terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Cada um por Si e Deus por (contra) Todos

"Quem come do fruto do conhecimento é sempre expulso de algum paraíso." 

Melanie Klein

Lendo a frase de Malanie Klein ocorreram-me dúvidas e tristezas. A palavra "conhecimento" pareceu sugerir algo bom. A palavra "paraíso" também insinuou algo idealmente agradável. Foi daí que veio a angústia, se o conhecimento me afasta de uma situação virtuosa ou de um estado deleitoso, então ele não pode ser plenamente bom. Verdadeiro ou falso?

Desviando: Assemelha-se muito àquela indagação, "se Deus é bom, por que criou um mundo mau?". Analogamente, "se o conhecimento é bom, por que me põe para fora do paraíso?". Porém, com relação ao conhecimento, tendemos a ser mais pacientes. Não saber a resposta para a primeira questão é um bom argumento para negar a Deus. Não saber a resposta para a segunda pergunta não interfere em nada no aspecto "divino" do conhecimento. De fato, cada um escolhe o deus que quer ter.

Voltando: A primeira possibilidade seria, sim o conhecimento não é plenamente bom. Talvez ele seja somente mais um daqueles conceitos que temos "medo" de revisar. Alguém, algum dia, disse que o conhecimento era bom e nunca mais pensamos sobre isso. Você se lembra da citação sobre uma cadeira, de Clarice Lispector, feita aqui? Talvez o conhecimento se assemelhe mais a um remédio amargo do que a um dia ensolarado na praia.

A segunda tentativa de entender minhas inquietações foi recorrer à fonte da citação de Melanie. A esperança era que existisse algo a mais lá que elucidasse a mensagem. E o texto segue logo abaixo. Ah, eu farei comentários entre colchetes, ora para aguçar ainda mais nossa curiosidade, ora para ajudar a iluminar minhas dúvidas (ou não).

"O Senhor Deus fez nascer então do solo todo tipo de árvores agradáveis aos olhos e boas para alimento [sustento?]. E no meio do jardim estavam a árvore da vida e a árvore do conhecimento do bem e do mal [então eram duas árvores especiais?]. (...) E o Senhor Deus ordenou ao homem: 'Coma livremente de qualquer árvore do jardim [da árvore da vida também?], mas não coma da árvore do conhecimento do bem e do mal, porque no dia em que dela comer, certamente você morrerá.' (...) Ora, a serpente era o mais astuto de todos os animais selvagens que o Senhor Deus tinha feito. E ela perguntou à mulher: 'Foi isto mesmo que Deus disse, não comam de nenhum fruto das árvores do jardim?' [mentira] Respondeu a mulher à serpente: 'Podemos comer do fruto das árvores do jardim, mas Deus disse para não comermos do fruto da árvore que está no meio do jardim, nem tocar nele; do contrário morreremos.' [a mulher estava esperta e percebeu a mentira] (...) Disse a serpente à mulher: 'Certamente não morrerão! [mentira] Deus sabe que, no dia em que dele comerem, seus olhos se abrirão, e vocês serão como Deus, conhecedores do bem e do mal.' [verdade, o próprio Deus vai afirmar isso logo adiante] Quando a mulher viu que a árvore parecia agradável ao paladar, era atraente aos olhos e, além disso, desejável para dela se obter discernimento [satisfações pessoais?], tomou do seu fruto, comeu-o e o deu a seu marido, que comeu também. [a mulher sempre amadurece antes do homem] (...) E ao homem Deus declarou: 'Visto que você deu ouvidos à sua mulher e comeu do fruto da árvore da qual eu lhe ordenara que não comesse, maldita é a terra por sua causa; com sofrimento você se alimentará dela todos os dias da sua vida. Ela lhe dará espinhos e ervas daninhas, e você terá que alimentar-se das plantas do campo. Com o suor do seu rosto você comerá o seu pão [uhm, parece-me que a fartura cessou e junto com a independência, o homem também herdou a responsabilidade de cuidar de si mesmo], até que volte à terra, visto que dela foi tirado; porque você é pó e ao pó voltará.' (...) Então disse o Senhor Deus: 'Agora o homem se tornou como um de nós [nós? mais de um? trindade em Genesis?], conhecendo o bem e o mal. [viu? metade do que a serpente disse era verdade] Não se deve, pois, permitir que ele também tome do fruto da árvore da vida e o coma, e viva para sempre'. [não era proibido comer da árvore da vida mesmo] Por isso o Senhor Deus o mandou embora do jardim do Éden para cultivar o solo do qual fora tirado. [pois é, não dá para ser independente somente nos direitos, tem que ser nos deveres também]"

Gênesis 2:9,16,17 e 3:1-6,17-19,22,23

Desviando: Dá uma sensação boa de satisfação, né? Quando modestamente lemos algo para conhecer ou aprender corretamente, ao invés de somente pensarmos que sabemos.

Voltando: Se eu não estiver enganado, olhando para a mensagem original, parece-me que o conhecimento por si só não é o problema. Acredito que a ideia de independência, ilustrada através da simbologia da alimentação, do sustento e do trabalho, seja a peça que estava faltando para esse quebra-cabeça.

Vamos analisar uma criança, que provavelmente era o caráter de Adão antes de comer o fruto proibido. Ela sabe o que é certo e errado, mas (se bem me lembro de minha época) não o sabe do ponto de vista das consequências e sim apenas do ponto de vista da aprovação e reprovação de seus cuidadores. Neste sentido, é uma relação onde não há independência. Seja do lado da criança, que precisa do "sustento". Seja do lado dos pais, que estão presos à uma responsabilidade. E essa falta de independência não é questionada por ninguém. Quem se espantaria ao ver uma criança completamente dependente de um adulto? Quem tentaria alertar um adulto de que este estaria sendo explorado por uma criança? É uma relação natural, óbvia, esperada.

