quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

Pai, Afasta de Mim esse Cale-se

"Dê a todas as pessoas seus ouvidos, mas a poucas a sua voz."


Enquanto eu lia uma coluna sobre "quais países em que mais morreram jornalistas em 2018", lembrei-me de ter visto outra reportagem, em um telejornal, sobre um estudo realizado pela ONG britânica Article 19, apontando que o ano de 2017 foi o mais perigoso para os jornalistas. Segundo o estudo daquela ONG, foram pelo menos 78 repórteres mortos naquele ano, sem mencionar prisões. O telejornal, que mostrou os resultados do estudo, fez a seguinte afirmação, com exatamente essas palavras: "No Brasil, a liberdade de imprensa também diminuiu".

Como a liberdade de imprensa é mensurada? Qual o parâmetro? Baseado em qual critério se conclui que a liberdade diminui ou aumenta? De qualquer maneira, fato é que o telejornal, bem como o colunista, colocou em cheque a liberdade de expressão.

Desviando: Eu fiquei tentando definir minha opinião, se acredito que a liberdade de expressão está correndo algum risco mesmo. Porém, não consegui chegar a conclusão alguma. Vi matérias como aquelas, sobre jornalistas assassinados e perseguidos, e também vi vídeos como este, de um comediante sofrendo tentativa de censura, através de um aparelho estatal, por grupos políticos, que, ironicamente, se classificam como progressistas. Somente com esses exemplos, talvez eu devesse acreditar que sim, estamos sofrendo censura. Porém, também vi vídeos como este (na verdade é um trailer), em que crenças religiosas são livremente criticadas (não é bem uma crítica, é só chacota mesmo, mas isso não o desqualifica como uma forma de expressão). Ou vídeos como este, com campanhas pró-aborto, mesmo em um país conservador. Ou ainda este, em que uma ativista homossexual se manifesta livremente sem sofrer nenhum tipo de censura, ainda que o ato dela esteja censurando o outro grupo. Dessa forma, com esses outros exemplos, eu tenderia a acreditar que não, não estamos sofrendo censura.

Ao ver todos os exemplos, questionei-me, a crítica é soberana, ou ela pode ser criticada? Se for soberana, quem faz a crítica verdadeira? Quem está imune, aquele que é a favor ou aquele que é contra aquilo que se define como status quo? Quem dita a regra do que pode ser criticado e do que não pode? Se a crítica não for soberana, eu posso criticar a crítica? Ou serei taxado de repressor? Às vezes, parece-me que os promotores da liberdade de expressão também comentem censura, por isso eu disse que não sei o que concluir.

Voltando: A censura à liberdade de expressão é mais comumente abordada do ponto de vista da voz que é silenciada. Porém, eu acredito que existe uma segunda abordagem, que é tão ou mais perigosa quanto a primeira. Refiro-me a voz que é ignorada. Vamos por partes...

Por exemplo, Marielle Franco. Mulher, negra e homossexual. Lutando legitimamente por essas três causas, teve sua voz silenciada. Ela foi brutalmente executada, sendo que os responsáveis só começaram a ser identificados um ano após o crime (se é que foram mesmo). Aliás, o processo de investigação sofreu comprovadamente propositadas interferências. E sabe o que eu observei? Após tanto tempo do ocorrido, eu não somente decorei o nome dela, como sei que se escreve com duplo L, sem ter que recorrer a qualquer tipo de fonte.

Há uma semana, cinco pessoas foram mortas na Catedral de Campinas. Um crime igualmente terrível. No entanto, eu não sei o nome de qualquer uma das vítimas. Por que existe essa diferença? Por que eu sei tanto sobre Marielle Franco (com nome e sobrenome), mas não sei nada sobre ao menos uma das cinco vitimas da Catedral? Aliás, qual o nome do motorista que estava com a Marielle Franco mesmo? Vou precisar recorrer às fontes.

