quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

História que Não se Conta em Palestras Motivacionais

"Os sonhos nos quais estou morrendo, são os melhores que já tive."

Os pais dela tiveram muita dificuldade em dar as condições que eles acreditavam serem necessárias para ela crescer física, intelectual e psicologicamente saudável. O básico nunca faltou, como um prato de comida, a higiene, um calçado, um vestido, um lápis, um caderno e eventualmente uma boneca, simples, de aniversário – o Natal resumia-se a um panetone, ofertado por um dos moradores da vizinhança, onde o pai dela trabalhava como jardineiro. A mãe montava guarda-chuvas para uma cooperativa.

Ela crescia sem sentir que precisasse de mais. Já citei aqui a seguinte frase de Stephen King , "uma criança, cega de nascença, só sabe de sua cegueira se alguém lhe conta". Porém, ao completar seis anos de idade – ou foram sete? – ela comeu do fruto do "conhecimento do bem e do mal". Naquele aniversário, assim como nos anteriores, a mãe dela colocou a fôrma de bolo surrada sobre a mesa, sentou a irmã em um pote de feijão sobre a cadeira – para que a caçula alcançasse a mesa – e posicionou-se de pé, junto ao pai, para todos cantarem Parabéns. Mas ela, desta vez diferente, indagou a mãe, "não vai ter velinha?". Ela nunca mais esqueceu o olhar que seus pais trocaram, enquanto o pai fincava no bolo aquela vela branca usada durante as tempestades, quando faltava energia elétrica. E seria mesmo difícil de esquecer, pois percebeu que repetiam-no todo último dia do mês, quando sentavam-se a mesa para fechar o balanço. Ela demorou para entender os motivos daquele tipo de olhar, precisava amadurecer para tanto, mas nunca teve dúvidas sobre o significado.

Ela era uma boa aluna, o pai a ajudava com os estudos. Porém, sempre estudou em escola pública, o que dificultava reconhecer se o sucesso se dava em função da capacidade intelectual, ou pela qualidade de ensino pouco desafiadora. Fato que, diariamente, ao chegar da escola, logo preparava a lição de casa. Sentava-se frente a uma das paredes frias e sem acabamento do quarto e tratava de deixar tudo pronto, pois quando seu pai retornasse do trabalho, após um banho rápido, iria conferir os "rabiscos" da garota. Ela parava apenas alguns instantes, para conferir pela janela a brincadeira das crianças na rua, e para lavar os pratos do jantar da noite anterior. Ela gesticulava com a boca, imitando a fala que o pai religiosamente citava enquanto saía do quarto, após conferir as tarefas da garota, "lembre-se, para continuar dependendo apenas de si mesma, dedique-se aos estudos".

Os pais dela sempre assumiram as responsabilidades financeiras da casa. Eles se esforçaram para que a filha fosse aquela que iria quebrar a corrente de "pobreza" da família e, consequentemente, teria um vida mais abastada. A única exceção foi o período em que ela frequentou a faculdade de Direito, pois precisou trabalhar durante o dia para custear as mensalidades da graduação noturna. Após pagar as contas na faculdade e comprar algum material, deixava o dinheiro restante debaixo do travesseiro do seu pai, enquanto ele dormia. Ele nunca teve coragem de enfrentá-la olho no olho para devolver aquelas sobras, preferia "engolir o orgulho à seco".

Durante um período de estágio, em uma consultoria de advocacia, ela conheceu seu noivo. Após a formatura, ambos decidiram se casar. Foi mais difícil deixar a casa de sua infância do que ela imaginou que seria. Talvez os cabelos grisalhos do pai tenham sido um golpe emocional baixo demais. A festa de casamento não esbanjou luxuosidade, mas foi melhor do que os seus pais jamais poderiam lhe oferecer. O noivo fez questão de bancar todas as despesas e prover ao seu grande amor, se não o mais glamouroso, o máximo que suas economias lhe permitiram. A maior parte da caderneta de poupança foi direcionada ao apartamento de 60 metros quadrados, que levaria 30 anos para ser quitado. Se as paredes não foram planejadas pelo casal, pelo menos os móveis e a decoração o seriam – lembre-se da criança cega de Stephen King.

