sexta-feira, 26 de novembro de 2021

Leite Derramado... Que Leite?

"E assim é o ser humano: tão vazio que se preenche com qualquer coisa, por mais insignificante que seja." 

Blaise Pascal

O fonógrafo de cilindro foi, na prática, o primeiro dispositivo mecânico de gravação e reprodução sonora. Inventado por Thomas Edison em 1877, popularizou-se de tal maneira que tornou o cilindro um dos itens mais consumidos entre os anos de 1880 e 1910. Em 1889, surgiu o gramofone, ou fonógrafo de disco, cuja concepção é atribuída a Emile Berliner. Os discos eram mais fáceis de produzir, transportar e armazenar, além disso, permitiam gravações de som nos dois lados. Não à toa, após certo aprimoramento, os discos dominaram a indústria fonográfica até o final do século XX. Mais adiante, avanços na elétrica e no magnetismo possibilitaram a criação das fitas cassete, oficialmente lançadas em 1963, pela empresa Philips. Elas consistiam em fitas com dados armazenados magneticamente também dos dois lados, contribuindo ainda mais com a economia de espaço e facilidade de manuseio – também introduziram a facilidade da regravação doméstica. Já entre as décadas de 80 e 90, surgia o disco compactocompact disk (CD) –, que permitiu o armazenamento de dados digitalmente. Entretanto, o CD foi pouco longevo, pois a tecnologia que permitiu o seu surgimento, também foi o seu fim. Hoje, o principal meio de gravação e reprodução de som é o digital (pen-drives, celulares e streamings).

Dias atrás ouvi uma gravação de voz, era uma despedida incerta de alguém. Incerta, pois insinuava uma expectativa de que o trágico destino ainda pudesse ser apenas uma hipótese equivocada. Dizem que a "esperança é a última morre", ou que "no fim tudo dá certo".

Desviando: Interessante, escrevendo o parágrafo anterior, lembrei-me de um relato de Leonard Mlodinow, em seu livro Subliminar. Darei crédito ao "modo automático" de minha mente, no seu processo de "ligar pontos", sem tentar entendê-la. Leonard disse que, certa vez, o seguinte experimento foi feito... Separaram dois grupos de pessoas e disseram a todos que um novo teste havia sido desenvolvido, para detectar um tipo qualquer de câncer. O exame consistia em lamber uma fita de papel, de modo que o diagnóstico seria dado pela alteração, ou não, da cor da fita. Com os grupos separados, a um foi dito que, se a fita permanecesse branca, após a lambida, o resultado era negativo para o tipo de câncer em questão. Ao segundo grupo foi dito que, se a fita continuasse branca, o resultado era positivo. O que não foi dito aos dois grupos é que as fitas eram simples pedaços de papel e que não havia nada nelas que pudesse fazê-las mudar de cor. Enfim, todas as pessoas do primeiro grupo lamberam uma única vez a fita e se deixaram aliviar da tensão nos ombros. Enquanto as pessoas do segundo grupo, uma a uma, lamberam a fita, uma, duas, três, quatro, incontáveis vezes, até a exaustão, no anseio desesperado de que ocorresse a alteração de cor, até desistirem e devolverem as fitas aos experimentadores, com o olhar de uma criança que é obrigada a devolver o brinquedo a um adulto. Sei qual olhar é esse e me compadeço quando ele vem de adultos. Às vezes, podemos senti-lo até no tom de voz. Acho que foi essa a associação da minha mente com a gravação que mencionei.

Voltando: A pessoa dona da voz fez a gravação minutos, ou quem sabe segundos antes de sua morte. O que ela não sabia ainda era "como" lhe aconteceria, ligeiramente diferente de nós, que, por enquanto, não sabemos "se" algo pode nos acontecer em minutos.

O que me inquietou foi o fato de aquela gravação ter sido feita vinte anos atrás e não existir nada nela que me fizesse desconsiderar a possibilidade de ter sido feita há somente vinte minutos. Aliás, eu só me dei conta que era uma gravação antiga minutos após tê-la ouvido, quando entendi do que se tratava.

É muito estranho que a evidência da existência de uma pessoa não seja suficiente para identifica-la no tempo. Não tendo, aquela mensagem, sido gravada há vinte minutos, mas sim há vinte anos, faz com que ela não signifique nada hoje. Digo, perde-se a necessidade de efeito para uma causa – ou vice-versa. É só um registro, mas não um "gatilho". E por não significar nada hoje, permanecendo a indiferença da evidência no tempo – por não ser possível identificar se hoje, ou se há vinte anos –, por que eu deveria acreditar que a mensagem teve algum significado no momento em que foi criada? A gravação, no instante em que a ouvi, era somente um "nó" no tempo, unindo o "agora" com o "há vinte anos". Ela fez o passado parecer um sonho. Nós parecemos um sonho.

Percebe? A marca no tempo não perpetuou, ao contrário, revelou a insignificância. Chego à conclusão de que um legado não nos eterniza, mas nos confina. Ele confirma que não somos nada. Uma marca no tempo é apenas um "nó", eliminando todo significado e importância que damos ao "tique-taque". Não faz a menor diferença. Não fazemos a menor diferença.

Desviando: A quem possa interessar, aquela gravação foi a despedida de uma passageira de um dos voos do atentado de 11 de setembro, em 2001, nos EUA. Também já falei sobre nossa insignificância aqui.

Voltando: É muito estranho ouvir uma pessoa falar sobre a hipótese da sua morte, minutos ou segundos antes de ela se concretizar, quando hoje sabemos que foi tão certa. A irracionalidade de nosso cérebro parece nos impelir a tentar entrar em contato com aquela pessoa, do "agora" para "há vinte anos", e dizer a ela o que precisa ser feito, ou o que ela vai enfrentar. Nossa mente não "desata" bem "nós" no tempo.

Nossos corações, definitivamente, não foram preparados para aceitar o leite derramado, inclusive e principalmente, quando a jarra de leite é a nossa própria existência. E essa é causa, encarar o leite derramado nos revela que nós nem sabemos se existimos de verdade.



2 comentários:

  1. Muito interessante e assombroso ao mesmo "tempo". Graças a esse artigo acabei de comprar o livro "Elástico" do Leonard Mlodinow. Será que fui atingido subliminarmente para gastar um dinheiro que eu não queria, comprando um livro nem citado no artigo!?..,rs Afinal na capa tem um "nó" no elástico...e "nó" foi uma palavra chave desse artigo.

    Abraço!

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    1. Olá Thiago, não foi minha intenção vender o livro do Leonard. E afirmo categoricamente, mas não subliminarmente, que você me instigou a comprar esse mesmo livro. Obrigado por curtir os textos.

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