sexta-feira, 31 de julho de 2015

Na Mão de Quem é Mais Barato?

"Quarto duplo significa que duas pessoas podem ficar pelo preço de uma, que tem de pagar o dobro se estiver sozinha."
Ralph Shaffer

Charles Darwin foi um naturalista, escritor, geólogo e cientista que viveu no século XIX. Ele publicou em 1859 o livro chamado "A Origem das Espécies", onde compilou um importante estudo, formulado durante uma viagem de aproximadamente cinco anos por várias regiões do mundo. O estudo se baseou na grande variedade de características geológicas, fósseis e organismos vivos encontradas naquelas regiões visitadas, resultando na teoria da evolução. Essa teoria consiste na consideração de que todo ser vivo tem um ancestral comum e a descendência desse ancestral foi sendo moldada, sendo adaptada ao longo do tempo às diferentes condições presentes no nosso planeta, por seleção natural, culminando em todas as espécies que existem hoje na Natureza da forma como são.

De uma forma bem resumida, a teoria explica que o ambiente apresenta inúmeros obstáculos para a sobrevivência de um ser vivo e apenas aqueles seres que se adaptam geneticamente melhor conseguem sobreviver. Por exemplo, o ambiente pode apresentar variações extremas de temperatura, baixa disponibilidade de alimentos, grande variedade de predadores ou organismos parasitas, e apenas aqueles seres que possuírem as melhores proteções contra calor e frio, que forem os mais velozes, os mais fortes, os mais "espertos" conseguirão sobreviver. Vale citar que as adaptações genéticas necessárias às diferentes condições do ambiente, considerando que o ancestral foi comum, ocorrem por mutações, recombinações e transferências genéticas ao longo das gerações.

Um ponto interessante de se pensar é que ao longo de milhares de anos, a Natureza ditou as condições sobre as quais os seres vivos foram se adaptando. Considerando que o processo de seleção natural ainda continua e que os seres humanos estão interferindo nas condições, que tipo de seres vivos existirão daqui tantos outros milhares de anos? Como serão os seres humanos? Enfim...

Desviando: Vamos exercitar a imaginação. Um professor renomado, de uma universidade também renomada, publica em um jornal a teoria que formulou explicando como toda a água do planeta chegou até aqui há milhões de anos atrás. Tudo bem fundamentado sobre ótimos métodos científicos. Lá na matéria está escrito que a probabilidade da teoria estar certa, arredondando para cima, é de 1%. Enquanto lemos a notícia, o "Zé da Esquina" encontra com a gente e dá o palpite dele sobre como toda a água do planeta chegou até aqui na Terra. Nessa hora, a gente acha que ele pode ter ingerido bebida alcoólica demais, deixamos a dica para ele não dirigir naquele estado, nos despedimos e fechamos o portão de casa. Lá dentro, não tendo muito mais o que fazer, resolvemos realizar alguns cálculos rápidos e descobrimos que a probabilidade do "Zé da Esquina" ter acertado é bem pequena, mas dá para arredondar para 1% também. A pergunta é: o que pesa mais, um quilograma de chumbo ou um quilograma de algodão? Fico com o direito de duvidar tanto do professor renomado quanto do "Zé da Esquina" e ter minhas próprias convicções, que também não chegam a 1% de chance de estarem corretas, nem de longe.

Voltando: A teoria da evolução funciona bem para explicar a Natureza (não sei com que precisão), mas que tipo de história ela nos conta? Essa teoria sugere o que devemos ser, ou explica o que nos tornamos? (já falei um pouco sobre conto de fadas aqui)

Sempre haverá alguém melhor adaptado que nós, mais forte, mas inteligente, mais rico, mais conquistador, mais eloquente, com melhor currículo, com uma casa melhor, com um carro melhor, mais poderoso do que cada um de nós e por aí vai. Então, o que podemos fazer?

Talvez fosse óbvio responder que deveríamos correr atrás (seja lá do que for), deixar nossa marca no mundo ("just do it"), construir algo que ficará para a posteridade (importante usar as melhores argamassas), mas isso é o mesmo que concluir que nós não somos importantes. E de fato, no nosso mundo, o importante é o que se constrói, é o que fica, o importante é perpetuar a espécie dos fortes, perpetuar o código genético dos "espertos". Eu e você, ou melhor, a existência dos indivíduos chamados pelo meu e pelo seu nome não são importantes. Acho que essa é a história contada, mas ainda estou em dúvida se é uma sugestão ou uma explicação.

