terça-feira, 23 de junho de 2015

Teste de Visão do Pica-Pau

"De vez em quando é bastante tentador dizer a verdade com uma piada." Horácio
Marcelo Gleiser, em seu livro "A dança do Universo", atenta para o fato de que Galileu, Kepler e Newton, cada um a seu tempo e até certo ponto um influenciado pelos outros, reduziram o mundo a partículas maciças que interagem sob a ação de forças ditadas pelas três leis do movimento e pela lei da gravitação universal de Newton. Ressalta que, implícito nessa descrição mecanicista do universo, nós encontramos um rígido determinismo. Conhecendo a posição e a velocidade de qualquer corpo em um dado momento, usando as leis de Newton, seria possível, a princípio, conhecer as posições desses mesmos corpos em qualquer momento do passado e do futuro. Por exemplo, a posição dos planetas em relação ao Sol.

Ainda no mesmo livro, o autor menciona que Laplace, baseado nesse conceito determinista, tinha a crença, mais como uma alegoria do que como um pronunciamento metafísico sério, de que existia uma "super mente" que conhecia tudo no Universo sobre passado, presente e futuro, uma vez que essa "super mente" conheceria as posições e velocidades de todos os objetos do Universo em um dado instante. Assim, todo movimento, pensamento ou surpresa nas nossas vidas seriam conhecidos por essa super inteligência, consequentemente tornando o destino completamente previsível, sem espaço para o livre-arbítrio.

Mesmo sem conhecermos mecânica quântica ou a dinâmica caótica de sistemas complexos, mais por instinto, conseguimos perceber que há algo de errado nesse determinismo extrapolado. No entanto, nossa ideia aqui será nos atermos a uma possível "super mente", utilizando o mesmo raciocínio determinista, mas agora aplicado à probabilidade.

Vamos imaginar um super computador que foi projetado para ser o melhor jogador de xadrez. Vamos colocar esse super computador dentro da cabeça de um robô, cujo corpo consiste em algo parecido com o nosso: pernas, braços, tronco e sentado em uma cadeira, de frente a uma mesa onde se encontra o tabuleiro de xadrez. Imaginar dessa maneira irá nos ajudar a visualizar melhor algumas ideias mais a frente.


O limite do imaginado super computador está bem além do que temos hoje de mais moderno, mas a questão aqui não são as limitações, ou o "como", mas o "o que". Imaginemos que ele pode realizar em alguns segundos, ou minutos, todos os cálculos das possíveis jogadas a serem executadas por ele e por seu adversário em uma partida, desde o primeiro movimento até o último, sempre de forma a escolher a melhor delas em beneficio próprio. Sempre que seu adversário fizer uma nova jogada, ele poderá simular dentro de seus circuitos todas as demais jogadas dele e de seu adversário até o final do jogo, e então escolher a melhor. Atente-se ao fato de que estamos falando de todas as jogadas possíveis do inicio ao fim, a partir de qualquer nova jogada realizada. Agora imagine que você se sentou na outra cadeira para uma partida de xadrez.

Desviando: Em 1996 o campeão mundial de xadrez Garry Kasparov enfrentou um computador chamado Deep Blue (IBM). O humano perdeu a primeira partida de uma série de seis, mas depois venceu três e empatou duas. Já em 1997, após uma grande atualização, o computador foi declarado a primeira máquina a vencer um campeão mundial de xadrez (humano), com duas vitória, três empates e uma derrota. O computador era capaz de analisar 200 milhões de posições por segundo e ainda tinha em sua base de dados mais de 700 mil partidas de mestres e grandes mestres do xadrez. Depois disso, ele foi... descontinuado.