Primeiro, quero deixar claro que eu não estou minimizando a morte de Marielle Franco comparativamente a morte do motorista dela, ou a morte de qualquer uma das cinco vitimas da Catedral de Campinas. Segundo, quero lhe alertar para o fato de que as pessoas que falam somente sobre ela não se sentem compelidas, como eu me senti, a fazer esse mesmo tipo de esclarecimento, por citarem "um milhão de vezes" o nome dela, mas não citarem o nome do motorista ou das cinco vitimas da Catedral na mesma proporção. Você não acha estranho essa diferença? Pois eu acho bastante incoerente. Por isso eu disse, ignorar uma voz pode ser tão ou mais perigoso quanto silenciar outra.

Tudo bem, talvez alguém possa propor que a diferença entre essas mortes esteja atrelada as causas pelas quais a Marielle Franco lutava, tornando a perda dela mais significativa para a sociedade do que a perda das outras cinco vitimas – não vamos apelar para os números, pois o segundo caso ganhou. Neste caso, deveria eu concluir que as causas pelas quais se lutam são maiores que a vida? Se a resposta for não, continuo sem entender porque a imprensa "grita" o nome de Marielle Franco, mas ignora o nome das outras cinco vitimas da Catedral. Entretanto, se a resposta for sim, e a causa pela qual se luta é maior que a vida, então me sentirei moralmente livre para declinar da causa da Marielle Franco, escolhendo "gritar" por outra causa, a de duas mulheres também negras (não sei porque é importante mencionar a cor), uma com um filho em torno de sete anos e outra com um filho em torno de três anos.

Não vou colocar o vídeo aqui para lhe mostrar o que ocorreu com as duas mulheres que citei, pois as imagens são horrendas, mas as descreverei. A primeira mulher, de mãos dadas com seu filho de sete anos, é escoltada por homens armados com fuzis. Enquanto ela caminha até o lugar onde será executada, os homens dão tapas em sua face – não na bochecha, mas no meio da cara. A criança olha o tempo todo para o rosto da mãe sendo esbofeteado. A segunda mulher dá os mesmos passos que a primeira, com os mesmos tapas no rosto, mas com o filho de três anos pendurado nas costas. Já no local da execução, ambas as mulheres, bem como as crianças, são vendadas. Os homens se afastam em torno de cinco metros e fuzilam as mães e os filhos com vários tiros. Eles continuam atirando mesmo com todos já mortos no chão. A câmera se aproxima para filmar como ficaram os corpos, mas eu parei de ver o vídeo neste momento. Não sei se mostraram algo mesmo, tão próximo. Não consegui terminar de ver.

Enfim, fiquei imaginando o que passou pela cabeça das mulheres e das crianças naqueles últimos passos. E o que pensavam depois, quando os executores se afastavam, na iminência dos tiros. Tentei traduzir as sensações olhando as expressões dos olhos delas a cada tapa. E quanto as crianças? Que sentimento se tem quando você percebe que sua protetora fora subjugada? Que medo se sente quando você, ainda criança, vê sua mãe sendo esbofeteada na face e sabe que não pode fazer nada para ajudá-la? O consolo é que, após o primeiro tiro, qualquer sentimento, por pior que seja, não fará a menor diferença.


E quer saber porque aquelas duas mulheres e duas crianças morreram? Porque eram cristãs. Como se pode ver, elas não tinham causa alguma pelas quais lutar. O desfecho de suas vidas mostrou que tinham sim uma causa pela qual morrer. Se ao menos tivesse algum efeito gritar "meu corpo, minhas regras", mas a física que explica uma bala penetrando a carne é indiferente a qualquer vontade humana. Não sabemos os seus nomes e ninguém que detém o microfone nas mãos se interessou pela morte delas. Mesmo o vídeo que eu vi, ele foi gravado pelos próprios assassinos. As duas mulheres e as duas crianças morreram anônimas, sem ninguém que as defendessem em um mundo com quase oito bilhões de pessoas.

De agora em diante, sempre que alguém "gritar" aos quatro ventos o nome de Marielle Franco, eu "gritarei" pela morte daquelas duas mulheres e crianças. Passo a deixar o vídeo guardado em meus arquivos para essas ocasiões, para quem quiser ver, para quem quiser chorar comigo.