Foram muito felizes. E agora, não por coincidência, lembrei-me de Vinícius de Moraes discorrendo sobre o amor: "que não seja imortal, (...) mas que seja infinito enquanto dure."

Passados dois meses do casamento dela – aliás, a lua de mel no litoral foi fantástica, mais pela companhia e o contexto do que pelas paisagens propriamente ditas –, voltando de um restaurante para o escritório, em horário de almoço, um carro avançou o sinal e a atingiu na faixa de pedestres. Foram duas noites de muita expectativa para seus pais, sua irmã e seu marido, até que os médicos decretassem a morte cerebral.

Desviando: Não há nada melhor do que a realidade para nos libertar da ilusão de que temos o controle.

"Pensei ter ouvido você rindo
Pensei ter ouvido você cantar
Eu acho que pensei ter visto você tentar
Mas aquilo foi apenas um sonho
Tentar, chorar, por que tentar?
Aquilo foi apenas um sonho"


Voltando: Dois anos após a morte dela, o motorista encerrou os trabalhos sociais que lhe foram sentenciados – ele foi responsabilizado por não fazer a manutenção correta no automóvel. Na praça em frente ao prédio onde continuou morando, o viúvo está brincando com o casal de gêmeos que teve com a atual esposa – uma colega de faculdade que reencontrou em uma reunião de trabalho. Os cabelos do pai dela agora estão brancos. A mãe acabou de tirar do forno um bolo recém assado na mesma velha fôrma surrada, enquanto a irmã prepara as malas para se mudar para o litoral – recém formada em oceanografia.

Sessenta anos após a morte dela, a irmã, a última pessoa na Terra que ainda possuía lembranças de que ela um dia existiu, está sendo sepultada. E essa mesma Terra, em nenhum momento durante todo esse tempo, deixou de dar uma volta sequer em torno do seu eixo. E nunca deixará de fazê-lo.


"A terra de certo homem rico produziu muito bem. Ele pensou consigo mesmo: 'O que vou fazer? Não tenho onde armazenar minha colheita'. Então disse: 'Já sei o que vou fazer. Vou derrubar os meus celeiros e construir outros maiores, e ali guardarei toda a minha safra e todos os meus bens. E direi a mim mesmo: Você tem grande quantidade de bens, armazenados para muitos anos. Descanse, coma, beba e alegre-se'. Contudo, Deus lhe disse: 'Insensato! Esta mesma noite a sua vida lhe será exigida. Então, quem ficará com o que você preparou?'"

sábado, 25 de novembro de 2017

Por Água Abaixo

"Só uma coisa morta segue a correnteza. Tem que se estar vivo para contrariá-la."

A primeira referência a universos paralelos data de 1952 com Erwin Schrodinger. Em uma palestra, naquele ano, o físico teórico disse que as equações que lhe renderam o Nobel aparentam descrever várias histórias diferentes, mas que estas não são alternativas. Nas palavras dele, "tudo realmente acontece simultaneamente". Pelo menos ele concordou que o enunciado parece lunático.

A proposição de Schrodinger durante seu discurso foi uma Interpretação da Mecânica Quântica que, ao contrário da Mecânica Quântica em si, não é uma ciência estabelecida. Por exemplo, como se infere que existam multiversos?

Vamos tentar uma analogia. Imagine que a localização de um cão de estimação dentro de uma casa seja descrita pelas equações de Schrodinger. Se tentarmos descobrir com exatidão o cômodo onde o bicho se encontra – ou seja, se tentarmos reduzir a função de onda a partir de um estado emaranhado –, concluiremos que, enigmaticamente, o animalzinho deve estar na cozinha e no quarto ao mesmo tempo. Para sermos mais precisos que isso, seria necessário tomar a decisão de entrar na casa e procura-lo lá dentro. Porém, com essa interferência, o cachorro viria ao nosso encontro e, consequentemente, estaria no cômodo onde nós estivéssemos. Assim, com o enunciado de Schrodinger, conclui-se que vários universos existam e nós vivemos naquele cujas decisões quânticas adequadas nos trouxeram a este momento.