Desviando: Se existisse somente um tipo padrão de doença mental no mundo e 99% das pessoas tivessem essa doença, que nome daríamos para esse padrão? Provavelmente de realidade. A loucura é a ilusão que se vive sozinho, a sanidade é a ilusão que se vive coletivamente. (já falei um pouco sobre isso aqui)

Voltando: Por que queremos cargos? Contra quem competimos? Pelo que competimos? Há bons empregos para todo mundo? Há vagas na universidade, bons salários, direitos, oportunidades e mesmo três refeições diárias e dignas para todo mundo? O que o ambiente que conhecemos por realidade oferece? O que é preciso fazer para conseguir o que se oferece? Que tipo de pessoa se dá bem? O que é se dar bem? Qual seria o custo de ser diferente? (já falei sobre valores aqui)

Se a realidade que construímos fosse (estou amenizando) uma "doença", qual seria a cura? Com certeza não seria ser vítima, já que a exposição ao agente causador poderia piorar o quadro. Também não seria seguir o ditado "se não pode vencê-los, junte-se a eles", afinal de contas, ninguém sai por aí tentando se tornar um vírus para se curar de uma gripe. Então como?

Os negócios podem ser agressivos, mas nós não precisamos sê-lo. OK, o mercado irá nos “engolir” se formos gentis. Mas ele já não está nos engolindo? Nós podemos ser mansos ao expor nossas ideias. OK, podemos ter baixa assertividade com aparente passividade. Mas já não estamos falando sozinhos mesmo quando somos firmes? Podemos guardar parte do dinheiro do restaurante para ajudar alguém com fome. OK, nos esforçamos muito para termos o que temos e merecemos desfrutar disso. No entanto, não podemos esquecer de colocar na conta os comprimidos que nos ajudam a ficar acordados durante o dia e aqueles que nos ajudam a dormir durante a noite. Nós podemos emprestar na certeza de que não receberemos de volta e não se preocupar com isso. OK, então estaremos trabalhando para os outros. Mas já não estamos trabalhando para os outros?

"Professor Norman: Os golfinhos não inventaram o sonar, eles desenvolveram-no, naturalmente. E esta é a parte crucial da nossa reflexão filosófica de hoje: podemos concluir portanto que os seres humanos estão mais preocupados em 'ter' do que 'ser'?"
Lucy (2014)

O que estou tentando dizer é que nos comportamos como se desejássemos comprar algum produto e a loja do fim da rua o vendesse por um custo razoável, porém acessível, mas descobríssemos que em uma cidade a alguns quilômetros de distância o mesmo produto pudesse ser encontrado de graça. Então, gastaríamos com combustível para a viagem e com o pedágio da estrada o equivalente ao custo do item na loja da esquina. Quando voltássemos para casa contaríamos vantagem dizendo que fomos "espertos", sagazes ao encontrar um local onde o produto é de graça. E perceba que não estamos entrando no mérito se o produto que desejamos é o que precisamos.

O nosso mundo é realmente dos conquistadores, dos mais fortes, dos "espertos", mas um mundo diferente consiste apenas em perceber que o problema não é quanto se custa, mas é pelo que estamos pagando. Se as nossas escolhas fossem pela mercadoria certa, o mundo não seria dos "espertos", eles não estariam adaptados, não teriam lugar. E eu não estou falando dos outros, mas estou falando de nós. A teoria da evolução seria outra.


terça-feira, 21 de julho de 2015

Quanto Vale o Show?

"Se a vida não tem preço, nós comportamo-nos sempre como se alguma coisa ultrapassasse, em valor, a vida humana... Mas o quê?"
Antoine de Saint-Exupéry
As unidades de medidas são grandezas que servem para especificarmos valores que possam ser interpretados universalmente em função de padrões previamente estabelecidos. Isso é mais importante do que parece. Imagine, por exemplo, os problemas que poderiam ocorrer se o quilograma mudasse a cada quatro anos. Há quem diga que o , uma unidade de medida do Sistema Inglês para comprimento, teve seu valor baseado no tamanho do pé do rei Henrique I da Inglaterra. Eu acho difícil que o valor que temos hoje para essa unidade de medida seja mesmo o comprimento do pé daquele rei, mas já acho possível que cada rei que assumisse o governo alterasse o padrão a ser considerado a partir do seu reinado. E é aí que encontramos o problema.

