"Quando eu me pergunto quem sou eu, sou o que pergunta ou o que não sabe a resposta?"
Geraldo Eustáquio
Esses dias eu vi uma reportagem na TV sobre a geração X. Curioso, eu fui pesquisar sobre o assunto e tomei o que costumo chamar
de "choque de realidade" (isso acontece muito também nas segundas-feiras pela
manhã).
Geração X é uma expressão usada para definir as pessoas que nasceram
após o Baby Boom (explosão populacional que aconteceu pós II Guerra Mundial), ou seja, a
geração X é a descendência dos baby
boomers. Embora não haja precisão em relação ao período que corresponde a geração
X, geralmente, são incluídas as pessoas nascidas a partir do início dos anos
1960 até no máximo o início dos anos 1980, sem ultrapassar 1981 (opa, estou no
pacote).
Nas palavras do escritor norte-americano John Ulrich, contemporâneo dos baby boomers e da geração X, "este último grupo consiste de pessoas
jovens, sem identidade aparente, que enfrentariam um mal incerto, sem
definição, um futuro hostil. Enfrentariam um futuro pós-guerra, um tempo de
incertezas e de guerra fria, de polarização
entre o bem e o mal, entre Estados Unidos da América e União Soviética."
A geração X cresceu, foi hippie, teve seus ideais,
esqueceu-se deles e foi para o mercado capitalista. Essa geração
inventou o computador pessoal, a internet, o celular, a impressora, o e-mail e
viu seu mundo mudar do toca-discos para o MP3. Grande parte da geração
chegou aos 30 ou 40 anos e descobriu que um apartamento, que irá pagar até os
60 anos de vida, lhe custará um preço muito alto, e não estamos falando apenas
de dinheiro. Os filhos crescem, os baby
boomers se vão e os sonhos se engavetam.
O choque de realidade me ocorreu especificamente quando, em minhas
pesquisas na internet, li o seguinte trecho: "Hoje, é cada vez mais comum ver estes profissionais 'chutando o balde', pela
internet, inclusive. Há vários blogs e canais do YouTube de profissionais até
então bem sucedidos, com cargos muito bem remunerados e carreiras consolidadas
de mais de 10 anos em uma grande multinacional, que largam tudo para pintar
quadros, estudar fotografia, gastronomia, aquilo que os fazem felizes" (opa,
estou no pacote de novo, se não pela coragem, ao menos pelas motivações).
Até que ponto o "eu" não passa da manifestação de uma tendência? Esse "meu" sentimento de que o mundo está de ponta-cabeça e essa vontade de tentar
entender o valor da vida que estamos levando parecem não ser nada além de
comportamentos comuns a uma geração, apenas consequências da história da
humanidade. Olhos abertos? Acordado para a realidade? Insatisfação? Consciência?
Loucura? Uma geração inteira pode estar vivendo tudo isso. Então, o que sou "eu" e o que é "eles"? O "eu" é algo individual, ou é coletivo? Ou ainda, será que o "eu" é puramente orgânico e consequentemente comum?
Desviando: Eu tive uma colega de estudo, no ensino médio, que era
muito quieta, reservada, com poucos amigos. Certo dia ela apareceu transformada,
capaz de conversar com o colégio inteiro, muito extrovertida, extrapolando
certo limite, segundo meu julgamento. Soubemos que ela procurou um especialista
e foi diagnosticada com algum tipo de depressão. Ela foi medicada e se
transformou. Lembro-me que discutimos na época, quem era ela afinal? A pessoa
reservada, ou a pessoa exageradamente extrovertida? O que definia o "ela"? O
medicamento prescrito a trouxe para o seu equilíbrio orgânico e psicológico,
tornando-a o que ela seria se nunca tivesse sido diagnosticada com depressão? Ou
a medicação a retirava do seu estado fundamental, de reservada e retraída, para
transformá-la em outra pessoa que "naturalmente" ela jamais seria? Quando falamos
de bebida ou drogas ilícitas, fica fácil definir o que é a pessoa e o que não
é, o limite é determinado pelo período que o organismo fica sob o efeito
químico da droga. No entanto, quando falamos de medicamentos, que em teoria tem
a função de trazer uma pessoa ao seu estado "normal", podemos ficar na dúvida de
quem é a pessoa. Ela é o antes ou o depois do medicamento?
Voltando: Quando falamos de raças de cachorro, concordamos como cada uma
delas apresenta comportamentos particulares. Umas mais calmas, outras mais
agitadas, algumas previsíveis, outras selvagens, umas inteligentes, outras independentes
etc. Porém, quando falamos de humanos, resistimos a acreditar que nossos
comportamentos possam também ser ditados por nossa genética. Lutamos contra a
ansiedade, o medo, a extroversão, a timidez, o nervosismo, o descaramento, a
depressão etc. Então, somos medicados, ou nos medicamos. Qual o limite entre
uma patologia e uma característica
genética? A medicação serve para nos tornarmos o que realmente somos, ou para esconder
o que não aceitamos ser? Nesse sentido, o "eu" pode ser construído?