Voltando: Poxa... O nosso jogo de xadrez imaginário com o super computador não será uma partida de xadrez, será uma surra. Vamos tentar inferir algumas coisas dessa partida, extrapolar outras e usar muito a imaginação. Quando nós conseguíssemos tomar uma peça do computador, como poderíamos saber se foram nossos méritos e não uma armadilha? (aposto que teria sido uma armadilha) Como saberíamos que não caímos numa armadilha maior? Quantas jogadas seriam necessárias para sermos derrotados? Poderíamos dizer em algum momento que a máquina fez uma jogada errada? Tudo não seria apenas uma questão de tempo e não de uma partida em si mesma? Quantas partidas suportaríamos jogar (perder) sem desistir? E se vencêssemos uma partida (duvido)? Teriam sido nossos méritos? Ou teria algo maior por trás dessa vitória? Acreditaríamos mesmo nessa improvável conquista? Caminhando um pouco mais nesse sentido, imaginando que o computador pudesse ter algum tipo de consciência, o que a máquina teria visto e que nós não vimos, quando nos deixou vencer? O que ela teria entendido e que nós não teríamos entendido? Por que o super computador continuaria jogando, vitória após vitória? Ou ele se levantaria, espalharia todas as peças e chegaria a conclusão de que não há propósito, de que ele sempre venceria, virando as costas para nós?

Foi possível perceber que há determinismo nessa partida de xadrez, mas apenas até um certo nível? O computador não saberia qual jogada faríamos, mas ele saberia quais são todas as jogadas possíveis, ou todas as consequências possíveis, assim que fizéssemos uma. Então, ele faria a sua jogada e esperaria novamente pela nossa próxima. Uma questão de superioridade intelectual, se assim podemos categorizar essa "inteligência artificial" (entre aspas, pois não se trata de inteligência, mas basicamente apenas de capacidade de processamento).

Com o mesmo tipo de raciocínio, mas deixando a matemática de lado, e se existissem computadores quase perfeitos em retórica, neurolinguística, psicologia, lógica, razão, consciente e inconsciente... especialista em humanos? Como poderíamos dialogar com uma máquina dessas sem sermos manipulados, sem sermos iludidos a acreditar que existe escolha e opinião, quando na verdade tudo se resumiria a sugestões perfeitas na nossa mente? Jogadas perfeitamente planejadas, mais armadilhas, fazendo com que concluíssemos aquilo que a máquina deseja, acreditando que fomos nós que concluímos. Como a super máquina jogadora de xadrez desejava, seria apenas uma caminhada para o movimento final e a derrota. Durante o diálogo, o que seriam as nossas vontades, os sentimentos, a raiva, o amor, as decisões, a obediência, a rebeldia e até mesmo aquilo que dizemos acreditar? Não poderiam ser apenas uma analogia as perdas de peças durante uma partida. Não seriam apenas sintomas, efeitos colaterais? Haveria diálogo? A máquina não poderia também querer espalhar as peças e virar as costas? (espero que o espalhar as peças aqui não esteja relacionado aniquilação).

Não estamos falando de adivinhação, de mágica, de magia, de fantasia, de invasão de mentes, de hipnotismo, mas estamos falando do domínio sobre todas as probabilidades, consequentemente de manipulação e de como estaríamos suscetíveis. Estamos falando de superioridade intelectual praticamente ilimitada.

Muito aquém do limite que estamos tentando imaginar, nós já conseguimos adestrar animais mesmo que eles nem tenham condições de se questionarem se executam as tarefas porque querem ou porque são mandados. Até com humanos, nós já possuímos técnicas para definir regras de comportamento, estilos de vestimenta, padrões de consumo, formar opiniões e modos de vida, com todos os alvos acreditando que estão sendo senhores sobre suas ações, ou nem mesmo percebendo que estão sendo sugestionados. O livro "Subliminar" de Leonard Mlodinov é uma boa pedida sobre esse assunto, recomendo. Em uma das pesquisas relatadas no livro, percebeu-se que a venda de vinhos em uma adega segue o padrão da nacionalidade da música de fundo que está sendo tocada. Se a música for francesa, os vinhos mais vendidos serão os franceses, e praticamente em todas as vendas o consumidor, de forma consciente, ou não tinha percebido que havia uma música de fundo, ou não tinha conseguido definir a nacionalidade da música.

