domingo, 23 de outubro de 2016

A Mordida no Fruto Proibido

"Quando o Homem não tem mais em quem jogar a própria culpa diz: é a vontade de Deus."


Como alguém que acredita na ética pode fazer coisas que não são moralmente aceitáveis? Por exemplo, por que há pessoas reconhecidamente honestas que já colaram na prova, ou que já falaram mal de alguém por ter uma ideia política diferente, que já fizeram piada com a "desgraça" de um amigo, ou que já usaram o "jeitinho brasileiro"? Para facilitar, sejamos, supostamente, tendenciosos e discorramos sobre uma única questão. Como alguém que se diz religioso continua cometendo erros? Não à toa, condenamos esse tipo de pessoa como o "pior dos seres humanos" quando erra, uma vez que não pode contar com a ignorância como álibi. Aliás, essa atitude soou-me bem soberba agora, ou talvez oportuna. Manter esse tipo de pensamento é o mesmo que afirmar que conhecemos a verdade quando pretendemos julgar o religioso, mas que não se aplica a nós quando estamos sentados no banco dos réus. Agora já fiquei na dúvida sobre quem é o pior tipo de pessoa.

Desviando bastante: Neste artigo, o humorista Fabio Porchat mostra o quanto ficou indignado com os resultados das eleições de 2016. Ele expõe a ideia de que o povo não tem subsídios suficientes para opinar sobre quem seria o melhor governante e que, na maioria das vezes, tampouco se interessa por isso. Neste sentido, ele chama a Democracia de "burra".

Primeiro, eu gostaria de fazer uma pergunta. Ele teria escrito esse artigo se o candidato ou o partido dele tivesse vencido as eleições? Acho que não. Porém, como estou apenas supondo, nada mais justo do que especular a favor dele também. Talvez ele não tivesse escrito, mesmo assim acredito que ainda teria essa mesma opinião.

Em segundo lugar, quero fazer uma observação. Mesmo que a população fosse politicamente "inteligente", o problema que Porchat aponta não seria resolvido (já falei sobre causa e efeito aqui). Apesar de ter percebido uma falha no sistema democrático, penso que ele errou o enfoque. O ponto central não é a "ignorância" do povo, mas sim dois cruciais pressupostos sobre os quais a Democracia se baseia e que pouco foram explorados no passado recente. Sabe como é, com tantas nações lutando contra Ditaduras e com tantos interesses econômicos envolvidos, sempre deu muito "azar" a quem ousou questionar a Democracia. Perceba, por exemplo, que a palavra Democracia significa literalmente "governo do povo". E assim o é, pois enquanto na Ditadura os governantes caçam os "rebeldes", na Democracia o próprio povo sempre trata de execrar quem a questiona. No fim, todos os sistemas de governo possuem o mesmo fim, o poder. A única característica que muda é quem o detém; e de tão óbvio passa desapercebido.

Enfim, quais são os dois pressupostos da Democracia que mencionei, mas que ainda não expliquei?

Primeiro, a Democracia é apenas um sistema e, portanto, ela não é suficiente em si para habilitar e capacitar o Estado em exercê-la. A única exigência do sistema democrático é que o poder seja exercido pelo povo, independentemente da condição moral desse povo.

Segundo, a Democracia pressupõe que os membros da sociedade tenham disciplina e virtude acima da média, ou pelo menos assim o seja para a maioria que fará valer os ideais. Um movimento democrático com governantes sem disciplina e sem virtude poderá transformar-se em Ditadura (isso está acontecendo em alguns países da América do Sul, por exemplo).

Nós sempre nos esquecemos do principal componente de qualquer sistema, o Homem. Então, desconsiderando as paixões partidárias e atentando-se a artigos e opiniões como as de Fabio Porchat, por que a Democracia sempre foi tida como o sistema acima de qualquer suspeita? É importante frisar que não estou sugerindo um sistema em detrimento de outro, estou apenas falando em questionamento, em busca contínua por melhorias, que parece ter sido desacelerado quando assumiu-se o sistema democrático. Por que é aceitável que eu lute por um representante íntegro e justo na Democracia, mas é inaceitável que eu faça isso na Monarquia, por exemplo?

