quinta-feira, 26 de novembro de 2015

O Que a Cara Nunca Diria Para a Coroa?

"Enquanto houver você do outro lado, aqui do outro eu consigo me orientar."


Imagine que desejemos tomar um grupo de pessoas garantindo que pelo menos duas delas façam aniversário no mesmo mês. Qual o número mínimo de pessoas necessário para atender a essa condição? O primeiro ponto é observar que um ano compreende doze meses. Se o grupo for formado por duas pessoas, elas podem fazer aniversário no mesmo mês ou em dois meses diferentes cada uma. Então, com apenas duas pessoas não conseguimos ter a certeza que desejamos. Se o grupo for formado por seis pessoas, algumas delas podem fazer aniversário no mesmo mês, ou cada uma delas pode fazer aniversário em seis meses diferentes, ou seja, mais uma vez não conseguimos ter a certeza que desejamos. Porém, se o grupo for formado por no mínimo treze pessoas, então conseguiremos ter a certeza de que pelo menos duas delas fazem aniversário no mesmo mês, ou seja, no caso mais extremo, doze delas fazem aniversário em meses diferentes cada uma e a décima terceira repetirá algum mês.

Esse mesmo raciocínio funciona para a retirada de cartas de um baralho que contenha 52 cartas no total. Quantas retiradas de carta são necessárias para garantir que em algum momento uma carta irá se repetir? A resposta fica mais fácil se imaginarmos que todas as cartas estão ordenadas e que cada uma retirada volta para o fundo do baralho. Após retirarmos todas as 52 cartas, apenas quando fizermos a quinquagésima terceira retirada uma carta se repetirá, no caso a primeira carta do baralho novamente.

Conseguimos ter um vislumbre de um limite mínimo. Agora vamos usar o mesmo baralho para tentar avaliar um limite máximo. Se nós ficarmos infinitamente retirando cartas do baralho (uma situação um pouco pior do que aqueles dias chuvosos na praia), quantas vezes cada carta será retirada? Sempre que algumas cartas já tiverem sido retiradas milhões, bilhões, trilhões, "zilhões" de vezes, nós ainda estaremos suficientemente longe do "fim" do teste, de forma que todas as cartas terão sua chance de serem retiradas incontáveis vezes. Resumindo, cada carta será infinitas vezes retirada do baralho.

Vamos começar a "fritar" alguns neurônios? Imagine que o Universo seja infinito no tempo, seja um Universo estacionário que sempre existiu, ou seja um Universo cíclico confinado entre infinitas repetições de Big-Bang e de Big-Crunch. Se considerarmos que cada possibilidade de acontecimento equivale a retirada de uma carta do baralho, em um Universo infinito, quantas vezes cada carta já foi retirada? Nesse caso, quantas vezes eu já escrevi esse mesmo texto? Quantas vezes você já o leu? Quantas vezes eu já existi e quantas vezes eu nem sequer fui imaginado? Quantas vezes a minha vida deu certo e quantas vezes eu passei por aqui apenas por alguns dias? Quantas vezes eu ganhei e quantas vezes eu perdi? Quantas vezes eu estive do lado de cá e quantas vezes eu estive aí no seu lugar? Aliás, por que eu estou aqui e você está aí?

Desviando: Claro que para nossas aproximações estamos considerando um Universo, ou diversos Universos infinitos no tempo. As melhores teorias que temos hoje já defendem que o tempo não é infinito, mas teve um começo e terá um fim. Antes disso e depois disso, nada. (Ufa, meu cérebro estava entrando em "tilt"). Uma boa referência para as teorias de que o tempo tem um começo e um fim é o "Universo em uma casca de noz" de Stephen Hawking.

Voltando: Pensando nestes limites mínimos e máximos, começo a questionar-me sobre o que é parte e o que é tudo. Por exemplo, que número é 0,99999... (infinitos noves após a vírgula)? Vamos fazer algumas contas? Vamos falar que A é igual a 0,99999... (infinitos noves)

A = 0,99999...

Se multiplicarmos A por dez, teremos:

10 x A = 9,99999...

Se subtrairmos A de 10 vezes A teremos:

9 x A = 9

Que número satisfaz essa condição? O número 1. Então, A é igual a 1. Porém, A também é igual a 0,9999.... Eita, infinito é igual a inteiro? Onde estão as fronteiras?

Ainda falando de matemática, uma circunferência pode ser considerada como um polígono de N lados, se N for um número infinito. Ou seja, uma circunferência é um polígono de infinitos lados. Outro exemplo? Uma reta pode ser considerada como um arco de circunferência com raio infinito. Mais um exemplo, será que duas retas paralelas e distintas podem se encontrar em um ponto no infinito?

Quais são os limites? O que sou eu e o que é você? O que é meu e o que é seu? O que é a minha vida e o que é a sua vida? Quem separou os lados? Quem definiu que eu teria a vida que tenho e que você teria a vida que tem? Por que alguns podem e outros não podem? Por que alguns tem e outros não tem? Por que alguns são e outros não são? Felizmente, nunca precisaremos dessas respostas, mas elas tem sua relevância, para nos lembrarmos de que são bem poucos os motivos pelos quais podemos nos orgulhar.