Porém, em algum momento, a criança passa a ansiar por independência. Não diferente, os adultos começam a sentir o "peso" (em uma relação saudável) de continuar sustentando um humano formado. Parece haver uma ruptura. Para a criança, o foco de suas escolhas muda do plano da aprovação e reprovação para o plano das consequências. Ela passa a querer ver e desfrutar dos resultados de suas próprias ações e competências. A dependência mútua naquela relação deixa de ser natural, óbvia e esperada para pais, filhos e também para quem os rodeia.

E esse tipo de ruptura não se restringe somente à relação entre pais e filhos, mas pode ser extrapolada para a relação entre amigos, conhecidos e mesmo desconhecidos. Ninguém quer ser dependente de alguém e ninguém quer ser responsável por alguém (em situações normais). Eu, particularmente, quero poder ir e vir, fazer e desfazer, seja com minhas próprias capacidades, seja não estando "amarrado" a ninguém. Quem quer se sentir sufocado, concorda?

Onde quero chegar? No ego e na satisfação individual. No desejo de se obter conhecimento para me sustentar com minha própria força. No conhecimento para se obter independência dos homens e do mundo. Esse é o problema, o conhecimento atrelado ao desejo de sermos soberanos. O conhecimento para se tornar um deus. Não foi assim que a serpente tentou Eva, "serão como Deus"?

Se todos cuidassem uns dos outros como pais cuidam de seus filhos, se todos se permitissem serem cuidados como os filhos se deixam cuidar por seus pais, será que não viveríamos ainda no Paraíso? Não sei. Quem sabe? Talvez para isso precisaríamos continuar com a inocência de uma criança. Não no sentido de não conhecermos o certo e o errado, mas no sentido de sermos honestos com nós mesmos e com todos. Arrisco dizer que um ser humano escolhe mais vezes fazer o correto quando implica em aprovação e reprovação do que quando implica em consequências. Abrir os olhos não resulta em melhoria. E é essa inocência que nos falta, a obediência simples a regras, a princípios, a moral, a ética etc.

Então, eu gostaria de tomar a liberdade de fazer uma ligeira modificação na frase de Melanie Klein, pois parece-me que o Paraíso é um lugar cheio de gente:

"Quem come do fruto do conhecimento [para se descobrir independente] é sempre expulso de algum paraíso."

Concluindo, no passado, os adultos me prometeram um mundo globalizado e unido. Hoje percebo que nosso futuro está se dividindo cada vez mais em pequenos grupos, que lutam por suas independências e emancipações. Todos esses grupos e outros que ainda vão surgir, cada um a seu modo, estão caminhando a passos largos para fora do Paraíso. Ou pior ainda, quem sabe desta vez estejamos trazendo o Paraíso abaixo junto conosco.



terça-feira, 24 de novembro de 2020

Black Friday: Tudo pela Metade do Dobro do Preço

"Eu não sou louco por solidariedade com os milhares de nós que, para construir o possível, também sacrificaram a verdade que seria uma loucura."

Menino a bico de penaClarice Lispector

É muito difícil determinar a origem das primeiras atividades comerciais. Porém, analisando os modos de nossa civilização ao longo do tempo, talvez possamos inferir como foi que tudo aconteceu.

No princípio, as famílias dedicavam suas horas nas produções próprias. Mas não haveria mão de obra (horas, experiência etc) suficientes para produzir toda gama de produtos necessários à subsistência. Então, cada grupo se viu obrigado a trocar parte de sua produção pelo que lhe faltava. Por exemplo, uma família de agricultores poderia trocar parte de sua plantação de batatas por parte dos peixes de um pescador. Indo além, deve ter havido uma situação em que nosso produtor de batatas precisou de peixes, mas o pescador não precisava de batatas. Foi quando entrou na história o criador de galinhas. Quem sabe, o agricultor trocou alguns tubérculos por uma galinha e depois a penosa por alguns peixes?

Em algum momento e por alguma razão, as relações de troca começaram a ficar demasiadamente complexas, de modo que foi necessário criar um facilitador, um intermediador, uma moeda. Isso teria, inclusive, permitido romper com os limites da distância, da cultura e da bilateralidade das negociações. A moeda também teria um papel importante na padronização dos valores para um dado produto.

Pronto, surgiu o comércio muito semelhante à forma como o conhecemos hoje.

Desviando: É fato que, atualmente, o uso de valores em espécie está bem restrito. Os montantes são praticamente todos virtuais. Destacam-se os cartões de banco, de alimentação, de passagem de ônibus, ou mesmo dados nos celulares. Cada um de nós tem uma quantia armazenada em forma de dados magnéticos, seja em um chip, ou em um disco rígido de algum servidor bancário.

Pensando nisso, lembrei-me que, em 1859, ocorreu uma poderosa tempestade solar, ou tempestade geomagnética, que ficou conhecida como Evento Carrington. Naquela ocasião, além da magnifica exibição de luzes no céu noturno, os sistemas de telégrafo em toda a Europa e América do Norte foram danificados. Houve relatos de telegrafistas recebendo choques elétricos, de postes telegráficos soltando faíscas (além de incêndios) e desses mesmos sistemas continuarem enviando e recebendo mensagens com a alimentação elétrica desligada e sem ninguém os operando.

