sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Cê é o Bichão Mesmo, hein Doido

"Conhece-te a ti mesmo"
Entrada do templo de Apolo em Delfos, Grécia

Nesta matéria de março de 2016, na revista VEJA, consta que John Kerry, secretário de Estado Americano, afirmou que os ataques do grupo jihadista Estado Islâmico contra cristãos representam um genocídio. A primeira observação que faço sobre a reportagem é que o Departamento de Estado Americano está há meses tentando decidir se classifica os ataques contra os cristãos como limpeza étnica e genocídio. A segunda observação refere-se a opinião dos funcionários do governo americano, de que mesmo que os atos sejam classificados como um extermínio, isso não implicará que os EUA intensifiquem a campanha militar contra os jihadistas. Sabe o que me intrigou mesmo? Eu me identifiquei com a segunda observação, mas vamos com calma.

Apenas para adicionar alguns dados, esse texto de 2015, também na VEJA, menciona que em torno de 100 mil cristãos tem sido mortos por ano no mundo desde 2012. Há também essa outra reportagem do dia 26 de dezembro de 2016, agora do Jornal da Band, apontando que, apenas no Iraque, a população de cristãos caiu de uma faixa entre um milhão e meio a dois milhões no ano de 2003 para 350 mil em 2016. Bem, de março de 2016 para cá, eu não acompanhei as conclusões do Departamento de Estado Americano, para saber se chegaram a alguma conclusão sobre como classificar o assassinato de pessoas que acreditam em Jesus Cristo. Aliás, pensando agora, cheguei a uma conclusão, a principal faceta dos cristãos é que eles morrem por sua crença ao invés de matarem.

Desviando: Já ouviu aquela máxima de que políticos só executam obras que lhes rendem votos? Raros são os casos de melhorias em merenda escolar, em atendimento médico, em policiamento, educação, em tributos etc. Sempre faltam recursos. Porém, basta entrarmos no ano eleitoral e vemos sinalizações de transito serem pintadas nas ruas, praças serem revitalizadas, gramas serem aparadas nos canteiros etc. Na eleição de 2016, um governo da região onde vivo trocou todo o asfalto de uma pista que estava perfeita. Sei disso porque eu passo lá todos os dias e acompanhei o antes, o durante e o depois.

Voltando: A observação que fiz, sobre os funcionários do governo americano não verem motivo para intensificar o combate contra o Estado Islâmico, mesmo que cristão estejam sendo dizimados, fez eu refletir sobre o quanto eu sei de mim mesmo. Eu sou mesmo o que eu acredito ser? Eu sou do tipo que executa o que rende votos, ou do tipo que faz o que tem que ser feito? Pois bem, vamos fazer uma avaliação do que eu chamo de "minha fé", por exemplo. Para ser mais exato, não é um exemplo, mas sim pertinente.

Eu daria contribuições em dinheiro a uma igreja para que ela pudesse ajudar os necessitados e pagar as contas de água, energia e aluguel do local que eu frequentaria aos domingos? Apesar de estar ciente de que hoje eu estou em "dívida" com relação a esse quesito, mas considerando que já fiz muito disso, minha resposta é sim, contribuiria. Eu ajudaria pessoas passando por dificuldade? Sim, já fiz isso também e continuo sempre alerta. Tomando o exemplo dos cristãos que estão sendo mortos por causa do que acreditam, se alguém invadisse a minha casa, colocasse uma arma em minha cabeça e pedisse para que eu negasse a "minha fé", caso contrário eu seria morto, então eu negaria? Eu concordo, é difícil imaginar por que alguém ameaçaria outra pessoa desta forma, mesmo sabendo que isso acontece lá no Iraque. Porém, como estamos no campo da especulação e continuando nele, eu diria que não, não negaria "minha fé" e provavelmente seria morto. Faço minha autoavaliação sob o seguinte aspecto: "não seja covarde pelo menos uma vez na vida, nem que seja para ter coragem apenas no seu último instante de existência".

Interessante, talvez a mensagem que possa ficar seja, "está aí um grande exemplo de cristão". Porém, cá entre nós, essas provas qualificam-me mesmo como um cristão verdadeiro? O teste que estou usando para julgar a minha fé é o mais correto? É o mais completo? É o que valida de fato que eu seja o que eu digo ser? Acho que não.