Desviando: Na casa em que moro, o quintal é separado da cozinha por uma porta de vidro. Lembro-me que, logo que nos mudamos, nos confundíamos se ela estava aberta ou fechada, inclusive nossa cadelinha de estimação. Um dia a cadelinha foi atravessar a porta, se confundiu e deu de cara com o vidro. Ela se assustou e não entendeu nada por alguns segundos. Depois desse evento, vimos ela testar algumas vezes, com a pata, se a porta estava mesmo aberta quando queria passar. De vez em quando ela ainda testa. Eu, mais orgulhoso, não faço o teste, por isso as vezes ainda acerto a porta pensando que ela está aberta. Então ponderei, se fico atrapalhado com um limite físico transparente, não é de se admirar que eu me confunda com fronteiras que não se podem definir.

Voltando: Podemos aprender muito com uma moeda. A "cara" nunca conseguiu olhar diretamente para a "coroa", talvez cada uma delas até duvide que a outra exista. Elas jamais conseguirão definir ou entender o limite que as separa. Porém, nenhuma delas jamais deixaria a outra em alguma enrascada. Já pensou se, quando a "coroa" estivesse diante de um perigo, a "cara" gritasse lá do outro lado, "se vira".

Antes de terminar gostaria de recomendar as palavras de Roslin, que mora para lá da linha do Equador.


quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Algumas Perguntas Mostram que o Mundo não se Moveu

"Insanidade é continuar fazendo sempre a mesma coisa e esperar resultados diferentes."
Albert Einstein


Quando eu ouço falar de esfinge, lembro-me de duas coisas. Primeiro, da esfinge de Gizé no Egito, construída em torno de 4.500 anos atrás e com aproximadamente 75 metros de comprimento, 19 metros de largura e 20 metros de altura. Segundo, lembro-me da esfinge do programa Rá-Tim-Bum da TV Cultura, que por volta do ano de 1990 apresentava um enigma diferente diariamente (enigmas para crianças entre 5 e 10 anos).

A esfinge é uma imagem icônica, com corpo de leão e cabeça de humano. Há algumas também com cabeça de falcão. Esse ser místico era presente tanto na cultura egípcia quanto na mitologia grega. Para os egípcios ela era um guardião, útil para demonstração de poder. Para os gregos, ela era um demônio, símbolo de destruição e má sorte.

Na tragédia grega do dramaturgo Sófocles, cujo título é "Édipo Rei" (o mesmo que deu origem ao Complexo de Édipo na psicanálise de Freud), o próprio Édipo encontra-se com uma esfinge na entrada de Tebas e ouve a famosa frase, "decifra-me ou devoro-te". Qualquer um que passasse pelo ser místico teria de enfrentar um enigma e, em caso de fracasso, seria estrangulado. Esse foi o destino de todos os desafiados, mas não o de Édipo. Ele solucionou o enigma, a esfinge acabou se suicidando e o herói da história tornou-se um marco, a personificação da separação entre práticas obsoletas e novas, práticas ultrapassadas e modernas. E é justamente esse ponto de separação entre o "olhar" antigo e o novo que nos interessa, especificamente representado por um momento de entendimento, um momento de revelação, a solução de um "enigma".

Alguns dias atrás, eu via um documentário na TV quando aconteceu um momento "Eureka!". Foi um daqueles instantes em que uma única frase deixa tudo claro, enquanto carrega um conteúdo tão grande que nos faz precisarmos de tempo para estruturar tudo de forma compreensível, inclusive para nós mesmos. Por enquanto, eu vou omitir o nome do documentário, o "enigma" e a resposta. Eu quero tentar fazer você sentir o momento "Eureka!". Eu sei que é bem difícil de dar certo e sei também que é bem possível que o enigma seja, ou fosse, um "mistério" particular. De qualquer forma, como faltam-me ideias para novos textos, a tentativa já será suficiente. Aliás, pensando nisso agora, questiono-me, para quem escrevo? Para mim ou para você? Que pergunta capciosa.

Desviando: "Quem és tu? - perguntou o principezinho - Tu és bem bonita...
Sou uma raposa - disse a raposa.
Vem brincar comigo. - propôs ele - Estou tão triste...
Eu não posso brincar contigo. - disse a raposa - Não me cativaram ainda.
Ah! Desculpa. - disse o principezinho - Mas após refletir, acrescentou:
O que quer dizer 'cativar'?
(...)
É algo quase sempre esquecido. - disse a raposa - Significa 'criar laços'...
Criar laços?
Exatamente. - disse a raposa - Tu não és nada para mim senão um garoto inteiramente igual a cem mil outros garotos. E não tenho necessidade de ti. E tu também não tem necessidade de mim. Não passo a teus olhos de uma raposa igual a cem mil outras raposas. Mas, se tu me cativas, nós teremos necessidade um do outro. Serás para mim único no mundo. Eu serei para ti única no mundo...
(...)
Mas a raposa retornou a seu raciocínio.
(...) Vês, lá longe, os campos de trigo? Eu não como pão. O trigo para mim não vale nada. Os campos de trigo não me lembram coisa alguma. E isso é triste! Mas tu tens cabelos dourados. Então será maravilhoso quando me tiveres cativado. O trigo, que é dourado, fará com que eu me lembre de ti. E eu amarei o barulho do vento no trigo... - A raposa calou-se e observou por muito tempo o príncipe:
Por favor... cativa-me! - disse ela.
(...)
E voltou, então, à raposa:
Adeus... - disse ele.
Adeus - disse a raposa. - Eis o meu segredo. É muito simples: só se vê bem com o coração. O essencial é invisível aos olhos."
O Pequeno Príncipe

