos os gostos e para todos os lados, sem falar nos "linchamentos virtuais". Já paramos para ponderar a profundidade disso, de pessoas se ofendendo por causa de diferenças políticas?

"É assim que começa. A febre, a raiva, a sensação de impotência, que transforma homens bons em cruéis."

Alfred – Batman VS Superman (2016)

Diariamente, sofremos bombardeios com esse tipo de impasse moral, seja na TV, na igreja, na escola, no cinema, nas revistas em quadrinhos, nas redes sociais, na barbearia, na manicure, etc. E nunca – assumindo o risco da generalização –, nunca se trata igualmente, ou se leva em consideração na mesma proporção, os resultados práticos dos conceitos morais. Somos péssimos em simulações mentais.

Atualmente, temos sido impelidos a "engolir" ideologias originadas em ideais morais elevados conceitualmente, sem que sejam também analisados os resultados práticos. Vou além, até mesmo o fato de se propor colocar em discussão um ideal moral pode fazer sermos tachados, excluídos, classificados, rotulados, julgados, condenados e virtualmente linchados por esse posicionamento. E o problema disso é, quando os dois lados lutam pela "verdade e justiça" como distinguir quem é o monstro? Ora, "a história é contada pelos vencedores."

Desviando: Coincidentemente, dias atrás eu ouvi a seguinte frase de José Antonio Bruno: "Nenhuma ideologia propõe a morte do seu ego. Nenhuma delas propõe uma nova natureza humana, um salto ontológico existencial para ser um novo ser."

Voltando: Concluo com a observação de que sempre somos levados por "ventos de doutrinas" e pior, nos deixamos levar, às vezes cegamente, outras vezes negligentemente, quase sempre convenientemente. Há esperança? Não sei, mas Mario Quintana já disse certa vez, "no fim tu hás de ver que as coisas mais leves são as únicas que o vento não conseguiu levar."

sábado, 25 de setembro de 2021

Pobre de Marré Deci

"É bem difícil descobrir o que gera a felicidade; pobreza e riqueza falharam nisso." 

Elbert Hubbard

(endereço para o vídeo fonte da imagem)

O Curupira é uma personagem lendária, caracterizada por pele e cabelos avermelhados e também por possuir os pés invertidos, ou seja, o calcanhar é virado para frente e os dedos são voltados para atrás. Através de assovios e sinais falsos, ele atrai as pessoas para dentro da floresta, onde as espanca, corta, mutila e mata.

Um outro mito do folclore brasileiro é o Boitatá. Diz-se ser uma serpente de fogo que protege matas e florestas, atacando e queimando aqueles que tentam atear fogo na vegetação. É encontrado principalmente em regiões de lagos, rios e pântanos.

Esses dois monstros, por um longo período, foram úteis para assustar a garotada que crescia no campo. Já no meu caso, crescido na cidade, o medo se concentrou no Homem do Saco, que pegava as crianças solitárias e distraídas na rua, dando a elas algum destino obscuro longe dos pais, para sempre.

Hoje sabemos que todos esses monstros não existem (batendo três vezes na madeira), assim não são mais usados para assustar crianças. Entretanto, não é prudente igualmente ignorar os perigos reais que eles representavam. Por exemplo e muito provavelmente: o Curupira foi a personificação de ataques de onças em mata fechada; o Boitatá pode ter sido a percepção de ambientes inflamáveis, devido a decomposição de matéria orgânica (fogo-fátuo), ao redor do qual não se deveria acender uma fogueira, ou uma tocha; o Homem do Saco era sequestradores que raptavam crianças com os mais variados objetivos nefastos. E tanto ainda hoje não ignoramos os riscos antigos e novos, que nossas estratégias atuais, para proteger as crianças, é "prendê-las" dentro de casa, utilizando como atrativo a TV, o computador e os jogos eletrônicos.

Pois bem, paralelamente às figuras folclóricas, é compreensível não se acreditar na existência de Deus. Quem sabe até alguém O defina como folclore para adultos? Porém, insistindo na comparação com os casos anteriores, também não se deveria negligenciar as lições que a história da existência de Deus nos oferece.

O que quero dizer? Aquilo que já citei aqui e aqui, que um cético, no real significado da palavra, ou considerando a origem do movimento filosófico da Grécia Antiga, não despreza as tradições, o folclore, Deus e tudo o que eles representam, apenas por deliberar que são meras "criações" humanas. Pelo contrário, sua principal desconfiança é sobre a ideia moderna de que eles nunca serviram, ou já não servem, para ensinar algum aspecto significativo sobre a nossa humanidade.

"Contos de fada não dizem às crianças que dragões existem. Crianças já sabem que dragões existem. Contos de fada dizem às crianças que dragões podem ser mortos."