Quem decide qual luta deve estar em pauta? A luta de quem é digna de concentrar a voz de uma nação? Não consegui concluir se vivemos censura ou não, mas afirmo, sem sombra de dúvidas, que existem mais vozes ignoradas do que silenciadas. Somos fantoches, no alto de nossas pseudo intelectualidade e nobreza, gritando nomes que são sussurrados aos nossos ouvidos. Faça uma autoavaliação, qual a origem da luta que você trava? Você as escolheu, ou as escolheram por você? A partir de hoje vou usar o seguinte parâmetro para decidir onde vou focar minha voz: que grito não está sendo ouvido? que nome não está sendo mencionado? Pois minha crítica não é direcionada a quem foi injustiçado, mas sim às reais motivações de quem está oferecendo ajuda.

sábado, 24 de novembro de 2018

O Motivo de Hoje para Acreditar em Deus

"Se Deus não existisse, seria preciso inventá-lo."

Há algum tempo, perguntaram-me o motivo pelo qual eu acredito na existência de Deus. A curiosidade se baseou na aparente contradição, como é possível que eu acredite em Deus ao mesmo tempo que me interesso por ciências, por razão, filosofia, psicologia etc – que fique claro que estou aquém de ser considerado mesmo um amador nesses assuntos, principalmente sobre Deus.

A primeira observação que faço é, eu não acredito que Deus existe. Eu acredito que Ele é, pois Ele está "acima" da existência. Pra mim, algo só existe quando está associado a um ponto no espaço-tempo e, como eu acredito que foi Deus quem criou o espaço-tempo, então Ele só pode ser além da existência. Aliás, Ele próprio, sempre que questionado nos relatos que temos registrados e disponíveis, apresentou a si mesmo como "Eu Sou". Mas tudo bem, por pura praticidade, vamos usar a palavra "existir" relacionada a Deus. Também vamos usá-la porque não consigo ir além desse ponto na diferença entre ser e existir. Talvez seja uma limitação do meu idioma. Quem sabe para seres extraterrestres, em uma supra realidade, a diferença seja mais clara.

A segunda observação será uma pergunta, que propositadamente não vou responder. Onde, como e por que surgiu a relação inversamente proporcional entre razão e fé? De fato, espanta-me a nossa capacidade de "engolir" algumas concepções simplesmente porque elas já existiam quando nascemos. Como fiquei chateado, comigo mesmo, quando descobri minha necessidade de requerer provas para aquilo em que não quero acreditar, e como não preciso delas para algo em que quero acreditar. Já falei aqui, por exemplo, que nós não procuramos pela verdade, mas procuramos validar as respostas que desejamos que sejam verdade. Sempre, onde há um ser humano, não há conclusões imparciais, mas tudo é tendencioso. Aliás, aqui percebi duas coisas: primeiro, que creio por causa das dúvidas, mas não por causa das certezas; segundo, imagine o alcance de uma consciência que tira conclusões absolutamente imparciais (inteligência artificial?).

Desviando: Não consegui deixar de lembrar do seguinte diálogo:

Oráculo: Jamais conseguimos ver além das escolhas que não entendemos.
Neo: Está dizendo que tenho de escolher (...)
Oráculo: Não. Você já fez a escolha. Agora, precisa entendê-la.


Voltando: Finalmente, a terceira e última observação sobre a pergunta inicial. Há vários motivos pelos quais eu acredito que Deus exista. Alguns motivos são baseados em estatísticas, como aqui, aqui e aqui – confesso, fui como Tomé. Outros motivos são baseados em lógica, como aqui e aqui. Há aqueles baseados em filosofia, de certa forma, como aqui e aqui. Outros ainda, e estes principalmente, são baseados nas palavras de um homem, palavras que duvido um ser humano fosse capaz de vislumbrar – como humano já é difícil de entendê-las, quanto mais teria sido criá-las. Ah, uma observação importantíssima, já passei da fase de acreditar em Deus por causa de milagres. Enfim, sem mais delongas, na atual conjuntura, prefiro destacar apenas uma resposta neste texto. Coincidentemente, era exatamente o mesmo motivo de Ariano Suassuna, mas deixarei a citação dele para o final.

