"Todas as graças da mente e do coração se escapam quando o propósito não é firme."
Segundo Edward B. Taylor, cultura é "todo aquele complexo que inclui o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, a lei, os costumes e todos os outros hábitos e capacidades adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade." Portanto, cultura pode ser entendida como o reflexo da sociedade na qual ela é produzida, sendo manifestado na música, pintura, teatro, produções artesanais, livros, festejos tradicionais, esportes, religião, códigos morais etc; incluindo conceitos mais modernos, entre eles, o cinema e os jogos de videogame, por exemplo.
Desviando: Aliás, semanas atrás eu vi a seguinte manchete em um site de notícias...
Eu tenho a sensação de que levar a cultura negra para escolas "da periferia" seria como tentar "ensinar o padre a rezar a missa". Se a periferia precisa aprender sobre a cultura negra, fiquei tentando imaginar quem seriam os professores. Ou eles são negros nativos da África (o que resolveria a minha questão), ou eu não sei mais como a pirâmide de classes no Brasil está dividida. Calma, vou explicar...
Alguém poderia dizer que eu
estou sugerindo que todos os negros vivem na periferia e que, portanto, estou
sendo preconceituoso ao criar um estereótipo. Porém, eu responderia que não,
que é somente o caso de uma dúvida simples minha. Pois, nós não estamos em
plena luta por igualdade, constatando e afirmando (acertadamente) que os negros
não ocupam, em sua maioria, o "alto escalão" da sociedade? Então, se eles não
estão lá "em cima" e não estão cá "embaixo", onde estão?
É, talvez seja somente mais um nome mal pensado para um projeto, ou para uma manchete, e eu esteja sendo rígido demais. Provavelmente é isso.
Voltando: Se a cultura é um reflexo de quem eu sou enquanto sociedade, quando leio um livro, por exemplo, eu o faço no sentido de ser moldado, ou para reconhecer quem eu sou? A sociedade me produz, ou eu a produzo? Quem vem primeiro, o objeto ou o seu reflexo? Ultimamente, eu tenho sido do tipo que, entre outros motivos, passou a consumir cultura para entender a si mesmo.
Sendo assim, ao comentar um livro do Mário Sergio Cortella, posso entender que eu não estou revisando o autor, de fato, mas a mim. Por exemplo, em um caso mais extremo, se eu criticasse algo nos escritos dele, tratando-os como a causa ao invés da consequência, seria o mesmo que eu ficar com raiva do espelho por ver rugas novas na minha face. Portanto, darei minha interpretação para um trecho de uma obra do Cortella, e farei isso sem culpa, ou melhor, assumindo a minha parcela de responsabilidade.
No capítulo "A importância do propósito", do livro "Porque fazemos o que fazemos?", Mario Sergio Cortella discorre sobre as razões de se ter um propósito de vida sob dois aspectos:
"Algumas religiões, entre elas a judaico-cristã, nos falam sobre o Juízo Final, o momento em que uma divindade virá fazer as grandes perguntas para julgar a nossa vida, se ela foi uma vida que valeu ou não valeu a pena. (...) E ainda que não se considere nenhuma crença de natureza religiosa, mesmo que nos atenhamos à concepção científica de que temos apenas uma existência, esta não pode ser desperdiçada."
Desviando: Cortella diz que o Juízo Final na religião judaico-cristã será o julgamento das nossas ações, como nós levamos a nossa vida. É intrigante como tenho inclinação a aceitar as respostas mais fáceis, os clichês. Eventualmente surgem poucos gênios que quebram alguns paradigmas e nos inspiram a olhar velhos conceitos sob novo ângulo. Clive Staples Lewis é um desses gênios. Ele imaginou o dia do Juízo de um modo diferente, no ensaio "A última noite do mundo":
"Nossos ancestrais tinham o hábito de usar a palavra 'julgamento', ou 'juízo', nesse contexto, como se significasse simplesmente 'punição, castigo'; daí a expressão popular. (...) Acredito que às vezes podemos tornar a coisa mais viva para nós mesmos por tomar juízo em um sentido mais estrito: não como a sentença ou prêmio, mas como o Veredito. Algum dia, um veredito absolutamente correto – se você quiser, uma crítica perfeita – será dado ao que cada um de nós é. (...) Todos nós encontramos julgamentos ou vereditos a respeito de nós mesmos nesta vida. De vez em quando, descobrimos o que nossos semelhantes realmente pensam de nós. (...) Suponho que a experiência do Juízo Final será como essas pequenas experiências, mas elevada à enésima potência. Pois será um julgamento inevitável. Se for favorável, não teremos medo; se desfavorável, sem esperança de que esteja errado. Nós não apenas acreditaremos, nós saberemos, saberemos além de qualquer dúvida em cada fibra de nosso apavorado ou deleitado ser, que, como o Juiz disse, assim nós somos: nem mais, nem menos, nem outro. Talvez nos apercebamos que, de alguma forma obscura, poderíamos ter sabido isso o tempo todo. Nós saberemos e toda a criação também saberá: nossos ancestrais, nossos pais, nosso cônjuge, nossos filhos. A verdade irrefutável e evidente sobre cada um deles [de nós] será conhecida de todos."