Em 1859, poucas coisas eram alimentadas por energia elétrica, por isso foram apenas os sistemas telegráficos que sofreram os maiores estragos. No entanto, se aquela mesma tempestade solar ocorresse hoje, caso você não tivesse dinheiro guardado em seu colchão, você se tornaria o mais novo pobretão da praça, já que quase todos os sistemas elétricos e magnéticos atuais entrariam em pane, incluindo caixas eletrônicos e os servidores dos bancos. Sem falar nos apagões, colapso nas telecomunicações e até perdas de satélites (talvez seja uma boa ideia manter um mapa e uma vela na sua gaveta).

Piadas à parte, nossa civilização vive sobre o "fio da navalha", considerando que é apenas uma questão de tempo para sermos atingidos por uma tempestade solar de proporções catastróficas. Por exemplo, a NASA publicou um estudo em 2014 informando que em 2012 não fomos atingidos por uma tempestade geomagnética como o Evento Carrington por um intervalo de apenas nove dias.

Voltando: Nos dias de hoje, nós não produzimos mais para nós mesmos, nem trocamos o excedente pelo escasso. Antes, ofertamos nossas horas de vida como meio produtivo para outras pessoas, empresas e investidores. Como pagamento, nós recebemos moeda, ou alguma quantia sabe-se lá em que tipo de registro. Então, na prática, quando usamos nosso "dinheiro" para comprar algo, estamos trocando nosso tempo pelo produto que precisamos, ou desejamos. Ah sim, caso alguém seja muito "pão duro", ele estará trocando as horas de vida para algum dia ter tempo livre.

O ponto é que, como não somos mais capazes de produzir nosso próprio sustento e sobreviver à base de trocas com outras famílias, é necessário que o comércio sobreviva por si mesmo. Uma vez que o produto final propriamente dito se concentrou nas mãos de poucos, comparativamente ao número de habitantes total no planeta, boa parte do que fazemos serve apenas para sustentar o próprio mercado. Se não fosse assim, não teríamos mais moedas e, principalmente, não haveria mais quem produzisse o que precisamos. Pense como é irônico uma pessoa trabalhar quarenta anos de sua vida em uma fábrica de pneus sem nunca ter tido um automóvel. Como eu disse, o comércio ganhou vida própria.

Quando o comércio ganha vida própria, ele passa a defender a sua perpetuação, assim como qualquer ser vivente. E sim, nós precisamos que seja assim, pois, se diferente, o castelo de cartas desmoronará. Extrapolando, se todas as cartas caírem, a população provavelmente se reduzirá a números equivalentes à de milênios atrás, quando havia somente alguns poucos milhões de seres humanos sobre a face da Terra, todos sobrevivendo à base do que produziam e do que trocavam.

E qual foi o primeiro desafio que o comércio precisou transpor? Bem, as necessidades básicas humanas sempre foram as mesmas (higiene e alimentação), mas o valor agregado da solução para essas carências primárias tornou-se muito baixo. Portanto, o montante gerado apenas com elas não era suficiente para sustentar a população mundial que crescia justamente porque essas soluções melhoraram em qualidade. A resposta do mercado foi criar novas necessidades, e com valor agregado maior, pois só assim teríamos condições de sustentar todos os humanos (se é que estamos sustentando a todos) e, ao mesmo tempo, oferecer a possibilidade, em certa medida, para qualquer um acumular riquezas.

Desviando: É ruim acumular riqueza? Acredito que sim. Mas até que ponto? Falo por mim... Se eu não tivesse certo montante acumulado, seja como for, provavelmente eu não gastaria meu "rico dinheirinho" em um automóvel. Então, aquela pessoa que trabalha na fábrica de pneus sem nunca ter tido um carro talvez não tivesse um emprego. Atente para o fato de que estou usando apenas um aspecto do automóvel nesse exemplo, os pneus.

Voltando: Acho que eu não vou conseguir explicar em que consistiu a criação de novas necessidades pelo mercado. Portanto, vou dar um exemplo simples para ilustrar. Os portugueses obtinham coisas valiosas dos nativos dando a eles itens desnecessários. Por exemplo, é muito provável que um nativo tenha dado a um português uma pedra de ouro em troca de um espelho ou de uma escova de cabelo. Pois é isso, foi exatamente assim que passamos a fazer comércio baseado na criação de novas necessidades. Só que nós somos os nativos.

Finalmente, qual foi, ou está sendo, o segundo desafio a ser superado? Nós estamos chegando no limite do valor agregado dos produtos. Estamos atingindo custos tão absurdos que as pessoas já não estão mais dispostas a pagar por algumas frivolidades. Assim, qual tem sido a nova ilusão criada? A palavra da vez é "experiências". Atualmente, o par de tênis não está mais na prateleira de uma loja, mas está em um vídeo, nos pés da pessoa que você admira, enquanto ela faz o que você gostaria de fazer, vivendo a vida que você sonha ter. A propaganda de aparelhos celulares das Casas Bahia não é mais suficiente, o que vende agora é o vídeo do Alok usando o novo modelo que acabou de receber de graça do fabricante. Hoje não nos vendem algo inútil tentando nos convencer de que precisamos dele. Não, hoje a promessa é que comprando os produtos deixaremos de ser os nativos e passaremos a ser os portugueses. Se eu não compro, eu não sou ninguém.

