domingo, 5 de julho de 2015

Diga-Me o Que Ouves e te Direi Quem Tu És

"Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é possível fazer sentido. Eu não: quero é uma verdade inventada." Clarice Lispector

Quando eu penso em contos de fadas, vem em minha mente uma vovozinha de cabelos bem brancos, tricotando, sentada em uma cadeira de balanço e de frente com uma lareira que ilumina e aquece o ambiente. Ao redor da vovozinha, estão as crianças, sentadas no chão, caneca de chocolate quente na mão, ouvindo a história que está sendo narrada pela senhora que não tira os olhos do tricô. Mas não sei de onde vem essa cena. Provavelmente algo sugestionado, não criei essa imagem na minha cabeça por mim mesmo (já falei um pouco sobre sugestões na mente aqui). Enfim...

Na época em que os principais ou mais conhecidos contos foram criados, entre os séculos XII e XIV principalmente, eles eram transmitidos de forma oral. Atualmente, é frequente ver as "histórias da vovozinha" na tela dos cinemas e também em publicações de diferentes editoras. De forma geral, os contos de fadas giram em torno de narrativas com objetivo de transmitir cultura, conhecimento e valores morais, usando magia, metamorfose, animais falantes e encantamento como artifícios. Na maioria dos casos, são contos voltados para crianças, ajudando-as a interpretar o mundo, a lidar com os conflitos internos enquanto crescem. Apenas para pensarmos em alguns exemplos: "Chapeuzinho Vermelho" ensina que não se pode confiar em qualquer pessoa que se apresenta gentil, pode ser um "lobo mau"; "A Bela e a Fera" mostra que não se deve criar estereótipos e resumir tudo a aparência; "Branca de Neve" aconselha a não aceitarmos o que desconhecidos podem oferecer pelos caminhos.

Um fato curioso é que os contos de fadas não foram concebidos para crianças originalmente, antes tinham como objetivo o entretenimento de adultos. Afinal de contas, seu surgimento data de uma época em que não existiam rádio, televisão, internet. As histórias tratavam de incesto, adultério, canibalismo, estupro etc. Segundo Sheldon Cashdan, em seu livro "Os 7 pecados capitais nos contos de fadas: como os contos de fadas influenciam nossas vidas", em uma das principais interpretações de "A Bela Adormecida" o príncipe abusa da princesa enquanto ela dorme e foge deixando-a grávida. Confesso que também acho estranho pensar nos contos de fadas sob esse aspecto.

Outro aspecto que passa despercebido é que, ainda hoje, histórias continuam sendo criadas com o objetivo de transmitir mensagens, continuam sugerindo ideias na nossa mente. Algumas sugestões são bem diretas, outras são assimiladas apenas pelo nosso inconsciente. Pode até fazer parte do plano de assertividade de uma ideia não se deixar perceber que uma história está sendo contada. Fato é que em algum momento faremos uso do que nos ensinam, se já não fizemos. Então, nesse sentido, quanto do que somos é definido por essas histórias? Aspectos inofensivos? Quem cria ou conta as histórias? Elas tem servido para abrir portas, ou para trancar? Que histórias são essas?

Desviando:
"Pi Patel Adulto: Então, o que foi que Mamaji já lhe contou?
Escritor: Disse que você tinha uma história que me faria acreditar em Deus.
Pi Patel Adulto: Ele diria isso sobre uma boa refeição. (risos) Quanto a Deus, só lhe posso contar a minha história. Você decidirá por si em que acreditar.
Escritor: É justo.
Pi Patel Adulto: Vejamos então. Por onde começar?"
As Aventuras de Pi

Voltando: Era uma vez um garotinho que colocou em sua cabeça o desejo de ser uma pessoa que venceu na vida, alguém em quem pudesse se orgulhar. Resolveu se tornar um exemplo para tantos outros que, como ele, não querem apenas passar por aqui, mas querem poder dizer que viveram. Ele bolou um plano, uma serie de conquistas, um passo a passo, cada uma apontando para um todo maior no futuro, e esse todo seria o sucesso, a vitória. A primeira dessas conquistas, quando ainda pequeno, foi o premio de ciências na escola e como planejado ela representou a primeira parte do todo. A segunda conquista foi o torneio de tênis, quando já não era mais garotinho, outra parte do sucesso final. A terceira conquista foi a sua formatura na faculdade. Agora ele já tinha uma profissão, por consequência, conseguiu um emprego, a quarta e última conquista, que permitiria alcançar o destino final, a conquista cabal, se tornar o exemplo. Ele até criou um slogan, "a conquista vem de longe". Chegou a hora, o momento planejado há tanto tempo, pacientemente construído. Finalmente, ele pôde ir até uma concessionária de automóveis e comprar o carro do ano, motor potente, rodas de liga leve, computador de bordo, o mais moderno em tecnologia. Vitória.