Que fique claro que não estou querendo avaliar as pessoas que de fato estão morrendo por sua fé, colocando em cheque seus feitos, pois além de darem suas vidas, tenho certeza que elas passam inúmeras outras dificuldades diárias que ratificam a grandeza de suas convicções. O que eu estou julgando aqui é a mim, mas não eles. Quem sou eu?

Quando esse tipo de avaliação é aplicada a mim, eu não passo de um político tentando angariar votos para a próxima eleição, executando apenas aquelas obras que vão expor o meu nome positivamente aos eleitores. Fiquei pensando bastante e cheguei a conclusão que o teste correto seria outro. Eu me manteria humildemente em silêncio quando tivesse aquela enorme vontade de me gabar com relação a algum feito de sucesso? Eu deixaria de contar alguma "mentirinha"? As aspas e o diminutivo são porque sabemos bem que, assim como não existe meio buraco, não existe meia mentira. Eu preferiria sofrer a injustiça ao invés de revidar, apenas para que a corrente de que o mais forte sempre vence e de que o mais violento sempre conquista terminasse em mim? Além de morrer pelo cristianismo, eu morreria por outra pessoa?

Hum, agora parece que não sou tão cristão assim. Não porque eu não queira, mas porque sei que não conseguirei ser aprovado em todas as vezes, ou na maioria delas, ou nunca. E neste momento, tão espontâneo quanto incompleto, seria pensar que eu apenas tenho que melhorar nos aspectos fracos de minha fé. Ééé, não. O correto mesmo seria passar a avaliar os demais sob o mesmo prisma, de que talvez todos estejam tentando e igualmente falhando por pura limitação, seja lá qual for a dificuldade de cada um. Hum, parece começar a querer despontar um sinal de cristianismo autêntico.

Além disso, nós todos sabemos que o menos necessário é alguém apontando seus fracassos ao tom de, "eu avisei", "quem diria, justo o senhor cristão" etc. Alguém disse uma vez que tem gente que não entra no Céu e nem deixa que os outros entrem. E aqui estendo o conceito de Céu extrapolando para além da religião, até os limites do sucesso, se é que quem disse essa frase já não o tenha feito exatamente neste sentido mais amplo. Talvez seja presunção minha tentar adicionar um significado a essa mensagem.

Enfim, ser julgado aprovado baseado em coisas grandes não é tão difícil como parece, pois dão IBOPE. Difícil é ser aprovado em testes pequenos, no dia-a-dia. Não é à toa que existe outra frase, de que o órgão mais difícil de controlar é a língua.

Quando você for dizer que possui uma ideologia, uma fé, uma crença, ou o que quer que seja, inclusive quando desejar dizer que não tem nenhuma delas, antes de afirmar com tanta certeza, teste-se com as coisas pequenas, aquelas que ninguém vê, mas somente você sabe. Porém, não fique frustrado com o resultado, passando a acreditar que você não é o que diz ser, pois eu posso apostar que o resultado seria o mesmo para qualquer coisa que você atribuísse a si mesmo. O objetivo é passar a olhar para as outras pessoas e se enxergar nelas, consciente de que existe mais delas em você do que você imagina. Quem sabe, no melhor dos casos, você acabe percebendo que pensa diferente do que tem dito, rompendo assim alguns preconceitos, passando a se aceitar mais, deixando de julgar a si mesmo como se tivesse a obrigação de ser algo diferente do que você realmente é.

É, eu sei, é difícil aceitar a si mesmo dessa maneira. Quer saber de uma coisa? Esqueça tudo o que eu falei sobre autoaceitação. Eu sou um péssimo cristão. Estou aqui refletindo com os "meus botões" sobre o que eu sou e o que não sou e, na prática, não estou fazendo nada para salvar vidas de cristãos que estão sendo exterminados. Como imaginei, estou parecendo um funcionário do governo americano, que independente da intensidade do que acontece do outro lado do mundo, não pretende fazer absolutamente nada. Um belo de um exemplo de minha parte.


"Meu monólogo interno é saturado e análogo
Está riscado e à deriva, eu tenho me apegado a ideia
É tudo um sonho de mudança, uma filosofia agridoce
Eu não faço ideia de como eu cheguei até aqui
Eu estou ressentido, eu estou tendo uma crise existencial
Quer felicidade
O horário de verão não vai arrumar essa bagunça"


Abraço: Ao EFS e às duas DUS, pois tenho certeza que gostarão do título deste texto.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

E se Alice tivesse Nascido no País das Maravilhas?