Você já olhou para si? Já prestou atenção pelo que você paga? Experimente fazer uma lista das suas compras mensais? Veja-a como um espelho. O que ela reflete? Alguém já disse que nós somos o que comemos. Outros disseram que podem nos definir comparando-nos com quem nos relacionamos. Se ninguém nunca disse antes, eu vou dizer, nós também somos aquilo pelo que pagamos, em todos os sentidos.

Eu poderia pensar, "ah, então está resolvido, vamos derrubar esse castelo de cartas; vamos colocar o sistema abaixo e acabar com essa cadeia de ilusões que nos aprisiona." Seria nobre de minha parte pensar assim. Porém, eu estaria disposto a abrir mão de minha existência por essa nova realidade? Algumas pessoas vão sofrer o impacto. Tudo bem enquanto não seja eu? É ético lutar por um valor moral elevado, mas que vai resultar em um mal a outras pessoas? Não seria mais nobre se eu oferecesse o meu refúgio enquanto o mundo desmorona, já que a ideia do peteleco nas cartas foi minha? Que preço eu me disponho a pagar e pelo quê? O que eu seria capaz de fazer em troca da verdade?

Quer saber o que penso? Eu não tenho a mínima ideia do que fazer para resolver esse dilema. Torço para que apareça alguém, algum dia, para fechar essa conta.

quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Porque sim não é resposta (2)

"Todas as graças da mente e do coração se escapam quando o propósito não é firme."

William Shakespeare

Segundo Edward B. Taylor, cultura é "todo aquele complexo que inclui o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, a lei, os costumes e todos os outros hábitos e capacidades adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade." Portanto, cultura pode ser entendida como o reflexo da sociedade na qual ela é produzida, sendo manifestado na música, pintura, teatro, produções artesanais, livros, festejos tradicionais, esportes, religião, códigos morais etc; incluindo conceitos mais modernos, entre eles, o cinema e os jogos de videogame, por exemplo.

Desviando: Aliás, semanas atrás eu vi a seguinte manchete em um site de notícias...

Eu tenho a sensação de que levar a cultura negra para escolas "da periferia" seria como tentar "ensinar o padre a rezar a missa". Se a periferia precisa aprender sobre a cultura negra, fiquei tentando imaginar quem seriam os professores. Ou eles são negros nativos da África (o que resolveria a minha questão), ou eu não sei mais como a pirâmide de classes no Brasil está dividida. Calma, vou explicar...

Alguém poderia dizer que eu estou sugerindo que todos os negros vivem na periferia e que, portanto, estou sendo preconceituoso ao criar um estereótipo. Porém, eu responderia que não, que é somente o caso de uma dúvida simples minha. Pois, nós não estamos em plena luta por igualdade, constatando e afirmando (acertadamente) que os negros não ocupam, em sua maioria, o "alto escalão" da sociedade? Então, se eles não estão lá "em cima" e não estão cá "embaixo", onde estão?

É, talvez seja somente mais um nome mal pensado para um projeto, ou para uma manchete, e eu esteja sendo rígido demais. Provavelmente é isso.

Voltando: Se a cultura é um reflexo de quem eu sou enquanto sociedade, quando leio um livro, por exemplo, eu o faço no sentido de ser moldado, ou para reconhecer quem eu sou? A sociedade me produz, ou eu a produzo? Quem vem primeiro, o objeto ou o seu reflexo? Ultimamente, eu tenho sido do tipo que, entre outros motivos, passou a consumir cultura para entender a si mesmo.

Sendo assim, ao comentar um livro do Mário Sergio Cortella, posso entender que eu não estou revisando o autor, de fato, mas a mim. Por exemplo, em um caso mais extremo, se eu criticasse algo nos escritos dele, tratando-os como a causa ao invés da consequência, seria o mesmo que eu ficar com raiva do espelho por ver rugas novas na minha face. Portanto, darei minha interpretação para um trecho de uma obra do Cortella, e farei isso sem culpa, ou melhor, assumindo a minha parcela de responsabilidade.

No capítulo "A importância do propósito", do livro "Porque fazemos o que fazemos?", Mario Sergio Cortella discorre sobre as razões de se ter um propósito de vida sob dois aspectos:

"Algumas religiões, entre elas a judaico-cristã, nos falam sobre o Juízo Final, o momento em que uma divindade virá fazer as grandes perguntas para julgar a nossa vida, se ela foi uma vida que valeu ou não valeu a pena. (...) E ainda que não se considere nenhuma crença de natureza religiosa, mesmo que nos atenhamos à concepção científica de que temos apenas uma existência, esta não pode ser desperdiçada."

Desviando: Cortella diz que o Juízo Final na religião judaico-cristã será o julgamento das nossas ações, como nós levamos a nossa vida. É intrigante como tenho inclinação a aceitar as respostas mais fáceis, os clichês. Eventualmente surgem poucos gênios que quebram alguns paradigmas e nos inspiram a olhar velhos conceitos sob novo ângulo. Clive Staples Lewis é um desses gênios. Ele imaginou o dia do Juízo de um modo diferente, no ensaio "A última noite do mundo":