G. K. Chesterton

E para explicar o motivo pelo qual pensei em tudo isso, precisarei expor o que disparou a minha inquietação. Foi quando eu assistia a um documentário sobre o crime cometido contra o herdeiro da Yoki. Em determinado momento da entrevista a protagonista disse: "Sempre fui pobre, minha mãe nunca teve dinheiro para me dar uma boneca". Naquele momento, tornou-se inconsistente na minha mente o fato de uma criança, e também um adulto, medir a riqueza da família através da falta de um brinquedo.

Posteriormente, fiquei me questionando... Quem coloca na mente de uma criança que ter um brinquedo é sinônimo de riqueza e fartura? Que tipo de mensagem chega ao ouvido e aos olhos da criança para que ela faça essa associação? Por que ela passa a comparar a própria realidade – escola, atividades com a terra e animais, brincadeiras livres pelo campo, diversão em meio a árvores e córregos, frutas disponíveis no pé, carne, leite e ovos frescos preparados em fogão a lenha, etc. – com um brinquedo e se convence que é pobre? E por que, enquanto adulto, continua acreditando nisso? Como a mensagem sussurrada a uma criança é capaz de ecoar no ouvido do adulto? Com que propósito essa relação é criada?

Por que medimos o grau de pobreza de um indivíduo, ou de uma família, através do bairro no qual se reside, da festa de aniversário, do brinquedo no Natal, do celular, do vestuário, do automóvel, do cartão de crédito, etc? Quem define o que é riqueza, o indivíduo, ou a sociedade? Quem entre eles define a qualidade e o valor da posse? Quem estabeleceu a escala entre pobreza e riqueza? O que é ser rico e o que é ser pobre? (Tentei falar sobre isso aqui também.)

Desviando: Não me atrevo a tentar responder principalmente a última pergunta, "o que é ser rico?", pois tenho certeza que meu intelecto e minhas palavras iriam querer sugerir algo elevado, mas minhas ações e minha forma de vida iriam me contradizer. Quero dizer, eu poderia "falar" que todas as definições de riqueza e pobreza são dadas pelo indivíduo, mas meus "atos" revelariam aquilo em que acredito mesmo, que é a sociedade quem define os valores. Sejamos sinceros, isso funciona porque a gente gosta da competição, ela nos estimula, nos excita, nos provoca, nos instiga.

Voltando: Foi então que ocorreu o choque, pelo menos em minha mente, entre o relato da "garota pobre" e o pretexto do "folclore", que finalmente vou explicar.

Dias atrás me perguntaram: "Por que Deus valoriza tanto a pobreza? Por que tanto aconselhamento contra a riqueza na Bíblia? Por que tanta abnegação e tanto desapego como algo elevado? Por que das doações e dos jejuns?" Convenhamos, é uma pergunta muitíssimo pertinente. Por que Deus parece se interessar tanto pela pobreza?

Espante-se, quem me respondeu isso foi o relato da "garota pobre". Todas aquelas perguntas tem um aspecto oculto. Elas são feitas sob a nossa conjuntura atual, ou seja, pressupondo que os valores que nós estabelecemos para a riqueza e a pobreza são reais. Sendo assim, quando vemos Deus "exortando" a pobreza e desencorajando a riqueza, não é que Ele esteja nos dando uma resposta. Pelo contrário, na verdade e de fato, Ele está nos fazendo uma pergunta. Ele está nos questionando se estamos prestando atenção nas associações que estamos fazendo e em que tipo de águas estamos "mergulhando". Ele está colocando em xeque nossos padrões e as definições que escolhemos como verdadeiras.

Você já se perguntou por que você valoriza o que valoriza, onde essa relação foi construída e com o propósito e intenção de quem?

Há uma frase atribuída a Karl Marx que diz o seguinte:

"Os homens fazem a sua própria história, mas não o fazem como querem... a tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos."

Entretanto, se todas as minhas observações anteriores estiverem certas, ou se pelo menos você concordar com elas, apesar de Marx estar certo quanto ao objetivo da crítica, a causa definida por ele não poderia estar mais equivocada. É justamente uma tradição milenar que está tentando nos alertar contra as cadeias nas quais nós mesmos, instintiva e miseravelmente, tendemos a nos encarcerar.

segunda-feira, 30 de agosto de 2021

Um deus Banguela

 "Na verdade continuo sob a mesma condição, distraindo a verdade, enganando o coração"

Antes que seja tarde – Pato Fu

Eu li um pouco sobre a história das próteses dentárias. Por volta de 1500 a.C., os egípcios usavam fios de ouro para amarrar os dentes que caíam àqueles que ainda eram saudáveis. Para isso, faziam furos nos dentes bons e também nas gengivas para passar o arame.