Imagine que o novo dono de um terreno considerasse a medida de pé diferente do antigo dono, dessa forma ele poderia estabelecer os limites do seu terreno além daquele que um dia foi acordado com o dono do terreno vizinho. Pronto, estava armada a confusão. Essa briga poderia se estender por dias, por meses, por anos, por gerações. Quem sabe até a fatídica rivalidade entre as famílias de Montecchio e Capuleto da história de "Romeu e Julieta" não tenha começado assim (somente Shakespeare poderia nos responder).

Os conflitos baseados em diferenças de padrão poderiam ocorrer tanto no âmbito doméstico, quanto no âmbito político. Então, para resolver essa questão, mas não somente essa, foram surgindo entidades e institutos que passaram a padronizar as unidades de medida universalmente.

Vamos falar um pouco do metro, por exemplo, outra unidade de medida para comprimento, mas agora do Sistema Internacional de Unidades. A primeira definição teve como base as dimensões da Terra, ou seja, se tomássemos os 90º correspondentes ao quadrante de um meridiano terrestre e o dividíssemos em 10.000.000 partes iguais, cada uma dessas partes equivaleria ao comprimento de um metro. Mais tarde, pela necessidade de mais precisão no referencial e como a circunferência da Terra não é perfeita, tomou-se como referência um outro valor constante no universo e bem mais preciso, a velocidade da luz. Sendo assim, o metro passou a equivaler ao espaço, em linha reta, percorrido pela luz no vácuo em um intervalo de tempo igual a 1/299.792.458 de segundo.

Complexo? Muita volta só pra dizer quanto de espaço tem entre um ponto daqui até ali? Parece que até passamos a confundir as importâncias. O que tem mais valor, o espaço daqui até ali que nos interessa medir, ou a própria definição de metro? Quem dá valor para quem? O comprimento que queremos medir é tão importante para nós que foi necessário elaborar um padrão preciso que nos impeça de errar? Ou o padrão definido é tão complexo e bem elaborado que ele é quem dá valor a medida que estamos fazendo daqui até ali?


Desviando: Isaac Newton (esse cara está ficando famoso aqui nos meus textos) disse uma vez que toda ação gera uma reação. É por isso que nunca usamos o punho para fazer um buraco na parede, por exemplo. Com a mesma força que nossa mão atingisse a parede, a parede estaria atingindo nossa mão e, como nossa mão é bem mais frágil que uma parede, a próxima ação seria correr para um hospital (já mencionei as três leis de Newton aqui). Albert Einstein disse que nós, do lado de fora do trem, vemos a locomotiva se mover, mas para quem está dentro do trem, a locomotiva não se move, mas somos nós que nos movemos lá fora, ficando cada vez mais para trás. Enfim, tudo é uma questão de referência.

Voltando: Onde está o valor das coisas? O esforço dignifica as conquistas, ou as conquistas dignificam o esforço?

Nós nos esforçamos dia a dia, vamos até o nosso limite, exauridos, e o que conseguimos no final? O sucesso profissional? Nós nos esforçamos porque almejávamos uma posição social? Então, o título na parede deu valor ao esforço? É tudo o que vale o esgotamento dia a dia? Ou não, porque nos esforçamos, nos esgotamos, fomos ao nosso limite, então o sucesso é valorizado? Nesse caso, se tivéssemos nos esforçado por outro motivo, esse outro motivo teria sido dignificado igualmente?

Poderíamos substituir o sucesso profissional nas perguntas acima por uma casa, um automóvel, um bom salário, reconhecimento... pela manutenção do padrão. O que buscamos? Se as conquistas não são o fim, mas o que fazemos por elas é o que importa, qualquer conquista obtida teria o mesmo valor, pois o esforço pode ser o mesmo sempre. Ou não, o que queremos mesmos são as conquistas finais, custe o que custar? Nesse caso, que valor estamos dando aos nossos esforços com as conquistas que usamos para medi-los? Temos nos perguntado por que temos feito algumas coisas e por que temos deixado de fazer outras?

Desviando: Em física existe o conceito de trabalho. Uma força realiza um trabalho sobre um corpo (um bloco maciço, por exemplo) ao fazê-lo se deslocar. Mas nem todo trabalho é útil para promover o deslocamento, uma parte pode estar sendo perdida enquanto o atrito entre a superfície do bloco e o chão aquece a ambos, por exemplo. Daí vem o conceito de trabalho total e trabalho útil. O trabalho útil é aquele que efetivamente está deslocando o bloco e é apenas uma parcela do trabalho total aplicado. Eficiência, é quanto o trabalho útil representa do trabalho total. Poderíamos fazer uma analogia com o carvão em uma churrasqueira. Apenas parte do carvão será queimado para gerar calor, outra parte vai se transformar em cinzas. O carvão útil é a diferença entre a massa de carvão que tínhamos antes de começar o churrasco e a massa de cinzas que sobrou.