"O começo de todas as ciências é o espanto de as coisas serem o que são."
Aristóteles

Você já parou para pensar que dentro de jogos de videogame existe física? Pelo menos segundo as regras definidas pelos desenvolvedores de cada game. Por exemplo, pensemos em uma personagem cujo alcance dos pulos é limitado, sempre caindo de volta ao nível base de acordo com um valor constante, a gravidade daquele mundo. Considere também que a personagem precisa abrir portas, escalar muros e paredes para poder seguir seu caminho. Se ela não pode ocupar o mesmo espaço que outro corpo ao mesmo tempo, então temos a matéria naquele universo. Quando o herói conversa com outras personagens, há um tipo de interação e que representa o som, a menos que interpretemos o diálogo como telepatia (nesse caso, eu diria que não só há física, como também pode existir metafísica).

Cada jogo possui suas próprias constantes. Alguns, inclusive, tentam simular o mais precisamente possível a física do nosso mundo. Um deles é muito famoso nesse sentido e chama-se Gran Turismo. Ele procura tornar as corridas de carro digitais o mais real possível, para que o jogador sinta como se estivesse pilotando super máquinas de verdade. É muito divertido.

Se olharmos para um dado de outubro de 2015, onde consta que o mercado dos games movimentam em torno de US$ 66 bilhões por ano no mundo, não é de se surpreender que existam até cursos de graduação voltados para o desenvolvimento de jogos eletrônicos. A grade curricular contempla, por exemplo, a disciplina de "Física Para Jogos Digitais", cujo objetivo é capacitar os desenvolvedores na aplicação de conceitos de física dentro do mundo virtual.

Pois bem, o ambiente da personagem dentro do jogo eletrônico pode ser considerado uma realidade? Tenho para mim que pode sim, mas restringe-se a ser o universo dela. Do nosso ponto de vista, não é o todo, mas apenas uma parte e bem particular. Extrapolando a reflexão, e se a personagem virtual criasse consciência? Como ela explicaria ou definiria o seu mundo? Como perceberia em que tipo de universo está confinada? Como saberia da existência de processadores, discos rígidos e de um jogador em um universo paralelo influenciando a existência dela?

Imagine que, uma vez consciente de sua existência, o homenzinho eletrônico passasse a fazer medidas e a definir constantes e equações que explicassem a "Natureza" onde vive. Ele conseguiria concluir que está dentro de um game, dentro de um mundo digital? Ele conseguiria concluir que está confinado aos limites da programação dentro de um computador ou videogame?

Desviando: Quando era adolescente, eu vi um filme chamado "Meia-Noite e Um", de 1993. No enredo, ao ser atingido por um raio, o protagonista percebe que diariamente, à meia noite e um, o mesmo dia recomeça novamente. Ninguém percebe que está vivendo em loop, mas apenas ele, por motivos que o filme explica. É interessante pensar que ninguém percebia que estava vivendo em um ciclo fechado e infinito, uma vez que todas as vezes, em determinado horário, o dia era literalmente apagado. Naquela época fiquei muito perturbado com essa possibilidade. Aliás, estou até hoje. E se nós vivêssemos em ciclos que se repetem, seja lá com que frequência for? Como poderíamos descobrir que estaríamos confinados à eternidade?

Outras duas boas pedidas sobre esse tema são: este vídeo, de Carl Sagan, que mostra como é difícil "caber" em nossa mente realidades alternativas, mesmo matematicamente possíveis, que eventualmente existam ao nosso redor; e um filme chamado "Cidade das Sombras" (DarkCity), de 1998, que mostra o grande poder de confinamento que é possível exercer através da ausência de memória, ou melhor, da ausência de passado. Apenas preste atenção, pois existem dois filmes chamados "Cidade da Sombras". Eu falo daquele cujo original é "Dark City" e não "City of Ember".

Voltando: Como nós podemos ter a certeza de que todas as pistas que estamos seguindo, por mais que sejam mensuráveis, equacionáveis, reprodutíveis e previsíveis, não são falsas, ou não são apenas uma parte bem pequena? Por exemplo, os cientistas verificaram um comportamento digno de espanto no nosso Universo. Tudo o que é visível (planetas, estrelas, poeiras cósmicas, gases etc) representam apenas 5% do que existe. Os 95% restantes, chamados de matéria e energia escuras, não podemos ver, mas podemos apenas verificar a influência interferindo no comportamento do que é visível. Se voltarmos à analogia do videogame, podemos dizer que somos a matéria e a energia escuras da personagem dentro do jogo digital, exercendo algum tipo influência que parece extrapolar os princípios físicos do universo dela.