"Nossos ancestrais tinham o hábito de usar a palavra 'julgamento', ou 'juízo', nesse contexto, como se significasse simplesmente 'punição, castigo'; daí a expressão popular. (...) Acredito que às vezes podemos tornar a coisa mais viva para nós mesmos por tomar juízo em um sentido mais estrito: não como a sentença ou prêmio, mas como o Veredito. Algum dia, um veredito absolutamente correto – se você quiser, uma crítica perfeita – será dado ao que cada um de nós é. (...) Todos nós encontramos julgamentos ou vereditos a respeito de nós mesmos nesta vida. De vez em quando, descobrimos o que nossos semelhantes realmente pensam de nós. (...) Suponho que a experiência do Juízo Final será como essas pequenas experiências, mas elevada à enésima potência. Pois será um julgamento inevitável. Se for favorável, não teremos medo; se desfavorável, sem esperança de que esteja errado. Nós não apenas acreditaremos, nós saberemos, saberemos além de qualquer dúvida em cada fibra de nosso apavorado ou deleitado ser, que, como o Juiz disse, assim nós somos: nem mais, nem menos, nem outro. Talvez nos apercebamos que, de alguma forma obscura, poderíamos ter sabido isso o tempo todo. Nós saberemos e toda a criação também saberá: nossos ancestrais, nossos pais, nosso cônjuge, nossos filhos. A verdade irrefutável e evidente sobre cada um deles [de nós] será conhecida de todos."

Voltando: Quando Cortella fala sobre a importância de ter um propósito do ponto de vista de alguém que crê em Deus, ele parece não ter dúvidas sobre os motivos. Ou seja, essa suposta pessoa que crê faria o que faz porque um dia será "cobrada" pelo que fez. Poderíamos comparar essa ideia com minha época de criança. Eu não estudava porque tinha consciência do que eu era e do que me tornaria, mesmo que naquela época eu dissesse que queria ser bombeiro, veterinário, engenheiro etc (aliás, provocativo isso, nossa espontaneidade em associar a razão do estudo a uma profissão). Eu me esforçava em tirar boas notas para não levar uma bronca dos meus pais. O meu propósito era o tal do juízo, do ponto de vista do Cortella (punição e castigo). Já do ponto de vista de C. S. Lewis, talvez eu fosse um negociante, ou alguém paciente, ou quem sabe apenas determinado, um garoto consciente que seu propósito (horas livres) poderia ser conquistado seguindo uma regra simples (boas notas). Lembre-se, assumir pontos de vistas simples ou complexos depende apenas de nossa fadiga mental.

De outro modo, quando Cortella tenta dar um motivo para se ter um propósito de vida quando não se crê em Deus, parece-me que ele não consegue achar essa razão. Ele apenas diz que a vida não pode ser desperdiçada. Porém, para mim, se não há uma cobrança extra ego, se tudo o que há "lá fora" é o nada, por que eu deveria me preocupar com o desperdício de uma vida onde "as contas não fecham"? Ou o contrário, por que eu deveria evitar fazer tudo o que eu eventualmente tenha vontade de fazer, independente das consequências, já que o fim será em nada para mim e para todos? Se não há nada com que se possa negociar com uma criança, por que ela deveria concluir que deve estudar? E aqui se destaca um importante ponto, concluo que eu ainda sou uma criança e não sei que condição me faz deixar de sê-la.

Lembrei-me de um monólogo do filme “A ghost story” de 2017...

"O escritor escreve o livro. O compositor escreve a música. O sinfonista escreve a sinfonia, o que pode ser o melhor exemplo, porque as melhores foram escritas para Deus. Então, me diz o que acontece quando Beethoven está escrevendo a Nona Sinfonia e de repente acorda um dia... de repente, todas as notas, acordes e harmonias que tinham a intenção de transcender a carne, ele percebe que são 'parte da física'. Então, Beethoven diz, 'Caramba, Deus não existe, então acho que escrevo para outras pessoas'. (...) Ah, ele teve um sobrinho. Então, ele escreve para o sobrinho. Ou para quem quer que tenha sido. Mas tiremos o amor da equação e desenrolemos isso sob o pensamento 'é assim que se lembrarão de mim'. E eles lembraram. E nós lembramos. E, com certeza, fazemos o possível para perdurar. Construímos nosso legado e talvez o mundo todo se lembre, ou talvez apenas algumas pessoas, mas fazemos o possível para continuarmos depois de partirmos. Então, ainda lemos esse livro, ainda cantamos essa música, as crianças se lembram dos pais e dos avós e todos têm sua árvore genealógica, e Beethoven tem sua sinfonia, e nós também. E todos continuarão ouvindo no futuro próximo. Mas é aí que as coisas começam a desmoronar. Porque seus filhos vão morrer, todos morrerão. E então haverá uma grande mudança tectônica. (...) Os oceanos subirão, as montanhas cairão e noventa por cento da humanidade desaparecerá. (...) É apenas ciência. Os que sobrarem irão para as partes altas. A ordem social acabará e regrediremos a caçadores, necrófagos e coletores. Mas talvez sobre alguém que um dia cantarole uma melodia que costumava ouvir. E isso dará a todos um pouco de esperança. A humanidade chega à beira do fim, mas consegue seguir, porque alguém ouve outro alguém cantarolar uma melodia numa caverna, e a física disso no ouvido deles os fazem sentir algo além de medo, ou fome, ou ódio, e a humanidade prossegue e a civilização retorna. E agora você está pensando que vale a pena terminar de escrever o livro. Mas não vai durar. Porque, aos poucos, o planeta vai morrer. Em alguns bilhões de anos, o Sol se tornará gigante e eventualmente engolirá a Terra. Isso é fato. Talvez até lá, tenhamos nos estabelecido em outro planeta. Bom para nós. Talvez descubramos um jeito de carregar conosco tudo o que importa. Conseguem uma cópia da Mona Lisa. Alguém vê e mistura poeira alienígena com cuspe, pinta algo novo e as coisas prosseguem. Mas nem isso importará. Mesmo que alguma forma de humanidade carregue uma gravação da Nona Sinfonia de Beethoven até o futuro, o futuro baterá numa parede. O universo continuará expandindo e eventualmente levará toda a matéria com ele. Tudo pelo que lutou, tudo o que você e algum estranho do outro lado do planeta compartilharam com um estranho do futuro, num planeta diferente, sem nem saber, tudo o que te fez sentir grande ou poderoso, tudo acabará. Todo átomo nesta dimensão será destruído por uma força simples. E todas essas partículas retalhadas se contrairão novamente e o universo vai se juntar numa mancha pequena demais para notarmos. Então, pode escrever um livro, mas as páginas queimarão. Pode cantar uma música e passar adiante. Pode escrever uma peça esperando que alguém lembre e continue apresentando. Pode construir sua casa dos sonhos, mas no final nada importará mais do que enfiar a mão na terra para colocar uma cerca.