Desviando: Pense em um castelo de areia deixado na praia. O vento sopra e, grão a grão, o castelo vai se desfazendo. Em algumas horas, ou no máximo poucos dias, não há mais nenhum rastro da pequena construção. Mas, seria possível que o vento também colocasse novos grãos nos locais corretos, de modo que o castelo não se desmanchasse, ou até mesmo aumentasse em complexidade? Matematicamente é possível sim, mas qualquer um que já tenha brincado na areia sabe que isso é astronomicamente improvável. Então, fico imaginando que interpretação daríamos para os castelinhos se, ao invés de crescermos construindo-os, tivéssemos aprendido a matemática por trás deles primeiro.

Voltando: Não coincidentemente, foi pensando na questão "o que eu faria se fosse você?" que acabei recordando esses conceitos sobre universos paralelos. Inevitavelmente, a minha resposta convergiu para "eu faria exatamente a mesma coisa que você, já que eu seria você".

Há uma grande diferença entre ser aquecido na água desde o começo e ser lançado na panela com a água já borbulhando. Todos os sapos morrem igualmente, se aquecidos junto com a água. E todos eles pulam da panela também igualmente, se jogados na água fervendo. Já falei de sapos em água quente aqui e aqui, mas com outro enfoque.

Todas as outras pessoas foram, são e serão minhas vidas alternativas. Somos todos os universos paralelos uns dos outros. Todos os lances sorteados. Todas as conjunturas, todas as alternativas e todas as escolhas possíveis distribuídas sobre a mesa. Olhe para qualquer um e veja a si mesmo. É exatamente você lá, sob aquelas circunstâncias, diante daquelas alternativas e fazendo as mesmas escolhas.

Desviando: "Nenhum homem é uma ilha, isolado em si mesmo; cada ser humano é uma parte do continente, uma parte de um todo. Se um torrão de terra for levado pelas águas até o mar, a Europa ficará diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse o solar de teus amigos ou o teu próprio; a morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano. E por isso não pergunte por quem os sinos dobram; eles dobram por ti."


Voltando: Frente a isso, talvez tenhamos que rever nossos julgamentos, se é que temos direito de possui-los. Mesmo assim, não nos esqueçamos que compreender não é sinônimo para apoiar. Se nossos olhos foram abertos de alguma forma, se é que o foram de fato, não temos o direito de rotular, mas temos o dever de indicar o mesmo colírio que nos sugeriram.

"Você diz: Estou rico, adquiri riquezas e não preciso de nada. Não reconhece, porém, que é miserável, digno de compaixão, pobre, cego e que está nu. Dou-lhe este aconselho: Compre de mim ouro refinado no fogo e você se tornará rico; compre roupas brancas e vista-se para cobrir a sua vergonhosa nudez; e compre colírio para ungir os seus olhos e poder enxergar."


A vida é uma enchente e, arrastados pela correnteza, estamos todos tentando nos agarrar aos galhos que existem pelo caminho. Alguns poucos, quase se afogando, conseguiram segurar em alguma coisa, mas, agora, ao invés de ajudar os demais a também se ancorarem, ficam gritando para quem passa submergindo, "vocês deveriam ter feito aula de natação". Estique o braço, esteja você dentro da água, ou fora dela.

domingo, 29 de outubro de 2017

Brinquedo de Criança

"Aquele que vem do alto está acima de todos; aquele que é da terra pertence à terra e fala como quem é da terra."

As nossas percepções influenciam na forma como registramos o tempo. Por exemplo, aqueles efeitos cinematográficos de câmera lenta realmente acontecem quando experimentamos um momento de medo. O cérebro "desacelera o tempo" para ter condições de avaliar melhor a situação e tomar uma decisão mais efetiva contra a ameaça em curso.

Outro fator que interfere na percepção do tempo é a riqueza das memórias. A mente processa a abundância de experiências como sendo mais duradouras. Isso, inclusive, explica porque percebemos o tempo passar em ritmos diferentes em cada faixa etária. Quando mais jovens, tudo é novo, o natal nunca chega. Quando mais velhos, tudo é repetitivo, quando nos damos conta já estamos esbarrando em papai-noel novamente. A monotonia tende a "encurtar" o tempo. Fazer sempre coisas novas, ou ao menos tentar dar um enfoque diferente na rotina pode ser benéfico.