Como podemos dizer que sabemos algo sobre o Universo ou que não sabemos? Como podemos dizer que tudo veio do nada ou que veio de algum lugar? Como podemos dizer que estamos interpretando certo ou errado tudo o que é medido e calculado? Como podemos saber se o Universo é pequeno ou grande? Já tratei desta pergunta aqui. Como saber se somos parte ou o todo? Se parte, completamos o quê? Se o todo, parece-me que o infinito é bem pequeno.

Desviando: Há uma ideia muito interessante no livro "Ortodoxia" de Chesterton. Tomo a liberdade de dar a minha versão. Quando foi que o fato de uma maçã cair, ao desprender-se do talo que lhe fixa à árvore, fez com que achássemos tão natural que árvores dessem frutos? Imagine como poderia maravilhar-se um ser de outro planeta, no nosso mundo, se visse árvores dando frutos, uma vez que no planeta dele a coisa mais natural do Universo seriam árvores dando pirulitos. Quando foi que tudo deixou de ser um mistério e ficou tão normal?


Voltando: Todos na Terra, sem absolutamente nenhuma exceção, tem mais fé do que imaginam, ou confessam, ou compreendem, ou jamais se perguntaram. Para nós é absurdo que o herói de um jogo eletrônico faça medidas dentro dele e conclua que tudo o que existe se resume à sua realidade, mas não é absurdo que nós façamos a mesma coisa do lado de cá. Sabe o motivo desta diferença, ou da semelhança? Tendemos a acreditar que as respostas que possuímos são absolutas, principalmente aquelas que envolvem números.

Se Alice tivesse nascido no País das Maravilhas, coisas como gatos que se comportam como fumaça, soldados feitos de cartas de baralho, chapeleiros malucos, poções que encolhem e que agigantam seriam todas normais, uma aventura não teria sido contada e ela não acreditaria em milagres.

"Os problemas vieram
Salvei o que eu poderia salvar
Um fio de luz
Uma partícula, uma onda
Mas haviam correntes
Então eu apressei em me comportar
Haviam correntes
Então eu o amei como um escravo"

Sugestão: A quem interessar, essa produção é bem pertinente, promovida pelo filósofo Luiz Felipe Pondé. Aliás, agradeço ao EFS por ter compartilhado o vídeo.

terça-feira, 29 de novembro de 2016

Porque Sim Não é Resposta

"Muitas vezes as coisas que me pareceram verdadeiras quando comecei a concebê-las tornaram-se falsas quando quis colocá-las sobre o papel."


Existe uma ferramenta de Gestão da Qualidade chamada de "5 Por Quês", que foi desenvolvida por Taiichi Ono, pai do Sistema de Produção Toyota. Ela consiste em formular cinco "por quês" consecutivos com o objetivo de convergir para a causa raiz de um defeito ou problema (já falei de causa e efeito aqui).

Nada impede que mais ou menos "por quês" sejam formulados. O número 5 vem apenas da observação do criador da receita de que essa quantidade é suficiente para descobrir o motivo central de uma falha. Geralmente, quando somos indagados sobre um problema, tendemos a encontrar uma desculpa e um culpado, mas não a procurar a causa primária. Mais ou menos assim:

Primeiro porquê, temos um sintoma

Segundo porquê, temos uma desculpa

Terceiro porquê, temos um culpado

Quarto porquê, temos uma causa

Quinto porquê, temos a causa raiz

Apesar deste método ser muito utilizado nos ambientes corporativos, ele também pode ser usado no nosso dia a dia.  Sabe quem é craque nesse tipo de técnica? Crianças em torno dos cinco anos de idade. Aquele período da vida em que todas elas tornam-se "chatas", pois querem saber o porque de tudo.

Criança: Pai, por que não podemos ficar juntos o tempo todo?
Pai: Porque o pai tem que trabalhar.
Criança: Por que você tem que trabalhar?
Pai: Porque precisamos pagar as contas.
Criança: Por que temos tantas contas para pagar?
Pai: Porque compramos muitas coisas.
Criança: Por que compramos muitas coisas?
Pai: Porque precisamos suprir as nossas necessidades.
Criança: Por que temos tantas necessidades?
Pai: Vai brincar lá fora, vai.