Minha opinião? Eu não consigo encontrar uma resposta porque deveríamos buscar um propósito de vida quando considero que tudo terminará em nada. E o escrito de Cortella pareceu um reflexo dessa minha limitação. Não estou dizendo que não exista esse motivo, nessa circunstância. Eu estou dizendo que, pelo menos por enquanto, a melhor justificativa que encontrei foi somente um "porque sim". Porém, eu sempre engoli melhor as ordens dos meus pais quando elas terminavam com um "porque eu quero", ou um "porque eu estou mandando". E isso é somente comigo, ou o fato de estar em uma obra cultural sugere que seja com toda a sociedade?

domingo, 20 de setembro de 2020

Mãos ao Alto

"É a possibilidade que me faz continuar, não a certeza; uma espécie de aposta da minha parte. E embora você possa me chamar de sonhador, de tolo ou de qualquer outra coisa, acredito que tudo é possível."

Noah Calhoun – The Notebook (2004)

Os jogos de apostas são muito antigos. Por exemplo, os primeiros "dados" que se tem registro são da civilização sumeriana, por volta de quatro mil anos a.C., e tinham o formato de pirâmides. Os egípcios também tinham sua maneira de jogar, eles usavam hastes numeradas, cujos exemplares foram encontrados na tumba de Tutancâmon. Já os assírios produziam dados de seis faces a partir do osso do calcanhar de animais. Os jogos com cartas apareceram somente no século IX, na China, e no século XIV, na Europa.

Esses tipos de jogos resumem-se na vitória, ou melhor, na sorte de um sobre o azar de outro. E eles costumam ser considerados muito sérios, pelo menos quando realizados entre adultos. Historicamente, e mesmo atualmente, uma aposta pode valer tanto quanto um contrato assinado, se não mais. Por exemplo, Tácito escreveu sobre os Germanos em 99 d.C.:

"Eles praticam o jogo de dados, em que um irá, naturalmente, se maravilhar, sobriamente, e bastante, como se fosse um negócio sério, com ousadia em ganhar e perder em que, quando eles não têm nada mais a jogar, eles apostam a sua liberdade e sua pessoa na última queda do dado. O perdedor resigna-se voluntariamente à servidão, e mesmo se ele é mais jovem e mais forte do que seu adversário, ele se permite ser amarrado e vendido. Assim, grande é a sua firmeza em um caso tão ruim: eles mesmos chamam isso de 'manter a sua palavra'."

As apostas são tão intensas quantos são os riscos envolvidos. Vejamos alguns exemplos...

Pensemos na aposta da megasena. Como já falei aqui, ganhar é quase impossível (uma chance em 50.063.860). Por outro lado, nossa perda (três ou quatro reais por aposta) comparada ao prêmio, ou ao nosso saldo do banco, é analogamente ínfima. Então, vale a pena arriscar às vezes.

Poderíamos também apostar uma moeda nas faces dos dados. Nesse caso, a chance de vitória é de uma em seis. Você escolheria uma das faces e eu outra, então veríamos quem seria sorteado primeiro, ficando com a rica moedinha do outro. Uma moeda pode ter tão pouco valor que pagaria os segundos de diversão.

Agora, usaremos a mesma moeda da aposta anterior para fazer as vezes do dado. Eu escolho cara e você coroa. Isso dará a cada um de nós uma chance de vitória em duas possíveis (opa, já melhorou, cinquenta por cento). Porém, desta vez, apostaremos nossos carros (uhm, não sei se quero continuar).

Neste último exemplo, eu estou andando na rua e sou parado por um assaltante. Por algum motivo (talvez seja um apostador), após me pedir o dinheiro, ele gira o tambor do revólver e o fecha aleatoriamente. Então diz que tem apenas uma bala. Eu sei que aquela pistola tem espaço para oito projéteis, ou seja, minhas chances são de sete em oito. A arma está apontada em minha direção. Desta vez vale a pena arriscar reagir?

Desviando: Como o próprio Batman disse sobre o Superman, em Batman VS Superman: "Havendo um por cento de chance de ele ser nosso inimigo, devemos considerar isso como certeza absoluta". Concordo com o Bruce Wayne, o Clark Kent pode causar um bocado de estragos, é bom se precaver.

Voltando: Enfim, à medida que os riscos aumentam, nossa confiança de que os números estejam a nosso favor diminui. A pergunta que sempre utilizamos para interpretar as estatísticas é "o que está em jogo?". E essa questão vai ser o pano de fundo para todo o resto deste texto.