Voltando: Eu particularmente acho que são apenas sob circunstâncias de sofrimento, esforço, privação e desgaste que nós evoluímos, infelizmente. Infelizmente porque como me coloco nesse pacote é como se pudesse prever que essas coisas me esperam pelo caminho, pelo menos se meu desejo for me tornar uma pessoa melhor. Não é verdade que uma criança nos obedece quando pedimos, mas só aprende depois que rala o joelho no chão? Se dermos tudo para uma criança, permitirmos que ela viva sem privações, ou sem esforço, não é verdade que descobriremos após alguns anos que somos bons em criar monstros? Um poeta falou uma vez que "você culpa seus pais por tudo; isso é absurdo; eles são crianças como você; o que você vai ser quando você crescer?"

Então, o problema não é o sofrimento diário, o desgaste, o cansaço, a privação, pois são ferramentas importantes para sermos pessoas melhores hoje do que fomos ontem (nada de esperar ser uma pessoa melhor amanhã do que foi hoje). A questão é, que valor estamos dando para tudo isso? O quanto tem sido útil? Estamos mantendo a vida, ou estamos mantendo padrões? Sofrimento por sofrimento, não poderíamos sofrer por coisas mais válidas, mais necessárias, mai úteis? Pelo que nos esforçamos, pelo que nos dedicamos, pelo que estamos suportando? Estamos convencidos com as nossas respostas, ou são as melhores que podemos dar apenas? O que vale mais, a distância daqui até ali, ou o padrão?

"Temos uma ambição com a qual nós concordamos
E você acha que você tem que querer mais do que precisa
(...)
Tem aqueles achando, mais ou menos, que menos é mais
Mas se menos é mais, como você mantém um placar?
Quer dizer que pra cada ponto que faz, seu nível cai
É como começar do topo
(...)
Sociedade, tenha piedade de mim
Espero que não fique brava se eu discordar"

Não é que existam pessoas que não gostam de fazer nada, o que existe são pessoas que ainda não descobriram pelo que seus esforços podem ser realmente úteis. Não é que existam pessoas que lutam por coisas fúteis, há quem não tenha entendido ainda quão úteis podem ser seus esforços. Pode ser triste viver uma vida inteira sem descobrir motivos que valham a pena. Pode ser decepcionante ter descoberto, mas viver uma vida sem coragem. Não sei se fico triste, ou se fico decepcionado.

segunda-feira, 13 de julho de 2015

Sobre Ateus, Crentes e Preguiças

"Com um pouco de agilidade mental e algumas leituras em segunda mão, qualquer homem encontra as provas daquilo em que deseja acreditar."
Bertrand Russell


Friedrich Nietzsche foi um alemão que viveu no século XIX. Filósofo, entre outras coisas, discorrendo sobre moral, religião e ciências, sempre usando de ironia como uma forte aliada. Suas ideias foram de grande influencia para os pensadores do século XX, e com certeza ainda são. Não há dúvidas de que Nietzsche foi um grande pensador, questionador (lembre-se, dizem que são as perguntas que movem o mundo). Por ironia (sua aliada até nesta situação), o grande pensador foi acometido da perda completa de suas faculdades mentais. Viveu seus últimos anos sob cuidados de sua mãe e depois de sua irmã.

Seguem algumas frases bem interessante da parte de Nietzsche.

"As convicções são inimigas mais perigosas da verdade do que as mentiras."

"Até Deus tem um inferno: é o seu amor pelos homens."

"Não posso acreditar num deus que quer ser louvado o tempo todo."

Nietzsche foi um desses grandes homens que falaram sobre Deus, sem medo de errar. Eu, que não sou ninguém e posso errar, tomarei a liberdade de dar alguns palpites sobre essa polêmica também. Ou não será sobre Deus que eu vou falar? Cada dia que passa eu fico mais confuso comigo mesmo.