É incrível como os "5 Por Quês" funcionam tão perfeitamente. Nós conseguimos (ou toleramos) no máximo três ou quatro respostas, pois a desculpa e o culpado são fáceis de encontrar. No diálogo entre a criança e o pai,  exatamente no momento que a vida vai ser avaliada, que será dado nome e significado às escolhas feitas, que se correrá o risco de que "os olhos sejam abertos", é que a resposta é evitada. Talvez porque a essência demande muito de nossa mente, ou porque simplesmente não sabemos a resposta, ou quem sabe ainda porque não queremos, providencialmente, conhecê-la.

Usei aspas ao chamar a criança de chata, pois na prática nós somos os chatos. É incoerente para uma criança gastar seu tempo ou aceitar conclusões que não valham a pena, que não lhe sejam úteis, que não façam sentido. E é neste período da infância que ela é moldada ao mundo dos macaquinhos que não deixam ninguém pegar o cacho de bananas no topo da escada, só porque sempre foi assim (já falei dessa metáfora aqui).

Aplicando a lógica dos "5 Por Quês", acabei avaliando minhas conquistas e os objetivos que ainda tenho. Foi quando cheguei a conclusão de que um dos grandes problemas que enfrentamos, durante essa curta jornada que chamamos de vida, são as expectativas. Aliás, tenho pensado muito nas minhas recentemente, pelo simples fato de ter percebido de que tenho bem poucas.

Por exemplo, dizem que os pobres são os únicos efetivamente felizes, pois não são presos a bens materiais, sucesso e a status. Porém, pode ser que essa ideia esteja equivocada.

Desviando: "(...) o reles antidemocrata de hoje lhe dirá solenemente que não há na natureza nenhuma igualdade. Ele está certo, mas não percebe o adendo lógico. Não há na natureza nenhuma igualdade; mas também não há nenhuma desigualdade. A desigualdade, tanto quanto a igualdade, implica um padrão de valores.

Ver aristocracia na anarquia dos animais é exatamente tão sentimental como ver nela democracia. Tanto a democracia quanto a aristocracia são um ideal: a primeira diz que todos os homens são preciosos; a segunda, que alguns homens são mais preciosos que os outros. Mas a natureza não diz que os gatos são mais preciosos que os ratos; a natureza não faz nenhuma observação sobre o assunto. Ela nem sequer diz que o gato é digno de inveja ou que o rato é digno de dó. Nós pensamos que o gato é superior porque temos (ou a maioria de nós tem) uma filosofia particular afirmando que a vida é melhor que a morte. Mas se o rato fosse um rato pessimista alemão, ele talvez não pensasse que o gato o havia de algum modo derrotado. Pensaria que ele havia derrotado o gato chegando antes dele à sepultura. Ou então poderia sentir que ele de fato infligira um tremendo castigo ao gato mantendo-o vivo."

Ortodoxia – G. K. Chesterton (Edição Centenária 1908 - 2008)

Voltando: É bem provável que os autenticamente felizes não sejam nem os pobres e nem os ricos, mas aqueles que conseguiram conquistar todas as suas expectativas. Porém, não pelo sucesso, mas sim porque perceberam que o vazio, força motriz de tantos planos e objetivos, não foi preenchido. Talvez sintam-se frustrados, no entanto, não perceberam quão felizes são, pois a partir de agora nada os prendem mais. Eles finalmente libertaram-se da ilusão de que precisam de algo.

Aqueles que ainda estão em busca de seus planos não perceberam que querem apenas por querer. Por exemplo, já ouviu alguém dizer que com suas forças e dedicação são capazes de conquistar o mundo? Pois eu pergunto-me, após conquistar o mundo, o que faremos com ele? É claro que estou usando um exemplo extremo, mas o objetivo é poder ter a referência de como aplicar os "5 Por Quês" aos nossos objetivos. Ficarei sinceramente feliz caso você consiga viver bem com as respostas que encontrar.

Fechando o laço (foi a melhor palavra que achei para a ideia de loop), é justamente por isso que a expectativa torna-se um problema. Ficamos constantemente presos a ilusão da conquista e não percebemos que sempre tivemos tudo, ou melhor, que nunca precisamos de nada. Como no caso do gato e do rato de Chesterton, o problema é o padrão de valores implícito na nossa realidade. Ou seria um padrão admissivelmente imposto?