Essa história pareceu estranha? Eu senti uma sugestão ao longo da narrativa de que algo grande e valoroso ia acontecer no final. Fiquei curioso em saber que conquista nobre era aquela que o garotinho tinha vislumbrado. Só poderia ser uma conquista honrável, afinal de contas, cada um dos quatro passos guardavam honra em si mesmos... estudo, esporte, profissão. Mas quando tudo foi resumido ao carro do ano, foi como se todo o valor que o garotinho caprichosamente construiu ao longo de sua vida fosse por água a baixo. Concordo, um automóvel tem o seu valor, mas todo o esforço e todas as conquistas mais nobres ao longo de uma vida apontam para a conquista de um bem material? É isso?

Não se engane, eu não inventei essa história. Serão apenas 30 segundos de imagens.


É bem provável que você já tenha ouvido essa história antes e até tenha "comprado" a ideia, sem ter percebido que havia uma mensagem, que agora, pensando um pouco, você repudiou (repudiou?). Quer saber o pior? Começo a questionar os meus atos, começo a chegar a conclusão que eu acredito mesmo nisso, que eu vivo isso e estou sendo hipócrita ao dizer que não gostei do desfecho. Talvez esta mensagem seja sugestiva para a mente dos que estão chegando, mas explique o que se tornaram aqueles que estão aqui há um pouco mais de tempo.

Desviando: Não é necessariamente de frente com a lareira, com cabelos brancos e desfrutando de uma caneca de chocolate quente que uma boa história é contada. Pode ser vendo o programa esportivo, com uma cerveja na mão enquanto brinca com o cachorro (os cabelos brancos procedem), tentando passar algum valor para quem te ouve, não importando muito se já faz algum tempo que esse alguém caminha com as próprias pernas. Foi assim que eu ouvi o conto abaixo. Desculpe não dar crédito a quem criou a história, desconheço.

Voltando: Era uma vez dois homens. O primeiro deles era um cantor muito famoso, que rodou o mundo em uma turnê, fazendo shows com todo o peso do som de sua voz. Sempre muito aplaudido, muitos cantando com ele em uma só voz e chorando emocionados por se encontrarem com seu ídolo na primeira fila da plateia. O segundo um filantropo, que rodou o mundo de forma anônima, ajudando pessoas com fome, com sede, com frio, com calor, pessoas que choram e que gritam com todo o peso de seus silêncios. Quis o destino que os dois tivessem a mesma cidade natal e tomassem o mesmo avião para o retorno, para o merecido descanso. O cantor famoso foi recebido com mais fãs, mais gritos, mais aplausos, mais lágrimas. O filantropo conseguiu descer do avião somente após toda a confusão se dispersar, sem ninguém que o recebesse. Então, ele se questionou. Por que ele merecia menos honrarias? Por que o sentido das coisas estavam invertidos na mente das pessoas? Mas como um afago, ou como um estimulo para não esmorecer, ele recebeu uma mensagem em seu coração, não soube dizer de onde veio, mas pôde traduzi-la em palavras, "você ainda não chegou na sua verdadeira cidade natal".

Se nós decidirmos acreditar nessa segunda história, estaremos sendo fantasiosos? Alienados? Ignorantes? Se resumirá a isso, apenas um conto de fadas? Não estou dizendo que um músico não tenha o seu valor (que fique claro que falo de arte, melodia e poesia), mas uma vida inspiradora, capaz de tirar lágrimas de nossos olhos e nos fazer querer ficar na primeira fila, se resume a ter muitos fãs, a conquistar bens materiais de grande valor monetário, ou posições sociais reconhecíveis? Acreditar em histórias como a primeira que apresentei, a do garotinho, é o que nos transforma em donos de nossas próprias ações, donos da própria vida? Esse tipo de crença é mais... normal? Acreditar que a segunda história fala apenas de encantamento e fantasia não é ignorar o que podemos nos tornar?

Acreditar que uma história é só uma história nos transforma em apenas participantes de um conto de fadas, coadjuvantes, e lamento, sem final feliz, pois neste mundo, o mocinho e a princesa sempre morrem no final. Mas interpretar as mensagens e escolher aquelas que apontam aquilo que podemos nos tornar, isso nos habilita a fazer história, protagonistas.

Quantas histórias estão sendo contadas sem que percebamos? Quais são as que nos fazem evoluir? E quais são as que nos fazem estacionar, ou até mesmo regredir? Quanto da nossa vida já foi transformada pelas mensagens que ouvimos? Estamos escolhendo aquelas nas quais queremos acreditar? Ou as estão escolhendo por nós? Estamos fazendo perguntas? Contos de fadas? Quem somos nós?

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