Dias atrás fiquei sabendo de uma morte. De alguém relativamente próximo, apesar de pouquíssimo contato. Fiquei imaginando, quantas situações aquela pessoa viveu e somente ela sabia? Quanto ela levou consigo e ninguém jamais saberá? Pense em si mesmo por um momento. Lembre-se de quando você passou por uma situação de muita tristeza, ou mesmo de muita alegria. Então, você voltou para casa naquele dia e preferiu não expor seu familiar àquela infelicidade e a guardou pra si, pois seria desnecessário, seria enfadonho, seria irrelevante – varreu para debaixo do tapete. Ou quando tentou expor toda a sua euforia pelo dia de alegria e, mesmo que seu familiar lhe tenha dado atenção, você percebeu que ele não conseguiu sequer imaginar a felicidade que você estava tentando transmitir. Quantas imagens e memórias existem somente na sua mente, daquele dia que você viveu absolutamente sozinho mesmo rodeado por centenas de pessoas? E tudo isso vai sumir um dia junto com você e ninguém nunca saberá.

Desviando: Lembrei-me de um trecho de um conto de Clarice Lispector – perdoe-me, mas não me recordo qual era o conto, sei apenas que ele está neste livro. A autora, ou a personagem, se questiona que nome o cachorro de estimação lhe teria dado? Ele parte e ela nunca saberá. Ele terá levado aquele nome com ele para o esquecimento. Aliás, nunca terá sequer existido.

Voltando: Um outro aspecto que a perda daquela pessoa me fez refletir foi sobre as "injustiças" da vida. Aquela família perdeu um ente querido tão cedo e, a partir de agora, quais as oportunidades que eles deixarão de viver? Não foi o caso, mas imagine uma criança por volta de seus cinco anos de idade e que perde um pai. Quais as experiências que não serão vividas? Um cheiro, um toque, uma voz, um olhar, uma lição de casa, uma lição de vida, uma bronca, um colo, um presente, um sorriso, uma lagrima. Ou melhor, centenas de cada uma dessas coisas. Olho para minha vida, que foi tão normal, e sei o que uma criança dessas não terá. Imagine outra criança, uma  que nasceu com deficiência visual. Eu nem mesmo tenho condições de exemplificar tudo o que ela nunca vai saber por não enxergar. Ou outra criança, com alguma deficiência mental, que nunca viverá todas as oportunidades e todas as experiências tão maravilhosamente alegres e tristes que a maioria das pessoas vive nesse mundo. Imagine um jovem que morreu aos dezesseis anos, por exemplo. Poxa, eu tenho tantas memórias dos dezesseis aos trinta e oito anos. Enfim, por que uns tem tanto e outros tão pouco? Por que uns viveram e outros não? Isso definitivamente me angustia.

Pois então, aí está o motivo de hoje para acreditar na existência de Deus. Tem que haver algo além, que venha a revelar tudo e que corrigirá todas as imperfeições. Se eu não acreditasse, eu me desesperaria.

Admiro quem não crê e consegue se manter centrado diante desse mundo. Quem não crê e não se entrega a lei do mais forte. Quem não crê, mas é fiel. Quem não crê, mas se prende ao trabalho. Quem não crê, mas não se entrega a devassidão. Quem não crê, mas doa o que tem. Quem não crê, mas se esforça em prol da moralidade. Principalmente quem não crê e mesmo assim tem esperança. Afinal, o que há no final para quem não crê? Todos os esforços terão se esvaído pelo esquecimento. A morte é o que torna todo e qualquer esforço em vão. A morte basta para tirar qualquer sentido da existência.

Tudo bem, alguém pode se agarrar a ideia de deixar um mundo melhor para os próximos, mas mesmo esse sentimento em um coração de quem não crê me espanta. Como alguém pode ser tão generoso, tão altruísta, ao mesmo tempo que se mantém ciente de que no fim não há nada? Como alguém consegue ser persistente e paciente com um destino que se resumirá a nada? Afinal de contas, se não acontecer algo pior antes, em pelo menos 5 bilhões de anos a Terra desaparecerá com o fim do Sol. Nesse dia, que esforço humano terá valido à pena? Talvez o exemplo do Sol explodindo seja extremo demais. Vamos reduzir a escala para uns 30 ou 40 anos. Nesse caso, o dia em que o Sol parar de brilhar para essa pessoa que não crê, que esforço seu terá valido à pena?