Gostaria de falar então da maior perda que nos acomete, a morte. Sendo a nossa, ou a de alguém querido, talvez ela seja o que há de pior. Por causa dela buscamos o conforto, que é uma tentativa de desacelerar o processo de degeneração de nossos corpos e, por consequência, prolongar a vida. Com medo da morte podemos dedicar nossos esforços, dia a dia, naquilo que não nos agrada, mas nos sustenta. Esse medo é tão forte que, nos tempos de pandemia atuais, trocamos nossa liberdade pela segurança, e não damos espaço à "ousadia" dos poucos (ou muitos) "ignorantes" que preferem a liberdade (até algumas décadas atrás, era mais honrado lutar pela liberdade, mesmo que, ou principalmente se, tivéssemos que dar nossas vidas por isso). Aliás, acabei de lembrar de um trecho de música. É provável que nos emocionemos com a letra, com a melodia e com a voz, mas é fato que não acreditamos mesmo nisso, certo? Não deveríamos apostar nisso, concorda?

"Morrendo jovem, eu estou jogando pra valer

Foi assim que meu pai fez da vida dele uma obra de arte"

Ride - Lane Del Rey

Poderia ser a morte uma prova de que nossa realidade deu errado? Esta é uma pergunta que me permite "teologar" um pouco, ainda que meu objetivo seja continuar olhando para mim, saber quem eu sou de verdade, como sempre.

Suponha que Deus exista e tenha criado a nossa realidade. Uma vez que ela seja falha, com a presença da morte, poderíamos concluir que Deus é falível. Pois, mesmo todo poderoso, Ele só foi capaz de criar um universo defeituoso. Uma criação imperfeita apontaria para um criador igualmente imperfeito. No entanto, essa é uma conclusão de Deus a partir da nossa realidade. E a história nos mostra que, eventualmente, nos enganamos ao tirar conclusões a partir do nosso ponto de vista. Tempos atrás, por exemplo, achávamos que a Terra era o centro do Universo e que o Sol girava ao nosso redor (tem gente que ainda acredita nisso, fazer o quê?).

Então, vou tentar concluir a realidade a partir do lado de fora, se é que isso seja possível (sim, assumo certa petulância de minha parte). Partiremos do pressuposto de que Deus é infalível. Um ser perfeito, que tem ao seu alcance as infinitas alternativas, só poderia escolher seguir com aquela que seja a melhor de todas. Não haveria, portanto, alternativa mais perfeita que a realidade vigente.

E é agora que eu me pergunto, qual das duas formas de encarar a realidade é a correta? Claro que não me questiono para encontrar a resposta, pois, por motivos intelectualmente óbvios (faltam-me muitos neurônios), não a encontrarei. O que estou fazendo é tentar expandir minha visão para a possibilidade de uma verdade além do meu umbigo. Arriscar uma afirmação no sentido da resposta, garantiria mais o meu engano do que o meu acerto, tiraria da realidade, ou de Deus, o direito dela, ou dEle, à dúvida.

Desviando: Concordo, também é muito difícil crer no Deus externo a mim quando a existência dEle implica que o deus em mim sofra. Só pode ser obra do cruel acaso. Mais uma vez, como centro do Universo, é insuportável aceitar que a melhor realidade que poderia existir seja esta onde eu tenha que derramar lágrimas.

Voltando: Enfim, frente aos riscos envolvidos com cada uma das duas possibilidades para a realidade, não consigo apostar em uma certeza. Eu sofro do mesmo mal de Blaze Pascal, como também já havia citado aqui. Por mais paradoxal que possa parecer, o ceticismo me faz ter fé. Preciso ser honesto comigo mesmo, não consigo crer que minhas incertezas sejam sinceras, se eu não me render a elas.

A minha dúvida está com uma arma apontada para a minha incredulidade. Ela tem apenas uma bala em oito possíveis. E minha melhor aposta é me manter com as mãos apontadas para cima.




sábado, 22 de agosto de 2020

Pausa para o Café

"Renda-se, como eu me rendi. Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei. Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento."

Clarice Lispector 

O café não é original da flora brasileira. Estima-se que o primeiro pé tenha sido plantado no estado do Pará em 1729. Porém, o ciclo cafeeiro se iniciou no Brasil apenas por volta de 1760, quando o desembargador João Castelo Branco trouxe algumas mudas do Maranhão para o Rio de Janeiro. Por curiosidade, somente alguns poucos pés vingaram, justamente os que foram plantados em seu quintal. Já no século XIX, a cafeicultura se espalhou pelo Vale do Paraíba, quando, então, a Província do Rio de Janeiro tornou-se a maior produtora do mundo. Em 1850, o Rio de Janeiro sozinho já era responsável por 80% da produção brasileira e 40% da produção mundial.

Enfim, nosso país tem sido o maior produtor de café do mundo pelos últimos 150 anos, aproximadamente. No entanto, sabe quem inventou a cafeteira? Foram os franceses, no final do século XVIII. Mais tarde, após a Segunda Guerra Mundial, um italiano inventou a máquina de café expresso, ou pelo menos a tirou do papel. Atualmente, uma empresa de origem suíça é a detentora de uma das maiores marcas de cafeteiras elétricas do mundo, senão a maior. O Brasil? Sempre foi o maior produtor de café. Isso é ruim? Não, claro que não. Mas em 150 anos não daria para ter adicionado algum item a mais ao repertório?

Usando o meu cartão de crédito, eu acumulei alguns pontos e acabei ganhando de presente uma máquina de café em capsulas. Perceba, eu não ganhei uma saca de café, mas ganhei uma cafeteira. Isso me fez refletir sobre as coisas das quais digo que me orgulho. Eu digo muitas coisas, mas meus comportamentos dizem outras. Eu engano a mim mesmo sem sequer me dar conta.

