domingo, 30 de outubro de 2022

O que o Absurdo e a Verdade têm em Comum?

 "A censura que se pratica sobre as obras alheias não determina necessariamente a produção de obras melhores."

Bernard Fontenelle

Primeiro, discutiu-se a possibilidade de impedir dizer que a Terra é plana. Porém, eu não me importei com isso, já que, com observações cotidianas e um pouco de estudo, eu havia, há muito, constatado que ela é esférica. Além disso, nunca achei que o absurdo do "terraplanismo" tivesse algum valor em si. E de fato ele não tem, o que faz o enobrecimento artificial do tema provocar certa irritação. Por isso, quase cheguei a concordar com o cerceamento. Entretanto, há valor na forma como se divulga, de maneira que, naquele momento, eu ainda não percebia que era ela, a liberdade, que corria o risco de ser fragilizada.

Depois, proibiram que os nomes de alguns medicamentos fossem pronunciados através de veículos de comunicação, independentemente do que se quisesse dizer sobre eles. Outra vez, não me importei, pois não precisei daqueles remédios. E, talvez justamente por não necessitar deles, não me incomodou ser privado de ouvir os absurdos tanto a favor quanto contra eles.

Em seguida, soube que pelo menos um apresentador foi impedido de continuar no seu próprio programa na internet – destaca-se, extrajudicialmente. Mais uma vez, não me importei, pois, sinceramente, nunca acompanhei com zelo o conteúdo daquele canal, tampouco achava que precisava dele. Sim, não precisava, mas ainda não sabia que sempre estive ligado a ele por algo que é intrínseco às ideias, aos argumentos e às palavras, nessa mesma ordem – a tal da expressão. No mais, naquela ocasião, lembro-me de estar concentrado em outros absurdos, os que eu mesmo escrevia.

Mais um tempo e impediram – agora sim, judicialmente – que emissoras de rádio e canais de comunicação discutissem alguns fatos absurdos, fosse para defesa ou para crítica, sobre certos candidatos a certa eleição. Aliás, alguns conteúdos foram bloqueados mesmo antes de se saber o que continham. Eu poderia dizer novamente que não me importei, mas ei de confessar que, desta vez, me pareceu estranho. De qualquer forma, não foi desconfortável o suficiente a ponto de gerar alguma atitude em mim, já que não integro a principal audiência daqueles canais e emissoras.

Dias atrás, um texto deste meu blog foi retirado do ar – verdade. Quando li a mensagem do informativo, recebida por correio eletrônico, discorrendo o motivo, meu coração acelerou, não pela insignificância da causa, mas sim pelo bloqueio em si. A sensação de ser calado é muito estranha, pelo menos depois que somos adultos. Então, tentei fazer uma lista de nomes e contatos a quem pudesse recorrer. Percebi que alguns deles eram os mesmos citados nos parágrafos anteriores, então, por que se importariam comigo, se não me importei com eles?

Desviando: Já concluí comigo mesmo e há algum tempo que, quando você tem que explicar sobre o que falou: (1) não foi bem dito na primeira vez; (2) a não compreensão do interlocutor é de sua responsabilidade, mas não dele. Você também não tem se sentido exausto com pessoas que, na obrigação de explicarem o que disseram, o fazem responsabilizando o ouvinte? Acho que estou ficando ranzinza.

Voltando: Felizmente, enquanto eu tentava elaborar a explicação para o que quer que eu tivesse escrito, meu texto voltou ao ar – também verdade. Parece ter ocorrido algum engano, alguém clicou sobre algum botão errado – espero. Assim, tudo retornou à sua normalidade para mim, entre rotineiros sons de gritos mudos e indiferenças.

Cheguei à seguinte conclusão, a batalha travada sobre os campos da liberdade de expressão é o único conflito cujo fim não se deseja, e que todos vencem quanto maior for a troca de munição entre os oponentes. É justo que haja consequências legais – éticas, acima de tudo – para os crimes de guerra, mas não se pode vetar o direito ao combate, por qualquer que seja o meio.

Alguém poderia perguntar, "mas como saber o que é honesto ou desonesto em um embate entre ideias?" Eu só saberia responder, "não podemos punir a liberdade por nossa incompetência em definir o limite entre o bom e o mau". É um ato humilde – de reconhecimento de nossas limitações – colocarmos a liberdade acima de tudo.

Desviando: A inspiração para as minhas palavras foi o poema "É Preciso Agir" de Bertolt Brecht.

"Primeiro levaram os negros

Mas não me importei com isso

Eu não era negro

Em seguida levaram alguns operários

Mas não me importei com isso

Eu também não era operário

Depois prenderam os miseráveis

Mas não me importei com isso

Porque eu não sou miserável

Depois agarraram uns desempregados

Mas como tenho meu emprego

Também não me importei

Agora estão me levando

Mas já é tarde.

Como eu não me importei com ninguém

Ninguém se importa comigo."

Agradecimento: Ao RNS, que me sugeriu a leitura do poema.

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