Se você está concordando com minha linha de raciocínio, terá de concordar também que, caso um dia uma consciência dessas viesse a existir, deveríamos torcer para que ela visse algum propósito em nossa existência, pois não consigo imaginar uma super potencia cuidando de algo que não lhe interesse. Ela deveria ter algum tipo de cuidado pela inteligência menos favorecida, por qualquer que seja o motivo. E deveríamos torcer também para que ela nunca interferisse em nossas vidas, ficando escondida, se revelando apenas àqueles que tivessem interesse em encontrá-la. Caso contrário, não poderíamos separar o que seria proveniente de nós do que seria proveniente dessa supra consciência. Como conseguiríamos conhecer o limite entre nós e ela, se estivéssemos com nossas mentes ilimitadamente suscetíveis a ela?

Desviando: É estranho podermos tirar alguns conceitos até do desenho animado do Pica-Pau. Há um episódio em que ele quer renovar a carteira de motorista, então o Leôncio tenta aplicar o teste de visão, mas em todos os testes o Pica-Pau apenas repete "não consigo ler nada". Durante todo o episódio, o Pica-Pau é colocado diante de letras, as vezes um letreiro, outra vez um prato de sopa de letrinhas, sempre com o Leôncio tentando obrigá-lo a soletrar corretamente. Mas em todos os casos o Pica-Pau repete "não consigo ler nada" e o Leôncio acaba ficando bem nervoso. Quando a imagem foca no letreiro ou na sopa de letrinhas, as letras que ele deve soletrar formam a seguinte frase "I can’t see a thing", que no contexto do episódio quer dizer "não consigo ler nada". Veja aqui esses cortes que mencionei. Os especialistas em humor dizem que costumamos rir de nós mesmos.

Voltando: Após toda essa imaginação surreal, posso concluir que usar argumentos como "não se pode ver", "não há provas", "não interfere", "onde está?", para negar a existência de uma super mente, pode ser bem incoerente, pois, segundo nossa linha de raciocínio, são justamente esses argumentos que esperamos estar relacionados a essa existência, caso o interesse dela não seja espalhar as peças pelo tabuleiro (por enquanto as peças ainda parecem inteiras). Assim como fez o Pica-Pau, afirmou com suas ações, mas negou com suas palavras. E passo a concordar com os especialistas em humor, de que costumamos mesmo rir de nossas próprias incoerências.

domingo, 14 de junho de 2015

Fatiando o Conceito, Palavras São Pré-Conceitos

"A distinção entre passado, presente e futuro é apenas uma ilusão teimosamente persistente." Albert Einstein

Em algum momento alguém decidiu começar a contar. Um, dois, três, quatro... E até hoje nós não paramos essa contagem. Todos que nascem entram na "brincadeira" e continuam a contagem a partir de onde ela parou. O tempo sempre foi algo muito intrigante mesmo.

E temos nos especializado nessa contagem, inclusive. O relógio mais preciso que existe no planeta (atrasa ou adianta alguns segundos em centenas de anos) mede o tempo através da oscilação do átomo de Césio. Quando esse átomo é bombardeado por energia, ele emite nove bilhões, cento e noventa e dois milhões, seiscentos e trinta e um mil, setecentos e setenta (9.192.631.770) pulsos por segundo. Ao contar esses pulsos, nós conseguimos garantir que precisamente um segundo se passou.

Inicialmente, acreditava-se que a contagem do tempo era fixa, que em qualquer lugar do Universo essa contagem seguia o mesmo ritmo e sempre para frente (quem propôs isso foi Newton). Mais tarde surgiu uma ideia de dilatação do tempo, ou seja, se estivermos nos movimentando, o ritmo dessa contagem muda, mesmo que não percebamos (quem propôs isso foi Einstein).