Entenda, eu não estou sendo irônico, ou criticando, ou julgando. Eu admiro de verdade esse tipo de pessoa, pois eu sou "fraco". Eu preciso de Deus para achar que as coisas valem à pena. Não fosse por acreditar na existência de Deus, eu seria um desesperado. Ou eu teria me entregado totalmente à lei da Natureza, em todos os aspectos morais, já que na vida selvagem não há moralidade. Ou eu teria poupado os esforços do tempo, que pacientemente me leva em direção ao fim, tendo então, forçadamente, acelerado o processo do inevitável.

Enfim, escrevi tanto, mas como mencionei acima, Suassuna já havia explicado tudo isso infinitamente melhor que eu, em pouquíssimas palavras. Não à toa era o Suassuna.


Amanhã? Amanhã terei outro motivo para acreditar em Deus.

sábado, 27 de outubro de 2018

Acertou na Mosca

"O óbvio é a verdade mais difícil de enxergar."


Alguém fez uma pergunta meses atrás, mas não deu chance para uma resposta. Na ocasião, foi uma pergunta retórica, mas fiquei instigado em tentar responder, mais por ter vindo algo muito rápido à mente do que por ter de pensar a respeito.

Por que Deus colocou uma Árvore, cujo Fruto não poderia ser comido, no centro do Jardim e ao alcance do Homem? E pior, por que Ele fez isso mesmo sabendo que o Homem comeria o Fruto daquela Árvore?

A ideia que veio a minha mente, como uma centelha, foi a seguinte. Imagine um quadro branco. Pois imagine que eu desenhe uma circunferência neste quadro e, de alguma forma, dou vida a ela. Então, eu digo para a minha pequena criação: "Esse quadro branco é o seu mundo. Quero que você o ocupe e o domine, pois lhe dotei de consciência, de liberdade e de escolha." Provavelmente, a pequena circunferência se voltaria para a vastidão do quadro branco e responderia: "Mas senhor, o que é a liberdade para que eu possa usufruir dela? O que é a escolha para que eu a pratique?" Bem, as questões feitas por ela mostram que pelo menos de consciência ela entendeu.

Sabemos o que é liberdade? Nós vivemos em uma realidade na qual nossas escolhas são condicionadas, onde nossa autonomia é limitada. Isso me faz questionar se a liberdade existe mesmo, ou se ela é apenas uma idealização. Tomando um único exemplo, primitivo em certa medida, nós estamos presos à debilidade de nossos corpos. Necessitamos comer, descansar e de oxigênio. Esses três fatores já limitam muito o nosso alcance. E se nos aprofundarmos nas estruturas que construímos, na sociedade e nas relações interpessoais, centenas ou milhares de outras restrições se impõem diante do que poderíamos fazer e, principalmente, do que poderíamos ser.

Estou tentando alertar para o fato de que, mesmo conhecendo o conceito de liberdade e de escolha, quando pensamos no sentido prático dessas palavras, nós temos dificuldade de compreendê-las, ou melhor, de concluir se elas são realmente aplicáveis. Quanto mais, quando o conceito ainda nem existe, como eu responderia à minha criação – aquela desenhada no quadro branco – sobre o que é liberdade e escolha?

Vou dizer como eu faria, não porque a ideia foi minha, mas porque já foi feito uma vez e funcionou. Eu desenharia duas árvores no quadro branco, uma com frutos bons e outra com frutos ruins. Então, diria ao pequeno círculo: "Da primeira árvore você pode comer o quanto desejar, pois lhe fará bem. Porém, não coma nada da segunda árvore, pois lhe fará mal. E saiba, você depende apenas de si mesmo para cumprir essa regra." Está certo, a última afirmação foi ideia minha.