Como disse antes, Nietzsche era um pensador. Ele deve ter passado muitas horas questionando, lendo, escrevendo, formando suas ideias, inclusive aquela última frase, sobre não poder acreditar em um deus que deseja sempre ser louvado. Eu poderia ser preguiçoso, poderia dar todo o crédito à grandeza do intelecto de Nietzsche, assumir que ele já fez todo o trabalho pesado de pensar e então apenas dizer que concordo com ele. E eu concordo mesmo, não porque sou preguiçoso, mas porque eu pensei um pouco sobre a frase, só um pouco. De fato, se eu considerar a palavra "louvado" como Nietzsche a considerou, eu não poderei acreditar nesse tipo de deus.

Desviando: As verdades existem e estão por aí, acreditemos nelas ou não. A gravidade só passou a existir após as formulações de Newton? A evolução só passou a existir após os conceitos de Darwin? Quando foi que a Terra passou a girar em torno do Sol, depois que paramos de considerá-la como o centro do Universo? Veja o vídeo abaixo, é bem interessante. Ele mostra que as verdades sempre são, mas somos nós que as olhamos de acordo com o viés que nos é conveniente, ou possível.


Voltando: Eu espero que um deus que deseja sempre ser louvado (conforme Nietzsche) seja apenas uma opção, mas não seja uma verdade apenas esperando para ser descoberta. No entanto, se estivermos errados (Nietzsche e eu) e essa divindade existir mesmo, só consigo pensar em uma coisa: lascou. Já pensou passar toda a eternidade ajoelhado, batendo a cabeça no chão, pronunciando as mesmas palavras sem sentido, com um certo ar de humilhação, apenas para satisfazer o ego de um deus que deseja ser louvado dessa maneira sempre?

Por outro lado, e se "louvado" tivesse outro significado? Se fosse interpretado como o que acontece dentro do ser humano quando desfruta de uma queda d’água em uma paisagem de tirar o fôlego, ou quando admira um céu estrelado, ou quando se diverte com seu filho sem preocupações, ou quando opta ajudar ao invés de dar uma cusparada na mão de quem lhe pede socorro, ou quando respeita as mais diversas opiniões com a consciência de que diferenças sempre vão existir, ou quando não leva em consideração os erros alheios, pois sabe que também erra as vezes? (Encerro aqui para não ficar muito extenso.) Bom, aí eu mudo de opinião. Se esse Deus, que deseja esse tipo de louvor, existir, passo a não ver nenhum problema em viver louvando para sempre. Vou além, começo a acreditar que esse Deus seja uma daquelas verdades que só está esperando para que a descubramos.

Nós temos a tendência, ou melhor, a necessidade de dar nome as coisas. Nomeamos tudo, fica mais fácil. Damos nome inclusive ao que não conhecemos, então assumimos que sabemos tudo o que é necessário a partir daquele título. Por que ser diferente? Vamos dar "nome aos bois", mas espero que você perceba o quanto somos péssimos nisso.

Pesquisando rápido na internet, nós encontramos comentários dizendo que Nietzsche era ateu, mas nunca conseguiremos ter certeza qual era o viés do olhar dele. Minha opinião é que ele era ateu sim. Uma coisa ele não era, preguiçoso. Ele gastou bastante energia para formular suas ideias, estudou muito, pensou. Ele não se decidia só porque alguém pensou e formulou uma frase de efeito. Quanto a mim, caso você ainda não tenha percebido, eu não sou ateu e, provavelmente, pelo mesmo motivo que Nietzsche pode ser considerado ateu, mas apenas com um viés diferente.

Desviando: Já que estamos falando tanto de viés, se um hindu me perguntar se eu sou ateu, o que eu deveria responder? Um ateu não acredita em um deus especifico, ou um ateu não acredita em nenhum tipo de deus? Vamos olhar no dicionário, mas acho que não vamos conseguir concluir nada (perguntas, as perguntas são importantes).

deus 
sm (lat deus) 1 O Ser supremo; o espírito infinito e eterno, criador e preservador do Universo. 2 Teol Ente tríplice e uno, infinitamente perfeito, livre e inteligente, criador e regulador do Universo. 3 Cada uma das pessoas da Santíssima Trindade.4 Indivíduo ou personagem que, por qualidades extraordinárias, se impõe à adoração ou ao amor dos homens. 5 Objeto de um culto, ou de um desejo ardente que se antepõe a todos os outros desejos ou afetos. 6 Cada uma das divindades masculinas do politeísmo. Pl: deuses. Fem: deusa.