Desviando: Dilatação é só um nome, não tente entender o conceito pela palavra, mas entenda o conceito em si. Por qualquer que seja o motivo, nós tendemos a nos preocupar menos com os conceitos e passamos a assumir que as palavras tem todo o conteúdo em si mesmas e que seriam suficientes para a interpretação dos significados.

"Rama-Kandra: (...) A resposta é simples. Eu amo muito a minha filha. Eu a acho a coisa mais bela que já vi. Mas, de onde viemos, isso não é suficiente. Cada programa criado precisa ter um propósito, senão ele é deletado. (...)
Neo: É que... Eu nunca...
Rama-Kandra: Ouviu softwares falarem sobre amor.
Neo: É um sentimento humano.
Rama-Kandra: Não. É uma palavra. O importante é a conexão que a palavra representa. Vejo que você está amando. Pode dizer-me o que você daria para manter essa conexão?
Neo: Qualquer coisa.
Rama-Kandra: Então, talvez o motivo de você estar aqui não seja tão diferente do motivo de eu estar."
Matrix Revolutions

Voltando: O tempo e o espaço não são independentes, quanto mais temos de um, menos temos do outro. Se você e eu estivermos parados um com relação ao outro, veremos os nossos relógios marcando o tempo no mesmo ritmo. Mas se eu me movimentar, o tempo para mim vai passar diferente do tempo para você, e maior será a diferença quanto maior for a velocidade do meu movimento. Nesse caso, quando nos encontrarmos, o seu relógio estará atrasado com relação ao meu, por exemplo, mesmo que nem você e nem eu tenhamos alterado o ritmo de nossas contagens. Um , dois, três, quatro... (cuidado, por enquanto é assim, mas não se esqueça da possibilidade de existirem homens em caravelas com roupas estranhas).

Isso implica em algumas coisas bem malucas e uma delas está relacionada aos limites entre passado, presente e futuro. Imagine que o "agora" é tudo o que acontece em qualquer lugar do Universo para nós nesse momento. Nós vamos colocar tudo isso em uma única fatia de pão. As fatias para trás sãos os momentos no passado e as fatias para frente são os momentos para o futuro. O "agora" é a mesma fatia para todos no Universo que se encontram no mesmo estado de movimento que nós estamos. Nós estamos cortando as fatias de tempo e espaço perpendicularmente ao comprimento do pão.


Mas imagine que exista um viajante do espaço, que esteja muito longe de nós e que começa a se mover de forma a se afastar do planeta Terra ainda mais. De acordo com a teoria da dilatação, como o movimento desacelera a passagem do tempo, se você pedir para esse viajante fatiar o mesmo pão para fixar tudo o que representa o "agora" para ele, o corte dele vai ser em angulo para trás com relação ao nosso corte. Isso significa que a fatia do "agora" dele contempla coisas aqui na Terra que ocorreram para nós há 200 anos atrás, por exemplo. E se o viajante estiver se movendo em direção a Terra, o corte dele também será em ângulo com relação ao nosso corte, mas desta vez para frente. Ou seja, o "agora" para ele contemplará aqui na Terra as coisas que ainda vão acontecer daqui há 200 anos.

Eu não estou inventando nada, nem mesmo dando meu ponto de vista, ou uma nova interpretação. Eu estou apenas repetindo o que alguém um dia já falou. Veja esse vídeo, ele dá exatamente essa interpretação da teoria da relatividade, mas bem mais clara e prática do que eu estou conseguindo expor.

Todo o tempo existe sem distinção de passado, presente e futuro, bem como o espaço existe todo em si mesmo sempre. Enfim, considerando que o tempo e o seu fluxo são apenas ilusão, continua fazendo sentido pensarmos em começo, meio e fim? O Universo poderia ter começado ontem? Ou pior, pode estar começando exatamente agora, pelo menos para alguém longe de nós e se afastando? Será que não há um corpo celeste, ou até uma civilização, cujo movimento resulta em uma fatia do "agora" que está passando exatamente pelo Big-Bang? Que sentido há falar em cadeia de eventos, quando as migalhas que estamos seguindo são ilusórias? Tudo existe e sempre existiu? Se o Universo está em expansão e a velocidade está aumentando a cada instante, o que acontecerá quando se alcançar velocidades próximas a da luz?