Como eu disse, o problema não é o sistema, nunca foi. O problema sempre foi o Homem. Os sistemas nem são reais, mas são sim uma ilusão que existe apenas na nossa mente. Basta retirarmos o Homem do Universo e todos os sistemas sumirão. Isso não significa que não sejam necessários, existem justamente porque somos o problema; úteis em conter nossas predisposições irracionais. Já falei disso aqui.

Ufa, voltando: Para responder a pergunta central, exposta no primeiro parágrafo, temos que colocar em pauta os tipos de pessoas que existem, ou pelo menos algumas delas. Quem é que está cometendo o erro? Seria um "bandido", que diz ter ideologia e crenças apenas para levar vantagem sobre alguma situação? Ou seria alguém "cego", que nem ao menos percebe os erros que comente? Poderia ser ainda alguém que tenha consciência de suas falhas, mas mesmo assim, dia após dia, continua tentando fazer a coisa certa?

Identificar o tipo de pessoa é por si só a resposta para a pergunta central. Ou seja, a questão não está relacionada a crenças e ideologias, mas sim a humanidade. Os valores e princípios são apenas as referências utilizadas para saber o que deve ser feito, o que é aceitável, qual o caminho que deve-se almejar para uma evolução pessoal. Os ideais são úteis para podermos identificar quando alguém está além ou aquém deles. Fico curioso para saber no que se transformará um mundo em que a verdade e o padrão são relativos? Um mundo em que o "depende" é mais correto que o "sim" e o "não"? Aliás, acho que este mundo já está diante dos meus olhos.

Só mais um desvio: Segundo o artigo do Porchat, a Democracia é, por enquanto, o que temos de menos pior. Essa ideia demonstra que tanto ele quanto eu temos a mesma fé. Nós temos a esperança de que um dia haverá um sistema pleno em si mesmo e à prova de seres humanos. A única diferença é que ele acredita que nós seremos capazes de criar esse sistema, mas eu não.

Voltando: Considerando que os sistemas não existem, mas são apenas devaneios de nossas mentes e que o Homem é o responsável pela transformação do mundo, começo a entender a mensagem da narrativa contada no livro de Genesis, onde é dito que o Homem corrompeu a Criação. História, inclusive, que eu soberbamente, ou oportunamente, via como um mero "conto de fadas" até alguns anos atrás, tomado-a como verdade apenas quando desejava condenar quem confessava acreditar nela, isentando-me das responsabilidades. Percebo que a mordida no "fruto proibido" foi bem mais profunda do que as aulas da escola bíblica dominical conseguem explicar.

Lembrei-me da letra de uma música de 1989, original da banda Uns e Outros.

"Missionários de um mundo pagão
Proliferando ódio e destruição
Vêm dos quatro cantos da terra
A morte, a discórdia
A ganância e a guerra...
E a guerra
Missionários e missões suicidas
Crianças matando crianças inimigas
Generais de todas as nações
Fardas bonitas, condecorações
Documentam na nossa história
O seu rastro sujo de sangue e glória
Vindo de todas as partes, indo pra lugar algum
Assim caminha a raça humana
Se devorando um a um
Gritei para o horizonte
E ele não me respondeu
E então fechei os olhos
Sua voz, assim me bateu."

domingo, 9 de outubro de 2016

O Inferno Somos Nós Outros

"Qualquer um que tenha violado um tabu torna-se tabu porque possui a perigosa qualidade de tentar os outros a seguir-lhe o exemplo."
Sigmund Freud


Conhece aquela história do marido super fiel, mas que possui uma esposa muito, muito "zelosa"? Ela vive desconfiada de seu parceiro, descarregando todo o seu ciúmes sobre ele, tratando-o como se estivesse mesmo "pulando a cerca". Um dia ele percebe que está pagando por uma divida que não tem e sem tirar "proveito" da situação de fato. Então, o confiável marido decide fazer por merecer, consuma a infidelidade.

Hoje eu darei motivo para ser considerado mentalmente preguiçoso, pois de fato não vou pensar. Eu vou transcrever o que disse alguém que possui mais crédito na esfera intelectual (interessante eu ter usado a palavra "mais", sugere que eu também tenha crédito). As palavras que serão reproduzidas constituem parte de uma entrevista com o filósofo Luiz Felipe Pondé para a revista Veja, na edição de 13 de Julho de 2011 (espantou-me esse tipo de entrevista na Veja).