Mas por que eu lembrei de ter sido presenteado com uma maquina de café? Bem, foi porque eu pensei em uma conexão entre uma cafeteira e a vida. Mas vamos por partes. Ou melhor, vamos falar um pouco sobre vida agora.

Todas as discussões filosóficas, teológicas e até mesmo científicas sobre o que é a vida, que eu testemunhei, inevitavelmente terminaram com a definição de que ela é um presente dado a cada um de nós, assim como a minha máquina de café.

"Meu melhor amigo me deu o melhor conselho

Ele disse: cada dia é um presente, e não um direito adquirido"

If today was your last Day - Nickleback

Porém, apenas recentemente alguém me fez questionar essa conclusão. E foi neste vídeo aqui, caso você tenha interesse em ver também. Adianto que foi bem no final, exatamente nos últimos dez segundos, uma afirmação despretensiosa. No entanto, para quem for assistir, sugiro ver o vídeo inteiro, para ir entrando no clima, como aconteceu comigo. De fato, não há nada demais lá, talvez você passe por ele como quem pega as chaves do carro em direção a porta de saída. Para mim, aquela declaração final abalou o que eu achava que acreditava e me tirou do modo automático. Ou me fez parar de me enganar sem saber. Eu nunca tinha ouvido uma contra argumentação tão prática e tão simples sobre a ideia de que a vida é um presente.

Antes de transcrever a frase e dizer a minha própria conclusão, inclusive esclarecendo a relação que achei entre uma cafeteira e a vida, vou contar outra história. Esta foi vista na Netflix, na série "Sou um assassino". É o caso de um homem que, após o nascimento, foi abandonado pela própria mãe. Um amigo da mulher criou o garoto em um bairro extremamente pobre. Apenas aos cinco anos de idade, após já ter sofrido diversos abusos físicos (inclusive com uma deformação no nariz, por ter sido quebrado), a existência daquela criança foi descoberta pelo Conselho Tutelar (se podemos chamar assim). Tiraram o garoto do homem que o criava, mas em uma visita, o mesmo homem o raptou de volta. O menino foi mantido trancado em um porta-malas durante duas semanas, até ser encontrado novamente. O homem foi preso e a criança enviada a uma instituição para adoção. Na instituição, mais abusos até ser adotado. A matriarca da nova família, após seis meses do acolhimento, recebeu uma proposta de emprego fora do país. Como o processo de adoção envolve acompanhamento, o que impossibilita que a criança se mude para outra nação, o garoto precisou ser devolvido para a instituição. Meses depois, já entre seis e sete anos de vida, o menino foi adotado novamente, desta vez por um homem solteiro. Foi abusado pelo novo pai até os dezoito anos de idade. Viu outros irmãos adotivos serem abusados também. Na adolescência, conseguiu uma prova da violência do padrasto. Levou tudo até a polícia, mas foi orientado a esquecer o assunto. Depois da maioridade, saiu de casa. Viveu com amigos um tempo aqui, outro tempo lá. Um dia decidiu contar tudo aos seus avós adotivos. Eles não acreditaram, disseram que estava louco. Em um ataque de fúria, sua consciência apagou. Quando caiu em si novamente, lhe disseram o que ele havia feito, pois não se lembrava de nada. Esfaqueou brutalmente seus avós, usando até cinco facas diferentes, pois, à medida que as lâminas cravavam nos ossos dos idosos, tamanha violência, o cabo se quebrava e ele buscava outra faca na cozinha. O homem foi sentenciado ao corredor da morte e nenhum advogado quis usar o passado dele como defesa. Uma ou duas décadas depois, um grupo de advogados responsável por revisão de sentenças de morte abraçou a causa. A sentença foi reduzida. Hoje ele cumpre prisão perpétua. Pois é, que baita presente foi a vida que ele ganhou.

Desviando: Meu objetivo com esse relato não foi tentar promover uma discussão sobre os limites entre culpa e inocência. Meu desejo foi apresentar a vida de um homem, assim como ela me foi narrada. Eu poderia parar a história dele antes do crime e imaginar qualquer outro fim diferente, mas eu continuaria dizendo: que baita presente que ele ganhou. Além disso, concordo com o fato de que muitas pessoas sofrem abusos na vida, mas não se tornam uma assassina. Mesmo assim, qual a estatística? Quantas pessoas em mil, ou em um milhão, acabariam como ele? Quantas não? Aliás, já falei sobre a estatística regendo as nossas vidas nesse texto aqui.

Voltando: Enfim, sobre o vídeo que mencionei lá no início, o diálogo foi este:

"Pedro Loss: Porque a vida é um presente.

Monark: Sobre essa lógica de que a vida é um presente... Aí eu penso em uma menina que nasce em uma tribo na África, cheia de traficantes, é estuprada desde os seis anos e morre aos quatorze de anemia. C@ra&ho, que presente."

Sem mais delongas, minha conclusão é simples. Eu não tenho a menor ideia do que seja a vida e já não me inquieta não saber. Ela permanece completamente indiferente às nossas expectativas, e não há propósito mesmo nesse descaso. Tentar encontrar um desígnio para a passividade da vida às nossas expectativas seria o mesmo que perguntar para uma máquina de café expresso o porque ela faz café. Provavelmente ela responderia: "Café? Eu não faço café. Ao acionar o botão, eu apenas executo uma centena de circuitos. Querer ver o café no final de todo o processo não fala sobre mim, mas fala sobre você."