Sob o aspecto do trecho em negrito, ateus podem não existir. São inúmeras as possibilidades de deuses. O dinheiro, a ciência, a razão, uma pessoa, um animal, um automóvel, um time de futebol, uma casa, a família, um objetivo, o sucesso, uma paixão e até mesmo um ser inefável. Todos temos algum objeto de culto, ou de desejo ardente, algo colocado além de todos os outros objetos ou afetos. E, como se não bastasse, somos todos politeístas. Assim, o que é ser ateu? O que é ser crente? (Para ateu segundo o dicionário clique aqui, só não se esqueça da definição 5 em negrito sobre a palavra deus.)

Voltando: Não sei se você já percebeu, mas é possível ter fé e ser um ser pensante ao mesmo tempo. Calma! Eu não estou falando de mim, seria muita presunção. Eu pensava em Isaac Newton para esse caso.

Newton foi um cristão convicto em seus ideais sobre Deus (cuidado, não estamos falando sobre religião, não misturemos as coisas, isso seria prática de um preguiçoso). Arrisco dizer que ele escreveu tantas páginas sobre Deus quanto sobre ciência, mas os manuscritos sobre fé não são tão famosos assim, por qualquer que seja o motivo e que não vem ao caso. (Se tiver interesse, uma biblioteca em Israel fez cópias destes manuscritos e deixou online gratuitamente aqui.)

Seria bem fácil falar que eu sou ignorante e alienado por ter algum tipo de fé, mas falar isso sobre Newton não seria trivial. O que estaríamos afirmando sobre nós, onde estaríamos nos colocando, se afirmássemos isso sobre ele?

Desviando: Confesso que há situações em que eu mesmo me apresentaria a alguém como ignorante e alienado. Por exemplo: o que vale mais, uma pedra ou um automóvel? Poderíamos questionar se estamos comparando com uma pedra rara, dita preciosa. OK, quantos trevos de quatro folhas você já encontrou por aí? O que vale mais um trevo de quatro folhas ou um automóvel? Aposto que se a moda pegar, um dia estaremos vendendo nossos automóveis para comprar trevos de quatro folhas e quem sabe até pedras comuns. (Fiquei com uma vontade de comparar o automóvel a um copo d’água também.)

"Jovem Jenny: Você é idiota ou o que?
Jovem Forrest: Minha mãe diz: idiota é quem faz idiotices."
Forrest Gump

Voltando: Enfim, somos bem ruins mesmo em nomear as coisas, tudo por causa do viés. Faz algum tempo que eu estou tentando pensar mais em como as coisas são e menos no nome delas. Nesse sentido e por enquanto, eu tento pensar que existem pessoas para as quais o "como" basta, para quem o "como" explica tudo, e existem pessoas para as quais o "o que" é importante, para quem somente o "o que" é capaz de dar algum sentido. Nesse ponto, seria muito óbvio eu concluir falando que você não pode ser preguiçoso, que o importante é escolher o "como" ou o "o que". Mas com esse tipo de sugestão, caso você precisasse mesmo dela, eu só estaria criando mais um preguiçoso e me resumindo a apenas um torcedor, pedindo para que você escolhesse uma equipe, quem sabe a minha equipe, para que eu sentisse algum tipo de conforto, uma validação para a escolha que fiz. Entretanto, o que estamos deixando escapar é que, para esse tipo de validação que buscamos, o importante não é o outro, mas somos nós. Imagine-se sentado a uma mesa, de frente com você mesmo. Não um espelho, mas sua cópia perfeita, ali, do outro lado da mesa (talvez melhor ou pior vestido). O que diríamos para nós sobre nossas escolhas?

"(...) Poderíamos nos reconhecer? E se nos reconhecêssemos, conheceríamos a nós mesmos? O que diríamos a nós mesmos? O que aprenderíamos com nós mesmos? O que realmente gostaríamos de ver se pudéssemos ficar diante de nós e olhar para nós mesmos?"
A Outra Terra - 2012

Créditos: Obrigado ao meu irmão MS pelo vídeo sobre a bicicleta com o guidão invertido.

domingo, 5 de julho de 2015

Diga-Me o Que Ouves e te Direi Quem Tu És

"Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é possível fazer sentido. Eu não: quero é uma verdade inventada." Clarice Lispector

Quando eu penso em contos de fadas, vem em minha mente uma vovozinha de cabelos bem brancos, tricotando, sentada em uma cadeira de balanço e de frente com uma lareira que ilumina e aquece o ambiente. Ao redor da vovozinha, estão as crianças, sentadas no chão, caneca de chocolate quente na mão, ouvindo a história que está sendo narrada pela senhora que não tira os olhos do tricô. Mas não sei de onde vem essa cena. Provavelmente algo sugestionado, não criei essa imagem na minha cabeça por mim mesmo (já falei um pouco sobre sugestões na mente aqui). Enfim...

