"Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é possível fazer sentido. Eu não: quero é uma verdade inventada." Clarice Lispector
Quando eu penso em contos de fadas, vem
em minha mente uma vovozinha de cabelos bem brancos, tricotando, sentada em uma
cadeira de balanço e de frente com uma lareira que ilumina e aquece o ambiente.
Ao redor da vovozinha, estão as crianças, sentadas no chão, caneca de chocolate
quente na mão, ouvindo a história que está sendo narrada pela senhora que não
tira os olhos do tricô. Mas não sei de onde vem essa cena. Provavelmente algo
sugestionado, não criei essa imagem na minha cabeça por mim mesmo (já falei um
pouco sobre sugestões na mente aqui).
Enfim...
Na época em que os principais ou mais conhecidos contos foram criados, entre
os séculos XII e XIV principalmente, eles eram transmitidos de forma oral. Atualmente,
é frequente ver as "histórias da vovozinha" na tela dos cinemas e também em
publicações de diferentes editoras. De forma geral, os contos de fadas giram em
torno de narrativas com objetivo de transmitir cultura, conhecimento e valores
morais, usando magia, metamorfose, animais falantes e encantamento como
artifícios. Na maioria dos casos, são contos voltados para crianças, ajudando-as
a interpretar o mundo, a lidar com os conflitos internos enquanto crescem.
Apenas para pensarmos em alguns exemplos: "Chapeuzinho Vermelho"
ensina que não se pode confiar em qualquer pessoa que se apresenta gentil, pode
ser um "lobo mau"; "A Bela e a Fera" mostra que não se deve criar estereótipos e resumir tudo a
aparência; "Branca de Neve" aconselha a não aceitarmos o que desconhecidos podem oferecer pelos
caminhos.
Um fato curioso é que os contos de fadas não foram concebidos para
crianças originalmente, antes tinham como objetivo o entretenimento de adultos.
Afinal de contas, seu surgimento data de uma época em que não existiam rádio,
televisão, internet. As histórias tratavam de incesto, adultério,
canibalismo, estupro etc. Segundo Sheldon Cashdan, em seu livro "Os 7 pecados capitais nos contos de fadas: como os
contos de fadas influenciam nossas vidas", em uma das principais interpretações
de "A Bela Adormecida" o príncipe abusa da princesa enquanto ela dorme e foge
deixando-a grávida. Confesso que também acho estranho pensar nos contos de
fadas sob esse aspecto.
Outro aspecto que passa
despercebido é que, ainda hoje, histórias continuam sendo criadas com o objetivo
de transmitir mensagens, continuam sugerindo ideias na nossa mente. Algumas sugestões
são bem diretas, outras são assimiladas apenas pelo nosso inconsciente. Pode
até fazer parte do plano de assertividade de uma ideia não se deixar perceber
que uma história está sendo contada. Fato é que em algum momento faremos uso do
que nos ensinam, se já não fizemos. Então, nesse sentido, quanto do que somos é
definido por essas histórias? Aspectos inofensivos? Quem cria ou conta as
histórias? Elas tem servido para abrir portas, ou para trancar? Que histórias
são essas?
Desviando:
"Pi
Patel Adulto: Então, o que foi que Mamaji já lhe contou?
Escritor:
Disse que você tinha uma história que me faria acreditar em Deus.
Pi
Patel Adulto: Ele diria isso sobre uma boa refeição.
(risos) Quanto a Deus, só lhe posso contar a minha história. Você decidirá por
si em que acreditar.
Escritor: É
justo.
Pi
Patel Adulto: Vejamos então. Por onde começar?"
As Aventuras de Pi
Voltando: Era uma vez um garotinho que colocou em sua cabeça o desejo de
ser uma pessoa que venceu na vida, alguém em quem pudesse se orgulhar. Resolveu
se tornar um exemplo para tantos outros que, como ele, não querem apenas passar
por aqui, mas querem poder dizer que viveram. Ele bolou um plano, uma serie de
conquistas, um passo a passo, cada uma apontando para um todo maior no futuro,
e esse todo seria o sucesso, a vitória. A primeira dessas conquistas, quando
ainda pequeno, foi o premio de ciências na escola e como planejado ela
representou a primeira parte do todo. A segunda conquista foi o torneio de
tênis, quando já não era mais garotinho, outra parte do sucesso final. A
terceira conquista foi a sua formatura na faculdade. Agora ele já tinha uma
profissão, por consequência, conseguiu um emprego, a quarta e última conquista,
que permitiria alcançar o destino final, a conquista cabal, se tornar o
exemplo. Ele até criou um slogan, "a conquista vem de longe". Chegou a hora, o momento planejado há tanto tempo,
pacientemente construído. Finalmente, ele pôde ir até uma concessionária de
automóveis e comprar o carro do ano, motor potente, rodas de liga leve,
computador de bordo, o mais moderno em tecnologia. Vitória.