Como fiquei sabendo desta matéria? Eu vi uma postagem com o vídeo abaixo que citou a entrevista. Aliás, percebam que o vídeo foi produzido pelo mesmo filósofo. Importante, sem teoria da conspiração, não fiquei sabendo antes da entrevista simplesmente porque não leio a Veja e não a leio por pura preguiça.


Desviando: Já que compartilhei o vídeo acima, aproveito para citar o trecho dele que achei mais interessante, foi quando o filósofo comparou o fascismo ao plano, sabe-se lá de quem (pertinente mencionar isso), de utilizar a escola para "orientar" as crianças sobre escolhas de sexualidade. Nunca tinha feito essa observação. Lembrei-me que, na minha época de criança, falar sobre sexualidade era um tabu. Não que isso seja necessariamente o correto, mas acabei constatando que, talvez, um tabu tenha lá sua função, o de evitar que coloquem ideias nas nossas mentes quando ainda não pensamos a respeito, ou quando ainda não ouvimos a opinião de pessoas que julgamos confiáveis (os responsáveis por nós, por exemplo).

Outro exemplo de tabu pode ser a fé (não vamos falar de religião, pois é corruptível). Dependendo do quanto você pode estar despreparado sobre esse tema, considerá-lo um tabu o protegerá de ser influenciado por alguém que tenha seus métodos de manipulação de "massas".

Ainda desviando: Já que falei de fé, tive outra lembrança. Certo dia pediram para que eu fosse claro sobre o que acredito, pois diante de tanta insatisfação com o mundo seria de se esperar que eu fosse do tipo suicida. Interessante, pois falei justamente sobre isso com minha esposa (psicóloga) recentemente. Eu disse a ela que, para resolver um problema insolúvel, eu acredito ser do tipo que se suicidaria, mas que não mataria. Ela respondeu, "isso você faz mesmo". O verbo fazer no presente bombardeou minha mente de significados mais rápido do que eu pude citar apenas um deles.

Enfim, quais as minhas convicções? Acredito que por mais que eventualmente eu consiga ter alguns sucessos, eu nunca conseguirei ser de fato uma pessoa boa (já falei da escala da bondade aqui). A humanidade nunca vai melhorar no sentido de ser. Nos milênios que se passaram nem sequer mostramos essa tendência. Penso que a transformação só poderá vir de fora. O ponto é, como resolver esse "pessimismo" ao invés de afogar-me em uma banheira? Sugiro essa leitura, mas atendendo ao pedido por clareza, eu escolhi acreditar no único Deus que, ao invés de pedir que nós O alcançássemos através de nossas forças, ofereceu vir nos buscar. Justamente por saber de nossas limitações, Ele apareceu por aqui como pessoa pedindo que apenas confiássemos Nele. Eu nunca tive uma experiência sobrenatural que justificasse a minha escolha, apesar de não conseguir explicar racionalmente algumas coisas, por isso percebi que não fui convencido pelos feitos excepcionais, mas sim pelas palavras. A promessa por uma realidade transformada, assim como quem acorda de um pesadelo pela manhã, é o que mantém-me longe da banheira. Descobri que o plano não sou eu, mas que apenas faço parte, mesmo quando há favores aparentemente em meu benefício, pois se a finalidade fosse a minha pessoa, eu estaria apresentando-me como deus, mas não falando Dele na terceira pessoa. Aliás, já falei exatamente disso aqui.

Voltando tudo: Acabo de perceber que, apesar de não ter fugido ao tema, pensei demais. Há quem possa dizer que expus minha alienação, como quem solta os micos de circo. Prolonguei-me por um assunto geralmente considerado um tabu e isso pode sugerir uma tentativa de exercer influencia. Enfim, transcrevo as palavras de alguém letrado e que, por isso, consegue convencer melhor de que não está querendo convencer ninguém de nada. A única ressalva é que, diferente dele, eu acredito que o tema transcenda a filosofia.

"Veja: Por que a política não pode ser redentora?