O tempo não está sujeito apenas às percepções dos seres humanos. Os insetos percebem-no mais devagar que nós, por exemplo. Eles vêm tudo em câmera lenta sempre. Por isso, não se sinta tão incompetente em suas tentativas malsucedidas de acertar uma barata com um chinelo.

Desviando: Fiquei pensando, talvez a percepção do tempo esteja relacionada a quantidade de informação que somos capazes de captar e processar. Quando olhamos uma gota d'água caindo em um copo, tudo parece instantâneo. Porém, se utilizarmos uma câmera lenta, podemos atentar para os diversos detalhes que não foram percebidos. Talvez o tempo passe mais rápido, ou mais devagar, em função da quantidade de informação que assimilamos e processamos com os sentidos e mente.

Voltando: Neste link, há dez explicações diferentes para o tempo. Além de serem todas muito curiosas, mostram o quanto esse conceito ainda pode ser subjetivo, ou o quanto ainda estamos longe da verdade. Gostei muito, por exemplo, da explicação que levanta a seguinte questão, o presente tem quanto tempo? Um minuto? Um segundo? Um centésimo de segundo? Ao ler essa frase, o início dela ficou no passado, ou enquanto você não a conclui ainda faz parte do presente? Analogamente, o fim dela já é presente mesmo sem sabermos como termina, ou estaria no futuro incerto?

Para mostrar que há mais caroço nesse angu do que estamos imaginando, e se desconsiderarmos o observador? Como o tempo se comporta independente de nós? É instintivo dizer que ele é absoluto, uma vez que estamos confinados em um único ritmo, mas Albert Einstein nos ajudou a romper com esse paradigma (não sei se paradigma é a palavra correta). Einstein provou que o tempo não é uma constante, mas é variável. E essa mudança está intimamente relacionada a gravidade – força associada a corpos que possuem massa.

Uma das consequências da teoria da relatividade é a dilatação do tempo. Quanto maior a massa de um corpo, maior a sua gravidade e, consequentemente, menor é o ritmo do tempo ao redor desse corpo. Por exemplo, se eu estiver aqui na Terra e você estiver em um buraco negro (corpo com massa e gravidade imensas), e nós dois começarmos a contar exatamente no mesmo momento e no mesmo ritmo, se nos encontrarmos depois, nós perceberemos que enquanto a minha contagem está chegando no 100, talvez a sua ainda esteja no 3.

Segundo Einstein, quanto maior a gravidade, mais devagar o tempo passa. Então, vamos exercitar nossa imaginação. Um buraco negro cuja gravidade tende ao infinito teria um ritmo de tempo ao seu arredor que se aproximaria do parado, quase sem tempo. Como assistiríamos o desenrolar do Universo, se aquele buraco negro de gravidade infinita fosse a poltrona de nossa sala? Qual é a verdade? Tudo foi criado em um instante, ou levou uma eternidade? Dando um novo enfoque para algo que já falei aqui (experiências novas, lembra?), quando não se conhece as fronteiras, o tudo pode ter o tamanho que desejarmos, muito grande ou muito pequeno. Aliás, também já falei aqui, aqui e aqui que nossas avaliações são subjetivas, tendenciosas e parciais, que elas dependem do observador.

Nós estamos presos em um ritmo que não é absoluto e deduzindo tudo a partir dessa referência. O que concluiríamos ao olhar o tempo do lado de fora, de um "local" onde não exista tempo? Como descreveríamos o que veríamos? Já falei aqui da dificuldade de um macaco em explicar aos da sua espécie o que é ser um humano, após viver um dia em nossa pele. Como ele se faria entender? Talvez usasse os recursos disponíveis em sua realidade. Conhece alguém que usou muitas ilustrações para falar sobre o que não compreendemos? Tudo bem, não vamos seguir nessa linha, pois é assunto para outra ocasião. Ou é exatamente sobre isso que estamos falando?

"Eu lhes falei de coisas terrenas e vocês não creram; como crerão se lhes falar de coisas celestiais?"

Desviando: É impressionante como tudo parece ter um sentido mais amplo quando damos outro enfoque. Um significado menos óbvio e menos repetitivo.

