terça-feira, 29 de novembro de 2022

Hora da Refeição

"Todos os homens são fraudes. A única diferença é que alguns admitem isso. Eu mesmo nego." 

H. L. Mencken

Começo esse texto com duas definições do dicionário português.

Livre-arbítrio: substantivo masculino – possibilidade de decidir, escolher em função da própria vontade, isenta de qualquer condicionamento, motivo ou causa determinante.

Racionalidade: substantivo feminino – propensão para encarar fatos e ideias de um ponto de vista puramente racional. "A estrita racionalidade de alguns não lhes permite tirar proveito das virtualidades do aleatório."

Certa vez, Cortella disse que um pássaro não voa por ser livre, mas voa porque é a única coisa que "sabe" – ou pode – fazer. Analogamente, meu cachorro de estimação não toma a decisão de se alimentar racionalmente, mas apenas responde à uma sensação de fome e prazer no paladar. Pois bem, se aplicássemos essas duas observações aos seres humanos, poderíamos continuar dizendo que estamos no controle de nós mesmos?

Fato, somos cientes de nossa capacidade de raciocínio lógico e, consequentemente, de todos os nossos avanços intelectuais, nas mais diversas áreas. Porém, isso não seria somente o que "sabemos" – ou podemos – fazer? Alguém debruçado sobre teorias para a cura de uma doença, sobre pesquisas para um novo tipo de combustível, ou descobrindo uma nova tecnologia etc. está mesmo se empenhando racionalmente ou, como meu cão, é apenas impelido por algum tipo de ânsia primitiva? Você sabe o que lhe motiva fazer o que faz, diariamente, com tanto prazer ou, pior, sem prazer nenhum? Tem certeza da sua resposta, ou é apenas mais fácil acreditar nela? Se avançarmos além de uma análise superficial – frequentemente involuntária –, seria tão paradoxal assim comparar uma decisão racional a um impulso, a um instinto? A racionalidade poderia ser apenas um nome para a constatação de uma atitude, resultado de uma motivação mecânica, essa sim desapercebida?

Desviando: Reitero abaixo uma citação, um diálogo do filme Robocop de 2014, que já havia mencionado aqui.

"Liz Kline: Ele não está tomando decisões?

Dr. Norton: Sim e não. Na vida cotidiana, homens como o Alex tomam decisões. Mas quando ele está em batalha, o visor desce e o software entra no controle, a máquina faz tudo. O Alex é só um passageiro que está de carona.

Liz Kline: Se a máquina está no controle, então quem puxa o gatilho?

Dr. Norton: Quando a máquina luta, o sistema manda um sinal para o cérebro, assim ele pensa que está fazendo o que o computador faz. Alex acredita que ele está no controle. Mas não está, é só uma ilusão de livre arbítrio.

Liz Kline: Droga. Você criou uma máquina que acha que é um humano? Mas isso é ilegal.

Sellars: Não, não. É uma máquina que acha que é Alex Murphy. E a meu ver, isso é legal."

Voltando: O que estou tentando colocar em questão? Nossa decisão pela hora do almoço, nosso prato preferido, nosso caminho até ao trabalho, nossa própria profissão, nossos amigos, nosso candidato favorito, nosso filme predileto, todas as escolhas que "fazemos" poderiam ser somente espontaneidades mecânicas autoconscientes? O fato de estarmos cientes de nossas "decisões" faz delas, realmente, atitudes racionais? Nós somos livres, ou cativos de nós mesmos?

Se o cachorro do meu exemplo, em parágrafos anteriores, adquirisse consciência da fome, as atitudes de sempre dele passariam agora a ser motivações racionais? Já me perguntei aqui, por exemplo, o leão se tornaria vegetariano se percebesse que existe? Seria possível que nós confundimos racionalidade com lógica e que, talvez, a primeira nem exista? Aliás, será que a razão não seria somente um instinto que descobriu que existe e, pior, que passou a acreditar que é alguém?

Sou eu mesmo quem escolhe? Sou eu quem domina a minha mente, ou é ela quem me domina? Pense em si mesmo... Você já desejou fazer algo, mas por qualquer bloqueio que não consegue explicar – que por vezes é mais forte –, não conseguiu? Já tentou deixar de fazer algo, mas sem sucesso também? Não pretendo me apegar a questões moralmente grandiosas, mas refiro-me a coisas cotidianas. Um comportamento previsível, uma expressão pela qual todos lhe identificam, algo que lhe desagrade, ou até agrade, e que, apesar de sua consciência sobre a questão, exige-lhe muito esforço para evitar ou repetir. Novamente, em uma situação de muita raiva, você é o desejo de "explodir", mas sua mente lhe controla? Ou você é o controle exercido sobre suas emoções?

Você está mesmo no controle, ou somente pensa que está? Você é aquilo que sabe sobre si mesmo, ou aquilo que não sabe? Você dá as ordens, ou apenas as percebe? Quem decide a hora da refeição?


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