sexta-feira, 6 de novembro de 2015

Acho que Trocaram a Minha Sombra

"Quando eu me pergunto quem sou eu, sou o que pergunta ou o que não sabe a resposta?"
Geraldo Eustáquio


Esses dias eu vi uma reportagem na TV sobre a geração X. Curioso, eu fui pesquisar sobre o assunto e tomei o que costumo chamar de "choque de realidade" (isso acontece muito também nas segundas-feiras pela manhã).

Geração X é uma expressão usada para definir as pessoas que nasceram após o Baby Boom (explosão populacional que aconteceu pós II Guerra Mundial), ou seja, a geração X é a descendência dos baby boomers. Embora não haja precisão em relação ao período que corresponde a geração X, geralmente, são incluídas as pessoas nascidas a partir do início dos anos 1960 até no máximo o início dos anos 1980, sem ultrapassar 1981 (opa, estou no pacote).

Nas palavras do escritor norte-americano John Ulrich, contemporâneo dos baby boomers e da geração X, "este último grupo consiste de pessoas jovens, sem identidade aparente, que enfrentariam um mal incerto, sem definição, um futuro hostil. Enfrentariam um futuro pós-guerra, um tempo de incertezas e de guerra fria, de polarização entre o bem e o mal, entre Estados Unidos da América e União Soviética."

A geração X cresceu, foi hippie, teve seus ideais, esqueceu-se deles e foi para o mercado capitalista. Essa geração inventou o computador pessoal, a internet, o celular, a impressora, o e-mail e viu seu mundo mudar do toca-discos para o MP3. Grande parte da geração chegou aos 30 ou 40 anos e descobriu que um apartamento, que irá pagar até os 60 anos de vida, lhe custará um preço muito alto, e não estamos falando apenas de dinheiro. Os filhos crescem, os baby boomers se vão e os sonhos se engavetam.

O choque de realidade me ocorreu especificamente quando, em minhas pesquisas na internet, li o seguinte trecho: "Hoje, é cada vez mais comum ver estes profissionais 'chutando o balde', pela internet, inclusive. Há vários blogs e canais do YouTube de profissionais até então bem sucedidos, com cargos muito bem remunerados e carreiras consolidadas de mais de 10 anos em uma grande multinacional, que largam tudo para pintar quadros, estudar fotografia, gastronomia, aquilo que os fazem felizes" (opa, estou no pacote de novo, se não pela coragem, ao menos pelas motivações).

Até que ponto o "eu" não passa da manifestação de uma tendência? Esse "meu" sentimento de que o mundo está de ponta-cabeça e essa vontade de tentar entender o valor da vida que estamos levando parecem não ser nada além de comportamentos comuns a uma geração, apenas consequências da história da humanidade. Olhos abertos? Acordado para a realidade? Insatisfação? Consciência? Loucura? Uma geração inteira pode estar vivendo tudo isso. Então, o que sou "eu" e o que é "eles"? O "eu" é algo individual, ou é coletivo? Ou ainda, será que o "eu" é puramente orgânico e consequentemente comum?

Desviando: Eu tive uma colega de estudo, no ensino médio, que era muito quieta, reservada, com poucos amigos. Certo dia ela apareceu transformada, capaz de conversar com o colégio inteiro, muito extrovertida, extrapolando certo limite, segundo meu julgamento. Soubemos que ela procurou um especialista e foi diagnosticada com algum tipo de depressão. Ela foi medicada e se transformou. Lembro-me que discutimos na época, quem era ela afinal? A pessoa reservada, ou a pessoa exageradamente extrovertida? O que definia o "ela"? O medicamento prescrito a trouxe para o seu equilíbrio orgânico e psicológico, tornando-a o que ela seria se nunca tivesse sido diagnosticada com depressão? Ou a medicação a retirava do seu estado fundamental, de reservada e retraída, para transformá-la em outra pessoa que "naturalmente" ela jamais seria? Quando falamos de bebida ou drogas ilícitas, fica fácil definir o que é a pessoa e o que não é, o limite é determinado pelo período que o organismo fica sob o efeito químico da droga. No entanto, quando falamos de medicamentos, que em teoria tem a função de trazer uma pessoa ao seu estado "normal", podemos ficar na dúvida de quem é a pessoa. Ela é o antes ou o depois do medicamento?

Voltando: Quando falamos de raças de cachorro, concordamos como cada uma delas apresenta comportamentos particulares. Umas mais calmas, outras mais agitadas, algumas previsíveis, outras selvagens, umas inteligentes, outras independentes etc. Porém, quando falamos de humanos, resistimos a acreditar que nossos comportamentos possam também ser ditados por nossa genética. Lutamos contra a ansiedade, o medo, a extroversão, a timidez, o nervosismo, o descaramento, a depressão etc. Então, somos medicados, ou nos medicamos. Qual o limite entre uma patologia e uma característica genética? A medicação serve para nos tornarmos o que realmente somos, ou para esconder o que não aceitamos ser? Nesse sentido, o "eu" pode ser construído?