Voltando: Como dizer o que é real e o que não é real? Como afirmar o que existe e o que não existe? Como podemos ser tão absolutos e soberanos em nossas conclusões, quando tudo o que podemos conhecer e medir está preso no único universo que conhecemos, a nossa mente? Como podemos ser tão seguros de nossas ideias e teorias? Que vantagem há no que é equacionável contra o que não é equacionável, uma vez que tudo depende igualmente da mesma miragem, a ilusão da criança que, ao encaixar a forma correta no espaço correspondente, acredita ser a responsável por trazer o formato geométrico a existência.


Felizmente para a criança, o brinquedo será deixado de lado quando ela perceber que a peça tem sempre o mesmo formato, que não precisa ser encaixada no brinquedo para assumir uma forma. A criança terá entendido que a existência ou as ações dela não são pré-requisitos para a verdade.

sexta-feira, 20 de outubro de 2017

Talvez Não Seja Tão Ruim Perder o Trem

"Eu me sinto um estrangeiro / Passageiro de algum trem / Que não passa por aqui / Que não passa de ilusão"



Dias atrás recebi o vídeo abaixo:


Fiquei pensando, o que move essas mulheres? O que as impulsiona dia a dia? Que medo elas têm de modo que se sintam impelidas a continuar nessa rotina? O que há além do trem que valha tanto a pena? Não há outra alternativa de vida? Essa é a única opção? Por que nenhuma delas observa o que está acontecendo ao seu redor? Como nenhuma delas cai em si e não se questiona? Por que nenhuma delas vira as costas para essa realidade, caminha até uma área onde esteja tudo vazio e se liberta da ilusão que a aprisiona? Por que elas não buscam pela sensação de liberdade. Não falo sobre mera necessidade por espaço, mas sim a liberdade da mente, das circunstâncias e, principalmente, dos paradigmas.

Desviando: Já ouviu a fábula sobre o monge e a vaca?

Um monge e seu discípulo seguiam viagem pelo caminho da montanha. Com a aproximação da noite, procuraram onde pudessem descansar. Avistaram uma casinha isolada, simples e rústica, onde morava uma família muito pobre. O monge pediu à família um quarto para pernoitar. O dono da casa ofereceu um pequeno cômodo sem conforto, além de um pouco de alimento, leite e queijo. Enquanto comiam, o monge perguntou ao dono da casa: "Neste lugar não há sinais de comércio ou trabalho, de onde vocês tiram seu sustento?" O dono da casa respondeu: "Temos aqui uma vaca, ela nos dá muito leite, dessa forma vamos sobrevivendo."

No dia seguinte, após se despedir e continuar viagem com o discípulo, furtivamente o monge soltou a vaquinha do pasto e atirou o animal do penhasco. O discípulo, revoltado com o mestre, exclamou que ele havia acabado com a única fonte de sustento da família. O mestre não disse nada e, em silêncio, seguiram viagem.

Passado alguns anos, o monge e seu discípulo precisaram percorrer o mesmo caminho. À noite, resolveram procurar um lugar para descansar novamente. Então, eles foram em direção à casinha rústica da família que os hospedara tempos antes. Chegando lá, viram que o lugar estava diferente. A casa da qual se lembravam não existia mais. Agora, um belo casarão, bem pintado, juntamente com diversas carroças e um agradável jardim. Chamaram pelo dono da casa e este veio recebe-los. Era o mesmo homem de antes, porém bem nutrido, feliz e com roupas novas. Acolheu os monges com um largo sorriso e ofereceu-lhes um quarto muito confortável. Desta vez, a refeição contemplava suco, frutas, pães, queijos, ovos e outras guloseimas. Então, o monge perguntou ao dono da casa: "Neste lugar não há sinais de comércio ou trabalho, de onde vocês tiram seu sustento?" O dono da casa respondeu: "Ocorreu uma tragédia conosco anos atrás, nossa vaca se soltou do pasto e caiu no precipício. Nós entramos em grande aflição e nos vimos obrigados a procurar outras formas de nos manter. Assim, aprendemos a plantar e a cultivar diversas frutas e hortaliças, começamos a fazer produtos próprios e comercializá-los na cidade. Graças à perda da nossa vaca, hoje temos uma vida muito melhor do que antes."