Não existe um ser dotado de capacidade de escolha por si só. Para que ele exista, é necessário que as alternativas existam e que ele dependa exclusivamente de si para decidir.

Agora, a segunda parte da pergunta. Stephen Hawking tentou responder algumas questões muito interessantes no seu livro "O Universo numa casca de noz". Entre elas, por que o Universo possui três dimensões, mas não duas, ou uma? Ele fez uma observação simples, porém genial. Um universo de três dimensões é o único, em todas as probabilidades, que pode ser habitado por seres capazes de fazerem esse tipo de pergunta. Ele usou o seguinte exemplo, se um camelo fosse plano (como um desenho em uma folha de papel),  o tubo digestivo, que começa na boca e termina no anus, dividiria o animal ao meio, separando-o em duas partes, a de cima e a de baixo. Assim, o camelo não possuiria vida. Portanto, entre todas as alternativas de universo, prevaleceu a única que seria possível, ou, pelo menos, prevaleceu a única onde pode haver vida como a conhecemos e capaz de questionar o próprio Universo.

Se Hawking estiver certo, ele pode ter ajudado a responder outra pergunta mais enigmática ainda. Por que Deus deu ao Homem a liberdade e a capacidade de escolha mesmo sabendo que ele se rebelaria e sofreria por isso? Extrapolando a ideia de Hawking, talvez porque entre todas as alternativas, para aquilo que Deus desejava criar, Ele soubesse que essa era a única possibilidade viável. Interessante, para quem assistiu Guerra Infinita, lembrei-me da cena em que o Dr Estranho viu todas alternativas para o fim da guerra (falar mais do que isso será spoiler).

Desviando: Considere por um momento que Deus exista mesmo. Até onde se estenderiam as capacidades dEle? Quais seriam as limitações? Que tipo de poder a palavra "Deus" esconde em si? Se Ele for o criador de tudo o que pode ser visto e do que não pode, será que há alguma chance de termos razão em colocarmos em cheque a forma como tudo foi criado? Entenda, não quero dizer que não temos a liberdade de questionar. Lembre-se do pequeno círculo. O que estou tentando entender é quão longe um ser definido pela palavra Humano está daquele definido pela palavra Deus. Nós teríamos mesmo condições de argumentar contra um ser onipresente, onisciente e onipotente? Até essa minha tentativa de achar um sentido para a criação não passa de uma presunção bem humana. Não me admiraria se Deus apenas dissesse que fez o que fez porque Ele simplesmente desejou. Afinal de contas, ser Deus tem que ter lá suas vantagens.

Voltando: Já que para dar a capacidade de liberdade ao meu pequeno círculo, eu criei a chance de ele fazer a escolha errada e sofrer com isso. E já que, de fato, ele escolheu errado e agora se deformou um pouco, ficando oval, eu tenho duas alternativas: ou apago o pequeno círculo e crio outro, na expectativa de que o novo faça as escolhas certas; ou eu faço uma restauração do original. Escolhendo a primeira alternativa, eu corro o risco de repetir essa solução cíclica e infinitamente, mas não acredito que essa seja a melhor resposta, pois como já disse aquela frase famosa, equivocadamente atribuída a Einstein, "insanidade é continuar fazendo sempre a mesma coisa e esperar resultados diferentes." Assim, com minha limitada lógica, concluo que a segunda alternativa parece-me mais plausível. Porém, hoje não desejo falar da mais que conhecida história sobre a restauração do pequeno círculo no quadro branco.

Sim, concordo, tudo isso se resolveria com uma única afirmação, "Deus não existe". Nesse caso, esse texto inteiro se resumiria a essa última alegação. Porém, não é nisso em que acreditamos. Eu que escrevo e você que lê, o fazemos justamente porque acreditamos que as coisas não são tão simples assim. Ambos estamos aqui porque procuramos por algo além. Então, a pergunta correta não é "porque Ele fez assim?". A pergunta certeira é "o que aquela história quer ensinar?". Somos capazes de responder a essa última pergunta? Lembrando sempre que, não é a resposta que queremos de fato, mas sim aquilo que vamos aprender com a busca por ela.

sábado, 22 de setembro de 2018

Depende ou Não Depende? Eis a Questão

"A moral é uma, os pecados são diferentes."