Certa vez ouvi falar do Teste de Turing, que foi  introduzido por Alan Turing em seu artigo de 1950, "Computing Machinery and Intelligence", mas eu não vou tentar explicá-lo (mais uma vez iria me atrapalhar). Ao invés disso vou colocar o trecho de um dialogo que lida com o assunto.

"Nathan: Sabe o que é o teste de Turing?
Caleb: É quando um humano interage com um computador e se ele não descobrir que está interagindo com uma máquina, o teste terá sido bem sucedido.
Nathan: E o que significa passar no teste?
Caleb: Que o computador tem inteligência artificial.
(...)
Nathan: O teste real é mostrar para você que ela é um robô e depois ver se você ainda sente que ela tem uma consciência.
(...)
Caleb: Qual é outra forma de testar um computador que joga xadrez? Você pode jogar com ele, para ver se ele joga bem, mas isso não demonstra que ele sabe que está jogando xadrez. E não diz se ele sabe o que é xadrez. Conseguir diferenciar essas duas coisas é o teste de Turing que você quer que eu faça."

Ex-Machina (2015) 

Parece-me que temos um bom método para identificar uma consciência. O que ainda nos falta é a definição do "eu".

Sem pensar muito nestes testes elaborados, nós tendemos a diferenciar o que se espera do que não se espera possuir consciência segundo uma classificação de "natural" contra artificial. Por exemplo, cérebro versus circuitos, sangue versus fluídos lubrificantes, coração versus baterias, olhos versus câmeras. No entanto, nos esquecemos de que tudo não passa de palavras que, de tanto terem sido ditas, passaram a apontar para o objeto e não mais para o conceito (já mencionei algo aqui). Conceitualmente não há diferença, poderíamos pensar as partes do corpo humano como elas de fato são, peças. Software refere-se apenas a programas de computador que foram criados por nós e que processam cálculos binários, ou conceitualmente pode-se afirmar que existem softwares em execução dentro do cérebro de cada um de nós? Uma vez que a "máquina" não nasce pronta, mas ela se desenvolve ao longo de anos, ela deve ser chamada de organismo? Quão artificiais somos nós? E se um dia descobríssemos que seres metálicos, com limitados graus de movimento, estabelecidos sobre circuitos elétricos, com fluidos lubrificantes bombeados entre suas juntas e cabos conectados a baterias que energizam todo o sistema, foram nossos criadores, nossos projetistas, nos deram a vida? Que invertida no jogo, hein? Quão grande seria o tombo de um deus ao se descobrir criatura. Uma verdadeira crise existencial ao se perceber como uma invenção e não um inventor? Os conceitos não seriam alterados, mas muito provavelmente iríamos querer trocar as palavras.

Enfim, eu não sei se o "eu" é individual ou se é coletivo, se é orgânico ou se é algo construído, se é a manifestação de uma tendência, ou talvez apenas um conjunto de comportamentos comuns. Quem sabe a consciência nem mesmo exista, tudo não passe de uma palavra inventada apenas tentando nomear uma percepção. O que eu sei é que eu tenho algumas lembranças, principalmente de um garoto e da vida que ele levava. Lembro-me bem da família e dos amigos dele, da diversão e das responsabilidades. Lembro-me como ele se comportava em cada situação e como ele era reconhecido pelas pessoas. Lembro-me bem da vida que ele teve. Sei o que ele gostava e o que detestava, quais eram os poucos momentos de coragem e os seus medos mais fortes. Eu sei o que ele queria da vida, quais eram os seus objetivos e como ele enxergava o mundo. Eu sei quem ele foi e ele sabia quem ele era. Porém, o tempo passa e as lembranças vão desvanecendo, os fatos vão ficando cada vez mais longe, dia a dia. Em determinando momento a distância entre o hoje e o ontem fica tão grande que a história parece ter sido de outra pessoa.

Desviando: Há uns 25 ou 30 anos atrás, lembro-me de interagir bastante com minha sombra, divertia-me muito com ela. Eu brincava com a variação das dimensões em função do ângulo da luz, fazia imagens de animais, simulava uma luta de boxe (eu sempre vencia por pontos), gostava de ver como ela se movia de acordo com os meus movimentos, procurava me reconhecer nela etc. Enfim, eu era bastante intimo da minha sombra. Ela era praticamente um amigo imaginário. Recentemente, dei conta que em algum momento aquele relacionamento foi esquecido. Como assim? Há quanto tempo não reparo na minha sombra? Posicionei-me próximo a uma parede, acendi uma luz e outro choque de realidade. Aquela não era a minha sombra, nem de longe. Lembro-me dela bem menor, menos arqueada, com largura mais proporcional a altura, mais elástica e capaz de saltos e movimentos rápidos. Definitivamente, alguém trocou a minha sombra.

Voltando: O relevante não é a personagem que se conheceu, mas aquela que não se conhece, tampouco a pergunta correta é "quem sou eu?".  Se eu já não me reconheço e o que vejo é comum a uma espécie, a uma geração, a um grupo, então a pergunta correta é "o que em mim é exclusivamente eu?".

Nenhum comentário:

Postar um comentário