Desviando: Imagine uma pessoa que vai a um bosque gravar vídeos, junto a um riacho, árvores, pássaros, grama e tranquilidade. Seu objetivo é que sirvam como referência e ajuda para quem esteja precisando apenas de um "empurrãozinho". Seria lógico dizer que o acesso que essa pessoa tem ao campo e que os momentos que pode passar naquele local viabilizam o seu objetivo, gravar vídeos sobre o tema e ajudar pessoas a "encontrarem-se".

Porém, eu parei para refletir sobre esse caso e cheguei a seguinte conclusão. Se o objetivo desta pessoa fosse viver entre as árvores, junto a um riacho, aos pássaros etc, seria muito mais óbvio pensar que o trabalho que ela está executando, de gravar vídeos de motivação, é apenas o pano de fundo para que possa, ou deve (com o perdão da ênfase), viver a vida que sempre quis ter. O que separa a satisfação da inquietação neste caso? Porque ela continua vídeo após vídeo? São as expectativas, aquela vontade de fazer a diferença na vida de alguém, de encontrar um propósito para a sua própria vida, de eternizar-se quando consegue espalhar um pouco de si mesma dentro de outras pessoas.

Tentando ser um pouco mais otimista, quem sabe o trabalho de gravar os vídeos seja uma estratégia inconsciente, para que ela possa convencer-se conscientemente de viver a vida tranquila no campo. Enquanto o seu lado consciente fica insatisfeito, sempre buscando algo, preso a ilusão das conquistas, o seu eu mais profundo fica lá dentro gritando, "cara, olhe ao seu redor". Passo até a ficar com outra dúvida agora, qual parte de nós é mais racional, a razão propriamente dita ou os "instintos"?

"É o coração que sente Deus e não a razão."

Aliás, porque eu continuo escrevendo textos atrás de textos neste blog? Já sei, vai brincar lá fora, vai.

Voltando: Não à toa, já foi dito que uma casa onde há morte é melhor do que uma onde há nascimento. Não porque a morte seja melhor do que a vida, mas sim porque quando pensamos na morte deixamos de avaliar a vida sob o prisma das expectativas.

Agradecimento: Ao RT que indicou-me a ótima leitura "Ortodoxia" de Chesterton.

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Por que o Prêmio Tem de Ser Colocado Atrás de Uma Porta?

"Existem certas ocasiões em que um homem tem de revelar metade do seu segredo para manter oculto o resto."


A expressão "crise dos sete anos" popularizou-se através do filme "The Seven Year Itch", clássico de 1955 que, no Brasil, recebeu o nome de "O Pecado Mora ao Lado". No enredo, o editor de livros Richard Sherman (Tom Ewell) aproveita a viagem de sua esposa para aproximar-se da vizinha, interpretada por Marilyn Monroe.

Enquanto mantém fantasias com a moça, o protagonista dedica-se à leitura de um livro chamado "A Coceira do Sétimo Ano" (tradução literal do nome do próprio filme). A narrativa do livro abordaria uma possível tendência masculina à infidelidade após sete anos de casamento. É como se a personagem Richard Sherman estivesse lendo a história do próprio filme, ou como se o filme estivesse contando a história do livro. Ou seja, tudo ficção.

Não acredito, tudo não passa de um filme e o "mundo" trata a questão como se fosse fato? Pois já ouvi pessoas, que se consideram extremamente racionais, expondo essa "superstição" como quem cita um artigo científico. É interessante como encontramos "fé" nas mais diversas categorias de pessoas, mesmo naquelas que dizem não tê-la.

A ideia enraizou-se de tal maneira que, nos dias atuais, a "crise dos sete anos" não está limitada apenas a tendências masculinas e a infidelidade, mas também é aplicada a qualquer tipo de problema de relacionamento. Nós seres humanos somos tão suscetíveis a sugestões assim? Parece-me bem óbvio, é mais fácil encontrar uma causa externa e intangível para nossos problemas, incluindo deixar-se levar sem requerer explicações, do que tentar reconhecer nossas responsabilidades, buscar por soluções e colocá-las em prática. Preparar a lasanha congelada no forno microondas é sempre mais fácil.

Fiquei curioso e resolvi pesquisar o assunto. Segundo essa reportagem da VEJA, com dados coletados pelo IBGE entre 1984 e 2014, a duração média do matrimônio caiu de 19 para 15 anos. Então, se houver alguma crise previsível nos relacionamentos, ela deve ocorrer aos 15 anos e não aos sete, pelo menos no Brasil de hoje. É o que diz a matemática e acreditamos nela, correto? Eu confesso que só acredito na ciência quando me convém (já tratei deste tema aqui).