No programa Café Filosófico da TV cultura, transmitido no dia 08 de setembro, Leandro Karnal falou sobre o sociólogo e filósofo Zygmunt Bauman. Em determinado trecho da palestra ele disse:  "Pós-modernidade significa a falência das metanarrativas amplas. Metanarrativas são narrativas vastas, gerais que dão sentido a todas as coisas que eu posso entender. Exemplo clássico, a Bíblia. Explica tudo de onde veio, tudo como está e tudo para onde vamos. A Bíblia não explica a história do povo judeu, ou a história dos primeiros cristãos. A Bíblia diz, no princípio criou Deus o céu e a terra. E no final, no Apocalipse, último livro do Novo Testamento, a Bíblia encerra isso. E essas metanarrativas bíblicas tiveram concorrentes. A partir do século XVII e XVIII, o Iluminismo. A partir do século XIX, o Marxismo. E a partir do século XIX e XX, o Idealismo. Todas essas metanarrativas são universais. E agora nós passamos a viver o fim das narrativas do tipo metanarrativas. Não há mais explicações gerais. As narrativas passam a ser curtas, tópicas. Só têm valor para mim. Surge o indivíduo que rejeita a Bíblia, a Ilíada, a Odisseia. Surge o individuo que rejeita Shakespeare e diz:  'Nada disso vale, eu penso diferente.' (neste momento Leandro Karnal segurou a risada), característica da pós modernidade. A minha opinião é constituidora de sentindo. O colapso da modernidade é o colapso da razão e a ascensão da manipulação dos signos. Dessa capacidade de deslocar sentidos para o individuo."


O conceito de Lei Natural (Direito) surgiu com o propósito de avaliar as opções humanas no sentido de agir de modo razoável e bom. Ou seja, surgiu com o objetivo de descrever a moral como uma regra absoluta, inerente ao ser humano. Posteriormente, com o desenvolvimento da ciência, a Lei Natural (Ciência) passou a representar algum fenômeno natural que possa ser observado regularmente, como, por exemplo, a gravidade, que nos mantém presos ao chão.

Neste texto, gostaria que focássemos apenas no sentido original da Lei Natural. Gostaria que pensássemos sobre as colocações de Leandro Karnal, de que verdades gerais tem sido moldadas para atender ao indivíduo.

Desviando: Se bem que, o conceito cientifico da Lei Natural também daria um bom texto, pois, atualmente, mesmo a ciência tem sido colocada em cheque, haja vista questionamentos recentes contra a biologia e contra a esfericidade da Terra – para citar somente dois exemplos.

Voltando: Sendo assim, a Lei Natural, ou a moral, existe mesmo? Há o certo e o errado independente do indivíduo?

O primeiro exemplo que podemos pensar refere-se ao conceito de contratos. São eles que nos fazem cumprir acordos, ou é a nossa noção sobre certo e errado que nos torna fiéis ao que foi combinado? De fato, se analisarmos com um pouco mais de cuidado, perceberemos que contratos não possuem valor. Eles são apenas testemunhas além do tempo e do espaço. Qualquer pessoa que ver um contrato saberá que um pacto foi firmado e deve ser cumprido, mesmo que ela não tenha estado presente no momento e no local do apertar de mãos. Portanto, o que nos torna fiéis a acordos é uma lei moral de que quebrar promessas é errado. Sem esse conceito, nem ao menos entenderíamos para que serve um contrato.

Outro exemplo, por que Hitler se armou para fazer valer seus planos e ideais? Foi porque ele, além de ter os próprios conceitos sobre certo e errado, também era capaz de reconhecer o julgamento alheio (dos Aliados) sobre o que eles consideravam certo e errado. Portanto, ele se preparou para as consequências. Se Hitler não tivesse a Lei Natural dentro de si e não soubesse que ela existe de forma geral nos demais, ele poderia, sinceramente, não saber porque estava sendo retalhado, ou sequer ter se armado.