Certa vez ouvi falar do Teste de Turing, que foi introduzido por Alan Turing em seu artigo de
1950, "Computing Machinery and
Intelligence", mas eu não vou tentar explicá-lo (mais uma vez iria me atrapalhar). Ao invés disso vou colocar o trecho de um dialogo
que lida com o assunto.
"Nathan: Sabe o que é o teste de Turing?
Caleb: É quando um humano interage com um
computador e se ele não descobrir que está interagindo com uma máquina, o teste
terá sido bem sucedido.
Nathan: E o que significa passar no teste?
Caleb: Que o computador tem inteligência
artificial.
(...)
Nathan: O teste real é mostrar para você que
ela é um robô e depois ver se você ainda sente que ela tem uma consciência.
(...)
Caleb: Qual é outra forma de testar um
computador que joga xadrez? Você pode jogar com ele, para ver se ele joga bem,
mas isso não demonstra que ele sabe que está jogando xadrez. E não diz se ele
sabe o que é xadrez. Conseguir diferenciar essas duas coisas é o teste de
Turing que você quer que eu faça."
Ex-Machina (2015)
Parece-me que temos um bom método para identificar uma consciência. O
que ainda nos falta é a definição do "eu".
Sem pensar muito nestes testes elaborados, nós tendemos a diferenciar o
que se espera do que não se espera possuir consciência segundo uma
classificação de "natural" contra artificial. Por exemplo, cérebro versus
circuitos, sangue versus fluídos lubrificantes, coração versus baterias, olhos
versus câmeras. No entanto, nos esquecemos de que tudo não passa de palavras
que, de tanto terem sido ditas, passaram a apontar para o objeto e não mais
para o conceito (já mencionei algo aqui). Conceitualmente
não há diferença, poderíamos pensar as partes do corpo humano como elas de fato
são, peças. Software
refere-se apenas a programas de computador que foram criados por nós e que processam
cálculos binários, ou conceitualmente pode-se afirmar que existem softwares em
execução dentro do cérebro de cada um de nós? Uma vez que a "máquina" não nasce
pronta, mas ela se desenvolve ao longo de anos, ela deve ser chamada de
organismo? Quão artificiais somos nós? E se um dia descobríssemos que seres
metálicos, com limitados graus de movimento, estabelecidos sobre circuitos
elétricos, com fluidos lubrificantes bombeados entre suas juntas e cabos
conectados a baterias que energizam todo o sistema, foram nossos criadores, nossos
projetistas, nos deram a vida? Que invertida no jogo, hein? Quão grande seria o
tombo de um deus ao se descobrir criatura. Uma verdadeira crise existencial ao
se perceber como uma invenção e não um inventor? Os conceitos não seriam
alterados, mas muito provavelmente iríamos querer trocar as palavras.
Enfim, eu não sei se o "eu" é individual ou se é coletivo, se é orgânico
ou se é algo construído, se é a manifestação de uma tendência, ou talvez apenas
um conjunto de comportamentos comuns. Quem sabe a consciência nem mesmo exista,
tudo não passe de uma palavra inventada apenas tentando nomear uma percepção. O
que eu sei é que eu tenho algumas lembranças, principalmente de um garoto e da
vida que ele levava. Lembro-me bem da família e dos amigos dele, da diversão e
das responsabilidades. Lembro-me como ele se comportava em cada situação e como
ele era reconhecido pelas pessoas. Lembro-me bem da vida que ele teve. Sei o
que ele gostava e o que detestava, quais eram os poucos momentos de coragem e
os seus medos mais fortes. Eu sei o que ele queria da vida, quais eram os seus
objetivos e como ele enxergava o mundo. Eu sei quem ele foi e ele sabia quem
ele era. Porém, o tempo passa e as lembranças vão desvanecendo, os fatos vão ficando
cada vez mais longe, dia a dia. Em determinando momento a distância entre o
hoje e o ontem fica tão grande que a história parece ter sido de outra pessoa.
Desviando: Há uns 25 ou 30 anos atrás, lembro-me de interagir bastante com
minha sombra, divertia-me muito com ela. Eu brincava com a variação das
dimensões em função do ângulo da luz, fazia imagens de animais, simulava uma
luta de boxe (eu sempre vencia por pontos), gostava de ver como ela se movia de
acordo com os meus movimentos, procurava me reconhecer nela etc. Enfim, eu era bastante
intimo da minha sombra. Ela era praticamente um amigo imaginário. Recentemente,
dei conta que em algum momento aquele relacionamento foi esquecido. Como assim?
Há quanto tempo não reparo na minha sombra? Posicionei-me próximo a uma parede,
acendi uma luz e outro choque de realidade. Aquela não era a minha sombra, nem
de longe. Lembro-me dela bem menor, menos arqueada, com largura mais
proporcional a altura, mais elástica e capaz de saltos e movimentos rápidos.
Definitivamente, alguém trocou a minha sombra.
Voltando: O relevante não é a personagem que se conheceu, mas aquela que
não se conhece, tampouco a pergunta correta é "quem sou eu?". Se eu já não me reconheço e o que vejo é comum
a uma espécie, a uma geração, a um grupo, então a pergunta correta é "o que em
mim é exclusivamente eu?".
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