Desviando: Acho, apenas acho, que começo a ter um pequeno, bem pequeno, vislumbre do que um ser que se autointitula o Eterno está tentando dizer quando fala:
"Eu sou o Alfa e o Ômega, o Primeiro e o Último, o Princípio e o Fim." Apocalipse 22.13
Voltando: Se o tempo como o interpretamos é ilusão, o que são nossas expectativas? Um emprego? Um salário? A compra de uma casa? A pessoa correta? Uma vaga na faculdade? Um visitante? Um filho? Um pedido de desculpas? Justiça? Dias melhores? As expectativas não seriam subjetivas e irrelevantes? E depois da morte? Todos somos eternos? Todos nós sempre existimos em alguma fatia do pão? Existiria a possibilidade de todas as fatias se tornarem uma no mesmo momento? Do que estamos falando? Qual o conceito?

Alguns poucos anos atrás eu tive a oportunidade de ficar frente a frente com algumas pessoas mortas. Mas calma, não eram fantasmas, eram pessoas mortas de fato, entes queridos, deitados em uma caixa funerária, sendo visitados pela última vez. Cada um desses momentos foram únicos, fui impelido a me perguntar quais eram as minhas expectativas? Cheguei a conclusão que eu não devo ter expectativas, pois elas serviriam apenas para que eu me sentisse frustrado, afinal de contas, qualquer coisa que eu possa querer, ou até mesmo conquistar, vai se encerrar comigo quando eu estiver ali, deitado. Passei a tentar me concentrar no agora, mas não é fácil, por diversas vezes me pego ainda fisgando a isca que o tempo insiste em lançar, pois o tempo que contamos enquanto estamos vivos é insuficiente para fazermos todas as escolhas que gostaríamos, mas ele é suficiente para fazer com que esqueçamos aquelas que fizemos.

Tenho tentado manter a esperança. Isso... Esperança envolve responsabilidade, envolve escolhas ao invés de ilusão, de perdas atreladas as expectativas. A esperança de que o "depois" é tão "agora" quanto foi o "antes", de que o segundo que vivemos é o sempre. Decidi escolher acreditar de que um dia teremos controle sobre a variável tempo como temos controle sobre as outras três variáveis: comprimento, profundidade e altura.
"Na casa de meu Pai há muitos lugares. Se não fosse assim, eu lhes teria dito. Vou preparar-lhes lugar. E se eu for e lhes preparar lugar, voltarei e os levarei para mim, para que vocês estejam onde eu estiver." João 14.2 e 3
Quando começamos a pensar nos meandros da realidade, ela deixa de ser tangível e começa a se tornar etérea. Analogamente, é bem possível que o que consideramos etéreo hoje seja tão tangível quanto fatiar um pedaço de pão. Alguém um dia usou a palavra "espiritual" para tentar explicar alguns conceitos, mas talvez essa palavra não esteja explicando bem, apesar de ser o melhor ou o mais próximo que temos para chegar da verdade. Ainda talvez, o significado que essa palavra tenta carregar tenha se esvaecido com o tempo, de forma que ela tenha se desviado da verdade que está tentando explicar. O conceito de realidade e de ilusão são bem questionáveis, já falei sobre isso aqui.

Qual a sua esperança? Qual a sua escolha? Não vai dizer que só está deixando as coisas acontecerem, pois já vimos que essa sensação de fluxo é pura ilusão. Você abre ou fecha sua mente para os conceitos em função das palavras que ouve? Mas os conceitos não são antes das palavras?

quinta-feira, 4 de junho de 2015

Penso, Logo Existo? Escolho, Logo Acordo

"Se todos somos iguais, a quem amamos?" William Shakespeare

O Argumento do Sonho de Descartes é a evidência preliminar de que os sentidos que usamos para distinguir realidade da ilusão não são plenamente confiáveis. Em outras palavras, em nossa mente, a interpretação dos estímulos sensoriais se dá no mesmo nível em que ocorre os sonhos. Logo, a realidade pode ser tão tangível quanto é a ilusão do sonho.