Voltando: Eu direcionei a mim as mesmas perguntas que fiz ao ver o vídeo das mulheres que se espremiam na estação de trem, então entendi cada uma delas. A minha vaquinha ainda não caiu do penhasco.

Agradecimento: Obrigado a RBS por compartilhar o vídeo comigo.

quarta-feira, 27 de setembro de 2017

O Que Você Vai Querer Ser Quando Crescer?

"Perceba, você é um escravo da sua mente. Liberte-se."

O método de produção artesanal predominou durante toda a história da humanidade até por volta do século XVIII, quando ocorreu a Revolução Industrial. Todos os meios necessários para a produção – ferramentas,  matérias-primas e local de trabalho – concentravam-se com o artesão. Ele realizava todas as etapas da manufatura, desde o preparo da matéria-prima, até o acabamento.

Com dificuldade para concorrer com os elevados volumes produzidos pela indústria que surgia, a partir do século XIX, o artesanato passou a se concentrar em oficinas, onde pequenos grupos de aprendizes viviam com os mestres-artesãos. Como último suspiro, apelava-se então às Corporações de Ofício, organizações que os mestres de cada região formavam para defender seus interesses.

Vamos pular para o século XXI, mais precisamente para o ano de 2017. Eu olhei para uma janela de alumínio, daquelas do tipo basculante que são instaladas em banheiros, e vi uma pequena placa com o nome do fabricante, SASAZAKI. Então eu indaguei, por que seria importante associar uma marca a uma janela? Quando foi que os itens que atendem as necessidades das pessoas passaram a ser chamados de produtos e ganharam logos? A partir de quando suprir uma demanda deixou de ser suficiente e por quê?

Involuntariamente, sem conhecer a origem, mas apenas constatando uma relação que existe em minha mente, percebi que as marcas de produtos remetem meus pensamentos ao mundo corporativo, e este à vida profissional, e esta à "definição de si mesmo". Consequentemente, mais dúvidas. Quando uma profissão deixou de ser um meio e passou a ser um fim? Quando o sucesso tornou-se o objetivo? Quando nosso trabalho passou a nos definir? Quais eram as motivações dos artesãos e quais são as nossas? Como eles se relacionavam com as ocupações deles e como nós nos relacionamos com as nossas?

Quando eu passo a desejar uma carreira, um cargo, um status, uma conquista, uma posse, quais são as contrapartidas? Conheço alguém que diz "cada escolha, uma renuncia". Quando defino-me pelo que faço e pelo que quero, o que eu estou deixando de ser? O que estou renunciando? (Recomendo essa re-leitura aqui).

Talvez seja ainda mais crítico. Nós fazemos escolhas mesmo, ou somos orientados? Nós decidimos ou somos sorteados? Onde surgiram e por quem foram criados os padrões que residem no íntimo de todos nós e, consequentemente, interferem nas relações entre as pessoas, estabelecem a base sobre a qual a sociedade é construída e tornam-se as motivações de uma vida e de uma espécie? De uma espécie, cara. Você já pensou nisso? Já olhou para nós como uma porção de formigas simplesmente fazendo, sem saber porque faz? E pior, desejando isso?

"Nós não precisamos de nenhuma lavagem cerebral
(...)
No fim das contas, você é apenas mais um tijolo no muro"


Desviando: Já deve ter percebido que esforço-me para compreender alguns padrões. Por exemplo, por que discursos do tipo "eu sempre parti pra porrada com quem se meteu comigo" tornam-se exemplos de superação e sucesso, até merecendo palmas (minuto 6:00 do vídeo), ao mesmo tempo que discursos do tipo "ofereça o outro lado da face" passam a ser associados a exploração, subjugação e alienação? Isso explica tudo, quando olhamos para o mundo que está sendo construído, mas não faz o menor sentido, quando confrontado com o mundo que dizemos querer construir.

Voltando: Qual a diferença entre fazer e ser? Queremos ser, ou nos satisfazemos em fazer? É possível ser um bom fazedor, mas ainda assim não ser ninguém? Posso mudar minha resposta para a pergunta "o que eu vou querer ser quando crescer"? Já falei aqui, mas com outro enfoque, que a melhor forma de convencer uma pessoa a executar algo é fazer com que ela acredite que desejou por aquilo.