Na época em que os principais ou mais conhecidos contos foram criados, entre os séculos XII e XIV principalmente, eles eram transmitidos de forma oral. Atualmente, é frequente ver as "histórias da vovozinha" na tela dos cinemas e também em publicações de diferentes editoras. De forma geral, os contos de fadas giram em torno de narrativas com objetivo de transmitir cultura, conhecimento e valores morais, usando magia, metamorfose, animais falantes e encantamento como artifícios. Na maioria dos casos, são contos voltados para crianças, ajudando-as a interpretar o mundo, a lidar com os conflitos internos enquanto crescem. Apenas para pensarmos em alguns exemplos: "Chapeuzinho Vermelho" ensina que não se pode confiar em qualquer pessoa que se apresenta gentil, pode ser um "lobo mau"; "A Bela e a Fera" mostra que não se deve criar estereótipos e resumir tudo a aparência; "Branca de Neve" aconselha a não aceitarmos o que desconhecidos podem oferecer pelos caminhos.

Um fato curioso é que os contos de fadas não foram concebidos para crianças originalmente, antes tinham como objetivo o entretenimento de adultos. Afinal de contas, seu surgimento data de uma época em que não existiam rádio, televisão, internet. As histórias tratavam de incesto, adultério, canibalismo, estupro etc. Segundo Sheldon Cashdan, em seu livro "Os 7 pecados capitais nos contos de fadas: como os contos de fadas influenciam nossas vidas", em uma das principais interpretações de "A Bela Adormecida" o príncipe abusa da princesa enquanto ela dorme e foge deixando-a grávida. Confesso que também acho estranho pensar nos contos de fadas sob esse aspecto.

Outro aspecto que passa despercebido é que, ainda hoje, histórias continuam sendo criadas com o objetivo de transmitir mensagens, continuam sugerindo ideias na nossa mente. Algumas sugestões são bem diretas, outras são assimiladas apenas pelo nosso inconsciente. Pode até fazer parte do plano de assertividade de uma ideia não se deixar perceber que uma história está sendo contada. Fato é que em algum momento faremos uso do que nos ensinam, se já não fizemos. Então, nesse sentido, quanto do que somos é definido por essas histórias? Aspectos inofensivos? Quem cria ou conta as histórias? Elas tem servido para abrir portas, ou para trancar? Que histórias são essas?

Desviando:
"Pi Patel Adulto: Então, o que foi que Mamaji já lhe contou?
Escritor: Disse que você tinha uma história que me faria acreditar em Deus.
Pi Patel Adulto: Ele diria isso sobre uma boa refeição. (risos) Quanto a Deus, só lhe posso contar a minha história. Você decidirá por si em que acreditar.
Escritor: É justo.
Pi Patel Adulto: Vejamos então. Por onde começar?"
As Aventuras de Pi

Voltando: Era uma vez um garotinho que colocou em sua cabeça o desejo de ser uma pessoa que venceu na vida, alguém em quem pudesse se orgulhar. Resolveu se tornar um exemplo para tantos outros que, como ele, não querem apenas passar por aqui, mas querem poder dizer que viveram. Ele bolou um plano, uma serie de conquistas, um passo a passo, cada uma apontando para um todo maior no futuro, e esse todo seria o sucesso, a vitória. A primeira dessas conquistas, quando ainda pequeno, foi o premio de ciências na escola e como planejado ela representou a primeira parte do todo. A segunda conquista foi o torneio de tênis, quando já não era mais garotinho, outra parte do sucesso final. A terceira conquista foi a sua formatura na faculdade. Agora ele já tinha uma profissão, por consequência, conseguiu um emprego, a quarta e última conquista, que permitiria alcançar o destino final, a conquista cabal, se tornar o exemplo. Ele até criou um slogan, "a conquista vem de longe". Chegou a hora, o momento planejado há tanto tempo, pacientemente construído. Finalmente, ele pôde ir até uma concessionária de automóveis e comprar o carro do ano, motor potente, rodas de liga leve, computador de bordo, o mais moderno em tecnologia. Vitória.