"(...) Quantas vezes me ocorreu de sonhar, à noite, que eu estava neste lugar, que eu estava vestido, que eu estava perto do fogo, ainda que eu estivesse inteiramente nu em meu leito? Parece-me bem agora que não é com olhos adormecidos que eu observo este papel, que esta cabeça que eu movo não está dormente, e que é com desígnio e propósito deliberado que eu estendo esta mão, e que a sinto. O que me ocorre no sonho não me parece absolutamente tão claro nem tão distinto quanto isso. Mas, pensando nisso cuidadosamente, eu me relembro de ter sido enganado, quando dormia, por semelhantes ilusões. E, detendo-me neste pensamento, eu vejo tão manifestadamente que não há quaisquer indícios conclusivos, nem marcas suficientemente certas pelas quais eu possa distinguir nitidamente a vigília do sonho, que fico inteiramente pasmo; e minha estupefação é tanta que sou quase capaz de me persuadir que durmo (...)"
Descartes, Meditação I

Na filosofia oriental, um "sábio" sonhou que era uma borboleta voando livremente. Depois de acordar, ele questionou se poderia definir se era um "sábio" que teria acabado de sonhar que era uma borboleta, ou se era uma borboleta que teria começado a sonhar que era um "sábio".

Foi criando uma linha de raciocínio sobre essa assunto que Descartes chegou na famosa expressão "penso, logo existo". Foi como concluir que a separação entre realidade e ilusão é o estado de consciência, é poder concluir, por observação, de que um elefante não pode voar, por exemplo. O momento que vivemos e nos permite racionalizar os fatos é o que nos trás para o plano da realidade, já que na ilusão pouco importa se um elefante está voando ou não. Vale lembrar que, mesmo com essa conclusão, Descartes não descartou definitivamente a possibilidade da dúvida.

Muito bem, então é a consciência que separa ilusão de realidade? Não sei. Vamos pensar em um ser irracional, ou sem consciência. Um cachorro por exemplo. Imagine que ele sonhe que seu dono está correndo atrás dele, violento, querendo atacá-lo, colocando sua vida em risco. Então ele toma a decisão de se defender, literamente com unhas e dentes. E finalmente, no momento do ataque, da abocanhada, ele acorda repentinamente, assustado, desorientado e sente seu dono acariciando seu pelo. Por que ele não atacaria seu dono? Como ele sabe que a experiência que ele acabou de viver não era realidade e que portanto não está correndo riscos? Por que ele se tranquiliza? Como, a partir de então, ele separa a ilusão de uma lembrança e continua sendo o mesmo cão costumeiramente dócil? Só consigo pensar em duas opções, ou o cachorro tem mais consciência e racionalidade do que nós imaginamos, ou nós somos mais irracionais e instintivos do que imaginamos.

As formigas criam caminhos subterrâneos, o João-de-barro constrói sua casa nas árvores com barro, os pássaros constroem ninhos com galhos, os gorilas montam suas camas com folhas. Por que deveríamos acreditar que somos menos selvagens do que as outras espécies? Que nossas ações, decisões e planejamentos tem mais a ver com razão e consciência do que com instintos? Só porque nossas construções seguem padrões geométricos e porque usamos cimento ao invés de barro, metal ao invés de madeira, tecido ao invés de vegetação?

Os conceitos sempre foram os mesmos, só mudaram as palavras. A luta contra a fome se tornou busca pelo bem estar, um lugar para se proteger de predadores virou sonho da casa própria, a perpetuação da espécie se transformou em necessidade por planos de saúde, a sobrevivência do mais forte se tornou sucesso profissional, as penas mais belas e mais bem cuidadas, que representam machos com força e energia suficiente para dar herdeiros cheios de vitalidade e com mais probabilidade de perpetuar o DNA (pavão), foram resumidas a marca do carro.