Essa história pareceu estranha? Eu senti uma sugestão ao longo da
narrativa de que algo grande e valoroso ia acontecer no final. Fiquei curioso
em saber que conquista nobre era aquela que o garotinho tinha vislumbrado. Só
poderia ser uma conquista honrável, afinal de contas, cada um dos quatro passos
guardavam honra em si mesmos... estudo, esporte, profissão. Mas quando tudo foi
resumido ao carro do ano, foi como se todo o valor que o garotinho
caprichosamente construiu ao longo de sua vida fosse por água a baixo. Concordo,
um automóvel tem o seu valor, mas todo o esforço e todas as conquistas mais
nobres ao longo de uma vida apontam para a conquista de um bem material? É
isso?
Não se engane, eu não inventei essa história. Serão apenas 30 segundos de imagens.
É bem provável que você já tenha ouvido essa história antes e até tenha "comprado" a ideia, sem ter percebido que havia uma mensagem, que agora, pensando
um pouco, você repudiou (repudiou?). Quer saber o pior? Começo a questionar os
meus atos, começo a chegar a conclusão que eu acredito mesmo nisso, que eu vivo
isso e estou sendo hipócrita ao dizer que não gostei do desfecho. Talvez esta
mensagem seja sugestiva para a mente dos que estão chegando, mas explique o que
se tornaram aqueles que estão aqui há um pouco mais de tempo.
Desviando: Não é necessariamente de frente com a lareira, com cabelos
brancos e desfrutando de uma caneca de chocolate quente que uma boa história é
contada. Pode ser vendo o programa esportivo, com uma cerveja na mão enquanto
brinca com o cachorro (os cabelos brancos procedem), tentando passar algum
valor para quem te ouve, não importando muito se já faz algum tempo que esse
alguém caminha com as próprias pernas. Foi assim que eu ouvi o conto abaixo.
Desculpe não dar crédito a quem criou a história, desconheço.
Voltando: Era uma vez dois
homens. O primeiro deles era um cantor muito famoso, que rodou o mundo em uma
turnê, fazendo shows com todo o peso do som de sua voz. Sempre muito aplaudido,
muitos cantando com ele em uma só voz e chorando emocionados por se encontrarem
com seu ídolo na primeira fila da plateia. O segundo um filantropo, que rodou o mundo de
forma anônima, ajudando pessoas com fome, com sede, com frio, com calor, pessoas
que choram e que gritam com todo o peso de seus silêncios. Quis o destino que
os dois tivessem a mesma cidade natal e tomassem o mesmo avião para o retorno,
para o merecido descanso. O cantor famoso foi recebido com mais fãs, mais
gritos, mais aplausos, mais lágrimas. O filantropo conseguiu descer do avião
somente após toda a confusão se dispersar, sem ninguém que o recebesse. Então,
ele se questionou. Por que ele merecia menos honrarias? Por que o sentido das
coisas estavam invertidos na mente das pessoas? Mas como um afago, ou como um
estimulo para não esmorecer, ele recebeu uma mensagem em seu coração, não soube
dizer de onde veio, mas pôde traduzi-la em palavras, "você ainda não chegou na
sua verdadeira cidade natal".
Se nós decidirmos acreditar nessa segunda história, estaremos sendo fantasiosos?
Alienados? Ignorantes? Se resumirá a isso, apenas um conto de fadas? Não estou
dizendo que um músico não tenha o seu valor (que fique claro que falo de arte,
melodia e poesia), mas uma vida inspiradora, capaz de tirar lágrimas de nossos
olhos e nos fazer querer ficar na primeira fila, se resume a ter muitos fãs, a conquistar
bens materiais de grande valor monetário, ou posições sociais reconhecíveis? Acreditar
em histórias como a primeira que apresentei, a do garotinho, é o que nos
transforma em donos de nossas próprias ações, donos da própria vida? Esse tipo
de crença é mais... normal? Acreditar que a segunda história fala apenas de
encantamento e fantasia não é ignorar o que podemos nos tornar?
Acreditar que uma história é só uma história nos transforma em apenas participantes
de um conto de fadas, coadjuvantes, e lamento, sem final feliz, pois neste
mundo, o mocinho e a princesa sempre morrem no final. Mas interpretar as
mensagens e escolher aquelas que apontam aquilo que podemos nos tornar, isso
nos habilita a fazer história, protagonistas.
Quantas histórias estão sendo contadas sem que percebamos? Quais são as
que nos fazem evoluir? E quais são as que nos fazem estacionar, ou até mesmo
regredir? Quanto da nossa vida já foi transformada pelas mensagens que ouvimos?
Estamos escolhendo aquelas nas quais queremos acreditar? Ou as estão escolhendo
por nós? Estamos fazendo perguntas? Contos de fadas? Quem somos nós?
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