Essa história pareceu estranha? Eu senti uma sugestão ao longo da narrativa de que algo grande e valoroso ia acontecer no final. Fiquei curioso em saber que conquista nobre era aquela que o garotinho tinha vislumbrado. Só poderia ser uma conquista honrável, afinal de contas, cada um dos quatro passos guardavam honra em si mesmos... estudo, esporte, profissão. Mas quando tudo foi resumido ao carro do ano, foi como se todo o valor que o garotinho caprichosamente construiu ao longo de sua vida fosse por água a baixo. Concordo, um automóvel tem o seu valor, mas todo o esforço e todas as conquistas mais nobres ao longo de uma vida apontam para a conquista de um bem material? É isso?

Não se engane, eu não inventei essa história. Serão apenas 30 segundos de imagens.


É bem provável que você já tenha ouvido essa história antes e até tenha "comprado" a ideia, sem ter percebido que havia uma mensagem, que agora, pensando um pouco, você repudiou (repudiou?). Quer saber o pior? Começo a questionar os meus atos, começo a chegar a conclusão que eu acredito mesmo nisso, que eu vivo isso e estou sendo hipócrita ao dizer que não gostei do desfecho. Talvez esta mensagem seja sugestiva para a mente dos que estão chegando, mas explique o que se tornaram aqueles que estão aqui há um pouco mais de tempo.

Desviando: Não é necessariamente de frente com a lareira, com cabelos brancos e desfrutando de uma caneca de chocolate quente que uma boa história é contada. Pode ser vendo o programa esportivo, com uma cerveja na mão enquanto brinca com o cachorro (os cabelos brancos procedem), tentando passar algum valor para quem te ouve, não importando muito se já faz algum tempo que esse alguém caminha com as próprias pernas. Foi assim que eu ouvi o conto abaixo. Desculpe não dar crédito a quem criou a história, desconheço.

Voltando: Era uma vez dois homens. O primeiro deles era um cantor muito famoso, que rodou o mundo em uma turnê, fazendo shows com todo o peso do som de sua voz. Sempre muito aplaudido, muitos cantando com ele em uma só voz e chorando emocionados por se encontrarem com seu ídolo na primeira fila da plateia. O segundo um filantropo, que rodou o mundo de forma anônima, ajudando pessoas com fome, com sede, com frio, com calor, pessoas que choram e que gritam com todo o peso de seus silêncios. Quis o destino que os dois tivessem a mesma cidade natal e tomassem o mesmo avião para o retorno, para o merecido descanso. O cantor famoso foi recebido com mais fãs, mais gritos, mais aplausos, mais lágrimas. O filantropo conseguiu descer do avião somente após toda a confusão se dispersar, sem ninguém que o recebesse. Então, ele se questionou. Por que ele merecia menos honrarias? Por que o sentido das coisas estavam invertidos na mente das pessoas? Mas como um afago, ou como um estimulo para não esmorecer, ele recebeu uma mensagem em seu coração, não soube dizer de onde veio, mas pôde traduzi-la em palavras, "você ainda não chegou na sua verdadeira cidade natal".

Se nós decidirmos acreditar nessa segunda história, estaremos sendo fantasiosos? Alienados? Ignorantes? Se resumirá a isso, apenas um conto de fadas? Não estou dizendo que um músico não tenha o seu valor (que fique claro que falo de arte, melodia e poesia), mas uma vida inspiradora, capaz de tirar lágrimas de nossos olhos e nos fazer querer ficar na primeira fila, se resume a ter muitos fãs, a conquistar bens materiais de grande valor monetário, ou posições sociais reconhecíveis? Acreditar em histórias como a primeira que apresentei, a do garotinho, é o que nos transforma em donos de nossas próprias ações, donos da própria vida? Esse tipo de crença é mais... normal? Acreditar que a segunda história fala apenas de encantamento e fantasia não é ignorar o que podemos nos tornar?

Acreditar que uma história é só uma história nos transforma em apenas participantes de um conto de fadas, coadjuvantes, e lamento, sem final feliz, pois neste mundo, o mocinho e a princesa sempre morrem no final. Mas interpretar as mensagens e escolher aquelas que apontam aquilo que podemos nos tornar, isso nos habilita a fazer história, protagonistas.

Quantas histórias estão sendo contadas sem que percebamos? Quais são as que nos fazem evoluir? E quais são as que nos fazem estacionar, ou até mesmo regredir? Quanto da nossa vida já foi transformada pelas mensagens que ouvimos? Estamos escolhendo aquelas nas quais queremos acreditar? Ou as estão escolhendo por nós? Estamos fazendo perguntas? Contos de fadas? Quem somos nós?