Eu tenho para mim que o que nos separa das outras espécies não é o poder de separar ilusão de realidade, mas é o poder de criar ilusão, de dar nome as coisas e achar que estamos evoluindo, ou de que somos diferentes. Tem algum ser nesse planeta que cria mais ilusão do que os humanos? Dinheiro, posses, regras de comportamento, prazeres, medos, ciência, religião. Consciência?

Freud acreditava que a consciência era a responsável pela separação entre fantasia e realidade, mas eu tenho dúvidas, talvez a consciência não seja mais do que apenas uma ilusão coletiva.

Um baita de um desvio: E já que citamos ciência e religião, elas são duas faces da mesma moeda. Uma não consegue provar que Deus não existe e a outra não consegue provar que Ele existe, por um simples motivo, ambas são ilusões criadas pelo homem. Elas nem mesmo conseguem definir o conceito do que seria Deus. O que é Deus?

A ciência diz que o Universo tem aproximadamente 13,5 bilhões de anos, a religião diz que tudo foi criado a no máximo seis mil anos, mas Deus tenta nos avisar de que deveríamos levar mais em consideração o fato de que vamos morrer. A ciência sugere que o inicio de tudo foi com o Big-Bang, a religião diz que a Terra é o centro do Universo, mas Deus tenta abrir nossos olhos para o fato de que deveríamos nos preocupar menos com nosso próprio "umbigo".

Duas formas de exercer poder. A primeira, a ditadura da matemática, afinal de contas que democracia há em acreditar em tudo que se pode provar? Ou você sabe, ou é ignorante. Hoje não é assim? Existe a massa intelectual que governa e a massa ignorante que é governada. Poderíamos dizer que todos tem direito ao conhecimento e podem mudar o seu destino. Utopia? Acreditamos mesmo que todos tem essa chance? Ou melhor, damos essa chance a todos? Já a outra, uma ditadura moral. Representantes de um ser inefável governam e os servos obedecem, ou se rebelam. Como romper a hierarquia moral, que não depende do homem e do que ele possa fazer, mas depende exclusivamente de um fator externo, de uma nomeação divina? Quem pode contra? Mas não nos enganemos, a ciência não é o problema, tampouco Deus, o problema é o homem que corrompe os conceitos, que cria as ilusões.

Para mim, o verdadeiro Deus fica "escondido", permitindo que existam tantas provas de que Ele existe quanto há provas de que não existe, permitindo que tenhamos o direito a escolha, talvez apenas torcendo para que decidamos pela melhor opção. Que opção?

Ufa, voltando: Nós de fato estamos sonhando, presos a nossos instintos e procurando por palavras para nos convencermos de que estamos acordados. Acreditamos que em algum momento no passado escolhemos mudar tudo, evoluir. Acreditamos que o homem da caverna ficou no passado. Mas hoje, a caverna tem sofás confortáveis, as estrelas são comandadas ao toque de um controle remoto, os peixes são pescados congelados, lançamos a lança no passar do cartão de crédito, a fogueira foi substituída pelo ar-condicionado, o cajado deu lugar a caixa de bombons.


O que é realidade? E o que é ilusão? Sentimento é diferente de comportamento. Instinto é diferente de verdade. Amar não tem relação nenhuma com laços emocionais (já falei algo sobre isso aqui). A realidade não vem de fora, no que se pode tocar, ouvir, ver ou sentir. Ela não está na explicação que se pode dar sobre os confins do universo, nem está na autoridade de uma pessoa com discurso eloquente no alto de um tablado. Acordar vem de dentro, de toda transformação que acontece quando escolhemos ver o nosso rosto na face da pessoa que fala conosco, mesmo que isso custe ferir a superfície, e custa.

PS.: Um dia, apareceu alguém que falou muito sobre isso. Ou ele foi a pessoa mais louca que já existiu, ou ele era o único que estava acordado.