Por volta de 700 a.C., os latinos usavam dentes de animais para substituir a dentição humana. Nas Américas, os maias usavam pedras, conchas e também ossos no lugar dos dentes perdidos. Essa técnica era muito eficaz, pois, com o tempo, aqueles materiais se fundiam ao maxilar. Em meados do século XVI, os japoneses fabricavam dentaduras de madeira. No século XVIII, com o aumento do consumo de açúcar e tabaco, não é de se espantar que a necessidade por próteses dentárias também aumentasse. Naquela época, o francês Alexis Duchateau fez as primeiras dentaduras de porcelana, já que aquelas feitas de marfim apodreciam rapidamente. Em 1850, cresceu a produção de dentaduras em ebonite, um tipo de borracha endurecida, onde a porcelana era fixada. Em 1890, a celuloide foi o primeiro plástico industrial usado como base para as próteses. E finalmente, em 1940, a resina acrílica entrou em cena, tornando-se o principal material de construção das dentaduras desde então.

Atualmente, uma dentadura pode até ser considerada um item banal, mas isso para quem tem todos os dentes. A rica história deste objeto sugere o contrário. Aliás, dizem que um homem com sede, perdido em um deserto, seria capaz de pagar milhões por um copo d’água. E é justamente esse espírito que mostra quanto uma prótese dentária pode ser valiosa. Tão valiosa a ponto de, além de restaurar o sorriso e a mastigação das pessoas, também ser protagonista em casos de compras de votos. Aliás, incontáveis são os casos de trocas eleitorais pelos mais variados tipos de benefícios, desde a Proclamação da República, em 1889.

A compra de votos é crime: de acordo com o artigo "41-A" da Lei nº 9.504/1997 (Lei das Eleições); segundo a alínea "j" do artigo 1º da Lei Complementar nº 64/90 (Lei de Inelegibilidades); também conforme a Lei Complementar nº 135/2010 (Lei da Ficha Limpa); e, por fim, pelo artigo 299 da Lei nº 4.737/1965 (Código Eleitoral).

Nota-se que temos tentado ferrenhamente nos proteger da compra de votos. Entretanto, receio que não conhecemos bem o limite entre um voto vendido e outro não. Exemplifico...

Segundo o IBGE, o número de desempregados no primeiro trimestre de 2021 foi de 14,8 milhões de pessoas. Vamos imaginar que, em determinada eleição, um candidato propusesse medidas para reduzir o número de pessoas paradas praticamente a zero. Adicione à nossa hipótese que ele provasse "por A mais B" que isso é possível e que ele realmente obteria sucesso, uma vez eleito. Porém (sim, sempre o "porém"), vamos supor que ao aplicar seus métodos, eu tivesse que me tornar um dos poucos desempregados que ainda restariam e que essa situação permanecesse durante os quatro anos de mandato, obrigatoriamente. A pergunta que me faço é, "nesta condição, eu votaria nesse candidato?"

Nós votamos pelo bem geral ou por interesses individuais? Nós conseguimos identificar esse limite? Ao menos sabemos pelo que votamos? Nós temos um motivo próprio pelo qual votar, ou somos hipnotizados pelas notas doces do Flautista de Hamelin? Se encontrarmos a nossa razão, conseguimos determinar se ela é mesmo mais nobre do que a necessidade por uma dentadura? O deserto de quem é mais seco? Aliás, que "sede" é essa que, de tão instintivamente entranhada, nos faz crer que nos sujeitamos ao flautista por escolha? É como um cego que, de tão cego, acredita que vê, ou nem percebe que não enxerga.

Isso me fez lembrar de uma frase de Orson Scott Card: "se os porcos pudessem votar, o homem com o balde de comida seria eleito sempre, não importa quantos porcos ele já tenha abatido no recinto ao lado."

Desviando: A lenda do Flautista de Hamelin diz que a cidade de Hamelin estava infestada de ratos. Os moradores da cidade contrataram um flautista capaz de hipnotizar os roedores e lhe prometeram uma moeda para cada cabeça dos animais. O flautista hipnotizou todos os ratos, afogando-os no Rio Weser. Como nenhuma cabeça fora evidenciada, os cidadãos não pagaram o flautista, que retornou à cidade, hipnotizou todas as crianças durante um culto religioso e as aprisionou em uma caverna. Na cidade, restaram apenas os fartos habitantes, com seus celeiros e despensas abarrotados, protegidos por fortes muralhas e sob uma névoa de silêncio e tristeza.

Voltando: Neste momento, tentando responder a todas estas questões para mim mesmo (sem sucesso), consigo concluir apenas uma coisa, olhando para o resultado de todas eleições das quais participei, entre mim e o banguela, somente ele não tem sido enganado, ou melhor, pelo menos ele tem recebido a promessa que lhe fora feita em troca do voto.

Sendo repetitivo, já falei aqui e aqui que sim, a Democracia é o melhor sistema que desenvolvemos até hoje. Ora, o que eu ainda não citei e não entendo é, "por que fizemos dela um deus?"