Pondé: O cristianismo, que é uma religião hegemônica no Ocidente, fala do pecador, de sua busca e de seu conflito interior. É uma espiritualidade riquíssima, pouco conhecida por causa do estrago feito pelo secularismo extremado. Ao lado de sua vocação repressora institucional, o cristianismo reconhece que o homem é fraco, é frágil. As redenções políticas não têm isso. Esse é um aspecto do pensamento de esquerda que eu acho brega. Essa visão do homem sem responsabilidade moral. O mal está sempre na classe social, na relação econômica, na opressão do poder. Na visão medieval, é a graça de Deus que redime o mundo. É um conceito complexo e fugidio. Não se sabe se alguém é capaz de ganhar a graça por seus próprios méritos, ou se é Deus na sua perfeição que concede a graça. Em qualquer hipótese, a graça não depende de um movimento positivo de um grupo. Na redenção política, é sempre o coletivo, o grupo, que assume o papel de redentor. O grupo, como a história do século 20 nos mostrou, é sempre opressivo.

Veja: Em que o cristianismo é superior ao pensamento de esquerda?

Pondé: Pegue a ideia de santidade. Ninguém, em nenhuma teologia da tradição cristã – nem da judaica ou islâmica –, pode dizer-se santo. Nunca. Isso na verdade vem desde Aristóteles: ninguém pode enunciar a própria virtude. A virtude de um homem é anunciada pelos outros homens. Na tradição católica – o protestantismo não tem santos –, o santo é sempre alguém que, o tempo todo, reconhece o mal em si mesmo. O clero da esquerda, ao contrário, é movido por um sentimento de pureza. Considera sempre o outro como o porco capitalista, o burguês. Ele próprio não. Ele está salvo, porque recicla lixo, porque vota no PT, ou em algum partido que se acha mais puro ainda, como o PSOL, até porque o PT já está meio melado. Não há contradição interior na moral esquerdista. As pessoas se autointitulam santas e ficam indignadas com o mal do outro."

Essa entrevista de 2011 está mais atual do que parece. Eu vi recentemente um líder de esquerda comparar-se a Jesus Cristo (o Deus que mencionei anteriormente).

"Veja: O senhor acredita em Deus?

Pondé: Sim. Mas já fui ateu por muito tempo. Quando digo que acredito em Deus, é porque acho essa uma das hipóteses mais elegantes em relação, por exemplo, à origem do Universo. Não é que eu rejeite o acaso ou a violência implícitos no Darwinismo – pelo contrário. Mas considero que o conceito de Deus na tradição ocidental é, em termos filosóficos, muito sofisticado. Lembro-me sempre de algo que o escritor inglês Chesterton dizia: não há problema em não acreditar em Deus; o problema é que quem deixa de acreditar em Deus começa a acreditar em qualquer outra bobagem, seja na história, na ciência ou sem si mesmo, que é a coisa mais brega de todas. Só alguém muito alienado pode acreditar em si mesmo. Minha posição teológica não é óbvia e confunde muito as pessoas. Opero no debate público assumindo os riscos do niilista. Quase nunca lanço a hipótese de Deus no debate moral, filosófico ou político. Do ponto de vista político, a importância que vejo na religião é outra. Para mim, ela é uma fonte de hábitos morais, e historicamente oferece resistência à tendência do Estado Moderno de querer fazer a cura das almas, como se dizia na Idade Média – querer se meter na vida moral das pessoas.

Veja: Por que o senhor deixou de ser ateu?

Pondé: Comecei a achar o ateísmo aborrecido, do ponto de vista filosófico. A hipótese de Deus bíblico, na qual estamos ligados a um enredo e um drama morais muito maiores do que o átomo, me atraiu. Sou basicamente pessimista, cético, descrente, quase na fronteira da melancolia. Mas tenho sorte sem merecê-la. Percebo uma certa beleza, uma certa misericórdia no mundo, que não consigo deduzir a partir dos seres humanos, tampouco de mim mesmo. Tenho a clara sensação de que às vezes acontecem milagres. Só encontro isso na tradição teológica."

Assumindo o risco de ser simplista demais, segundo Sartre, "o inferno são os outros", e eu passei a enxergar-me em todos eles.