Voltando: Quando Cortella fala sobre a importância de ter um propósito do ponto de vista de alguém que crê em Deus, ele parece não ter dúvidas sobre os motivos. Ou seja, essa suposta pessoa que crê faria o que faz porque um dia será "cobrada" pelo que fez. Poderíamos comparar essa ideia com minha época de criança. Eu não estudava porque tinha consciência do que eu era e do que me tornaria, mesmo que naquela época eu dissesse que queria ser bombeiro, veterinário, engenheiro etc (aliás, provocativo isso, nossa espontaneidade em associar a razão do estudo a uma profissão). Eu me esforçava em tirar boas notas para não levar uma bronca dos meus pais. O meu propósito era o tal do juízo, do ponto de vista do Cortella (punição e castigo). Já do ponto de vista de C. S. Lewis, talvez eu fosse um negociante, ou alguém paciente, ou quem sabe apenas determinado, um garoto consciente que seu propósito (horas livres) poderia ser conquistado seguindo uma regra simples (boas notas). Lembre-se, assumir pontos de vistas simples ou complexos depende apenas de nossa fadiga mental.
De outro modo, quando Cortella tenta dar um motivo para se ter um propósito de vida quando não se crê em Deus, parece-me que ele não consegue achar essa razão. Ele apenas diz que a vida não pode ser desperdiçada. Porém, para mim, se não há uma cobrança extra ego, se tudo o que há "lá fora" é o nada, por que eu deveria me preocupar com o desperdício de uma vida onde "as contas não fecham"? Ou o contrário, por que eu deveria evitar fazer tudo o que eu eventualmente tenha vontade de fazer, independente das consequências, já que o fim será em nada para mim e para todos? Se não há nada com que se possa negociar com uma criança, por que ela deveria concluir que deve estudar? E aqui se destaca um importante ponto, concluo que eu ainda sou uma criança e não sei que condição me faz deixar de sê-la.
Lembrei-me de um monólogo do filme
“A
ghost story” de 2017...
"O escritor escreve o livro. O compositor escreve a música. O sinfonista escreve a sinfonia, o que pode ser o melhor exemplo, porque as melhores foram escritas para Deus. Então, me diz o que acontece quando Beethoven está escrevendo a Nona Sinfonia e de repente acorda um dia... de repente, todas as notas, acordes e harmonias que tinham a intenção de transcender a carne, ele percebe que são 'parte da física'. Então, Beethoven diz, 'Caramba, Deus não existe, então acho que escrevo para outras pessoas'. (...) Ah, ele teve um sobrinho. Então, ele escreve para o sobrinho. Ou para quem quer que tenha sido. Mas tiremos o amor da equação e desenrolemos isso sob o pensamento 'é assim que se lembrarão de mim'. E eles lembraram. E nós lembramos. E, com certeza, fazemos o possível para perdurar. Construímos nosso legado e talvez o mundo todo se lembre, ou talvez apenas algumas pessoas, mas fazemos o possível para continuarmos depois de partirmos. Então, ainda lemos esse livro, ainda cantamos essa música, as crianças se lembram dos pais e dos avós e todos têm sua árvore genealógica, e Beethoven tem sua sinfonia, e nós também. E todos continuarão ouvindo no futuro próximo. Mas é aí que as coisas começam a desmoronar. Porque seus filhos vão morrer, todos morrerão. E então haverá uma grande mudança tectônica. (...) Os oceanos subirão, as montanhas cairão e noventa por cento da humanidade desaparecerá. (...) É apenas ciência. Os que sobrarem irão para as partes altas. A ordem social acabará e regrediremos a caçadores, necrófagos e coletores. Mas talvez sobre alguém que um dia cantarole uma melodia que costumava ouvir. E isso dará a todos um pouco de esperança. A humanidade chega à beira do fim, mas consegue seguir, porque alguém ouve outro alguém cantarolar uma melodia numa caverna, e a física disso no ouvido deles os fazem sentir algo além de medo, ou fome, ou ódio, e a humanidade prossegue e a civilização retorna. E agora você está pensando que vale a pena terminar de escrever o livro. Mas não vai durar. Porque, aos poucos, o planeta vai morrer. Em alguns bilhões de anos, o Sol se tornará gigante e eventualmente engolirá a Terra. Isso é fato. Talvez até lá, tenhamos nos estabelecido em outro planeta. Bom para nós. Talvez descubramos um jeito de carregar conosco tudo o que importa. Conseguem uma cópia da Mona Lisa. Alguém vê e mistura poeira alienígena com cuspe, pinta algo novo e as coisas prosseguem. Mas nem isso importará. Mesmo que alguma forma de humanidade carregue uma gravação da Nona Sinfonia de Beethoven até o futuro, o futuro baterá numa parede. O universo continuará expandindo e eventualmente levará toda a matéria com ele. Tudo pelo que lutou, tudo o que você e algum estranho do outro lado do planeta compartilharam com um estranho do futuro, num planeta diferente, sem nem saber, tudo o que te fez sentir grande ou poderoso, tudo acabará. Todo átomo nesta dimensão será destruído por uma força simples. E todas essas partículas retalhadas se contrairão novamente e o universo vai se juntar numa mancha pequena demais para notarmos. Então, pode escrever um livro, mas as páginas queimarão. Pode cantar uma música e passar adiante. Pode escrever uma peça esperando que alguém lembre e continue apresentando. Pode construir sua casa dos sonhos, mas no final nada importará mais do que enfiar a mão na terra para colocar uma cerca.
Minha opinião? Eu não consigo encontrar uma resposta porque deveríamos buscar um propósito de vida quando considero que tudo terminará em nada. E o escrito de Cortella pareceu um reflexo dessa minha limitação. Não estou dizendo que não exista esse motivo, nessa circunstância. Eu estou dizendo que, pelo menos por enquanto, a melhor justificativa que encontrei foi somente um "porque sim". Porém, eu sempre engoli melhor as ordens dos meus pais quando elas terminavam com um "porque eu quero", ou um "porque eu estou mandando". E isso é somente comigo, ou o fato de estar em uma obra cultural sugere que seja com toda a sociedade?
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