E além disso, a moral vai muito mais além. Nós ficamos com raiva de uma pessoa que propositadamente tenta nos derrubar, mesmo que ela não consiga. Porém, absolvemos quem desastradamente e sem intenção alguma consegue nos derrubar de fato. A moral é algo que nos faz julgar além das consequências.

Visto que a Lei Natural, ou a moral, existe mesmo, ela é absoluta ou personalizável? O que é moralmente correto ou errado para um povo, não o é necessariamente para outro povo? O que é correto para uma pessoa não é absolutamente para outra?

Na maioria dos casos, não percebemos que, apesar das distintas ideias morais entre diferentes povos e culturas, a essência da moral em si difere muito pouco entre eles. Se é que difere.

Eu compararia a Lei Natural, ou a moral, à "menor" partícula constituinte da matéria. O átomo é a estrutura básica, fundamental, a partir da qual todas as moléculas são criadas e posteriormente as maiores estruturas, como pedras, árvores e mesmo nossos corpos. Uma cultura pode considerar errado que um homem tenha quatro esposas, mas outra cultura pode considerar correto. Esse aspecto da moralidade é só a molécula. Porém, ambos os povos concordam que um homem não pode ter qualquer mulher, mas apenas aquela que seja sua esposa. Sendo essa última, portanto, o átomo da Lei Natural. Aliás, podemos ir além, e devemos, o verdadeiro átomo só veio à tona poucas décadas atrás. Hoje um homem só pode ter uma mulher que queira ser sua esposa.

Pois bem, feitas todas essas observações, o que eu poderia dizer sobre nosso tempo, o da pós-modernidade? Qual a minha opinião sobre a individualização das verdades? Desta vez fiquei feliz em perceber que, quando formei uma opinião, alguém já a havia citado antes de mim. Aliás, tenho duas opiniões: a primeira é a mesma risada contida como a de Leandro Karnal na citação inicial; a segunda segue abaixo.

"Todos sabem que o dado está viciado
Todos lançam-no com os dedos cruzados
Todos sabem que a guerra acabou
Todos sabem que os caras bons perderam
Todos sabem que a luta foi armada
Os pobres continuam pobres, os ricos ficam ricos
É assim que as coisas são, todos sabem
Todos sabem que o barco está vazando
Todos sabem que o capitão mentiu
Todos têm esse sentimento quebrado
Como se o pai ou o cachorro deles tivessem morrido
Todos conversando com seus bolsos
Todos querem uma caixa de chocolates e uma rosa de haste longa
(...)
Todos sabem que você me ama, baby
Todos sabem que você realmente ama
Todos sabem que você foi fiel
Oh, tirando uma ou duas noites
Todos sabem que você foi discreto
Mas havia tantas pessoas que você precisava conhecer sem suas roupas
(...)
É assim que as coisas são, todos sabem
(...)
E todos sabem que é agora ou nunca
Todos sabem que sou eu ou você
E todos sabem que você vive para sempre
Quando você faz uma linha ou duas
Todo mundo sabe que o negócio está podre
O velho Black Joe ainda colhe algodão
Para suas fitas e arcos
(...)
E todos sabem que a praga está chegando
Todos sabem que está se movendo rapidamente
Todos sabem que o homem e a mulher nus
São apenas um artefato brilhante do passado
Todos sabem que a cena está morta
Mas haverá um registro em sua cama
Isso irá divulgar o que todos sabem
E todos sabem que você está com problemas
Todos sabem o que você passou
Da cruz sangrenta em cima do Calvário até a praia de Malibu
Todos sabem que está se afastando
Dê uma última olhada neste Sagrado Coração antes que ele exploda
(...)"

Ah, estava quase me esquecendo. Tenho uma terceira opinião sobre pós-modernidade:


Créditos: Quero dar o devido crédito ao autor de todos exemplos, com exceção de um ou dois de minha autoria. Além de ser ético, do ponto de vista da Lei Natural, também traz credibilidade às afirmações, pois mostra que não são opiniões individuais. Pois, os exemplos se encontram todos no livro Cristianismo Puro e Simples de C. S. Lewis.