Desviando: É impressionante como mesmo essa reportagem na revista VEJA, que supostamente tem o objetivo de trazer alguma lucidez ao assunto, também deixa suas sugestões na nossa mente. Segundo o mesmo artigo, o divórcio vem ganhando força desde 2010, ano em que a legalização da separação teve a burocracia reduzida. Essa interpretação apresentada sugeriu-me (não precisei pensar) que as pessoas não se separavam apenas porque havia muita papelada para assinar, ou muitas regras a serem seguidas. Pois eu tive que refletir para interpretar diferente (e raciocinar é sempre mais oneroso). Por exemplo, talvez o número de separações não tenha sido alterado, ou o tenha por motivos diversos, mas não necessariamente porque a burocracia facilitou. Ou nós acreditamos mesmo que, no passado, duas pessoas ficavam morando na mesma casa e unidas a contra gosto somente porque não conseguiam obter um papel assinado por um juiz? A reportagem seria mais precisa se dissesse que o número de "separações legalizadas" aumentou em virtude de facilidades na burocracia. Consegue perceber a diferença? Está certo, talvez eu esteja exagerando, com mania de teorias da conspiração. Quem sabe o repórter tenha apenas inocentemente interpretado os dados de forma equivocada (não estou tentando ser irônico). Ou mais simples ainda, quem sabe tenha sido eu quem entendeu errado.

Voltando: Não parece estranho? Seria planejado, popularizar que aos sete anos de relacionamento todos os casais passam por uma crise, enquanto a estatística diz diferente? Ou seria mero acaso? Talvez apenas leviandade? Por que não veiculam que cada casal faz o seu próprio relacionamento?

O mesmo "mundo" que prega que podemos conquistar o que desejarmos, com nosso esforço e dedicação, acaba criando regras, sugerindo regras, falácias, que dificultam ou impedem o nosso "sucesso". Qual seria o objetivo de nos abrirem o mundo e ao mesmo tempo criarem obstáculos; e pior, obstáculos que não necessariamente existem? Deixo claro desde já que não conseguiremos responder essa pergunta, mas não estamos escrevendo (eu) e lendo (você) este texto para obtermos respostas, mas sim para fazermos perguntas, correto?

Desviando: Não teremos a resposta, mas presenciei algo que cogito ser uma boa analogia. Dias atrás eu vi um Palio no trânsito. Estava com o vidro traseiro coberto por um grande símbolo da Nike, o logotipo da marca. Fiquei pensando, "a menos que o motorista trabalhe para a empresa, ele está tentando passar uma imagem de que é 'descolado', independente, arrojado, alguém que todos gostariam de ser ou ter como amigo". Essa aparência é buscada, provavelmente, por influência de propagandas da marca, que geralmente apresentam o mesmo estereótipo como propósito de vida. Porém, mal sabe o dono daquele automóvel que todas essas ideias teriam sido criadas na mente dele com um único objetivo, aceitar fazer a propaganda da Nike de graça. Já falei neste texto que nossas ideologias nem são nossas mesmo.

Voltando: Há quem se deixe iludir por uma marca, outros por uma ideia. Há quem não se iluda por nada, mas essa pode ser a mais profunda de todas as ilusões. Não consigo deixar de ir além com minhas dúvidas. Quais são outras ideias que existem por aí, de forma análoga a "crise dos sete anos", cuja origem também não conhecemos, que talvez nem existam, e que mesmo assim assumimos como verdade absoluta? Quem está "vendendo" as ideologias? Incomoda-me muito ter essa dúvida, não porque ela não será esclarecida, mas sim pelo fato de que estar ciente dela não é suficiente para livrar-me de seu contexto.

Enfim, tenho a nítida impressão de que estou participando daqueles jogos onde pedem para escolher uma entre três portas. Duas delas escondem cabras e apenas uma possui um prêmio. Por que colocar a recompensa atrás de apenas uma entre três portas? Por que as portas?

"Todo dia o sol da manhã
Vem e lhes desafia
Traz do sonho pro mundo
Quem já não o queria
(...)
E a cidade que tem braços abertos
Num cartão postal
Com os punhos fechados da vida real
Lhes nega oportunidades
Mostra a face dura do mal
(...)
A arte de viver da fé
Só não se sabe fé em que"