Voltando: Por que nos relacionamos com familiares, com amigos, cônjuges e filhos de uma forma tão cativante? Quando criança, precisamos de nossos pais, pois eles suprem nossas necessidades e nos protegem. Então crescemos, nos tornamos independentes, mas continuamos a manter nossos relacionamentos. Seria algum senso de reciprocidade ou dívida? Acho que não, pois também criamos novos relacionamentos, com pessoas diferentes, sem um passivo que justifique a nova amizade. Eis outra dúvida, além de manter, por que criamos relacionamentos? Seria por interesse? Já imaginou você conhecer uma pessoa no trabalho, no parque, no shopping, na faculdade e a primeira pergunta que você ouvisse ou fizesse fosse, "antes de iniciarmos uma conversa ou desenvolvermos alguma interação que possa, eventualmente, culminar em amizade, responda-me por que preciso de você"? Ou já imaginou se após crescer e se tornar independente você dissesse, "obrigado pai, obrigado mãe, mas não me procurem mais, vocês não são mais necessários"?

Já adianto logo, eu não sei porque criamos ou cultivamos relacionamentos (cultivar passa uma ideia de frutificar), mas eu sei o que envolvem. Um relacionamento envolve lembranças boas, lembranças ruins, aprendizado, ajuda, abandono, risos, choros, abraços, apoio, decepção, perdão, evolução, compreensão, grupo etc. Inclusive, os relacionamentos ruins são tão importantes quanto os relacionamentos bons, os momentos ruins são tão importantes quanto os bons. Tudo tem nos transformado no que somos hoje. Relacionamento envolve identidade. Não é a toa que a genealogia é importante para nós. De onde viemos e, portanto, quem somos? Até criamos um ditado, "diga-me com quem andas e te direi quem tu és". Então, um relacionamento não pode começar com a pergunta "por que você seria necessário?". Isso é interesse. Interesses são supridos, substituídos e descartáveis. Interesse não envolve ser, mas envolve ter.

E é aqui que entra o documentário que vi, o "enigma" e a resposta que "piscou" na minha mente. O documentário foi na Philos TV e chama-se "À procura da religião" (não sei se religião devesse ser procurada, mas...). Entrevistando um religioso, o produtor do documentário fez a seguinte pergunta, "por que meus filhos precisam de Deus?". O interrogado usou muitas palavras indiscutivelmente importantes para ele, mas vagas. Eu não tenho dúvida de que aquele religioso sabia, para si, porque precisa de Deus, mas ele não conseguiu dar uma resposta válida para mim. Mesmo assim, foi naquele instante que eu achei a minha resposta, como se eu pudesse levantar a mão e dizer, "eu sei, eu sei, pergunta pra mim, pra mim". Pois bem, não há nenhum tipo de interesse que justifique precisarmos de Deus. Tentar encontrar um interesse para decidir se buscaremos Deus ou não é o mesmo que tentar responder, "por que eu preciso de você?". Responda-me, por que eu preciso de você? É assim que começamos nossos relacionamentos, com "o que eu vou ganhar"?

Buscar a Deus não significa que seremos invulneráveis a sofrimentos e teremos todas as necessidades supridas, assim como não buscá-lo não implica em uma vida de sofrimento e fracassos. O próprio Deus já disse que o sol e a chuva vem para todos.

"Vocês ouviram o que foi dito: 'Ame o seu próximo e odeie o seu inimigo'. Mas eu lhes digo: Amem os seus inimigos e orem por aqueles que os perseguem, para que vocês venham a ser filhos de seu Pai que está nos céus. Porque ele faz raiar o seu sol sobre maus e bons e derrama chuva sobre justos e injustos."
Mateus 5.43-45

Desviando: Se você já leu outros textos anteriores, deve ter entendido que nos relacionamos com Deus quando o vemos na face das outras pessoas e quando o reconhecemos em nós. O que você seria capaz de fazer para Deus ao vê-lo ali, no rosto de quem senta-se ao seu lado no ônibus tentando achar uma rua que não conhece, ou no rosto de quem te atende bem devagar no caixa de um supermercado porque não consegue se familiarizar com o sistema informatizado, ou no rosto daquela pessoa no carro ao lado esperando uma brecha para poder entrar na estrada? O que Deus faria se apontassem uma arma para Ele e pedissem o celular, o carro, o dinheiro? (Essa última é difícil, hein?).

Voltando: Portanto, o ponto não é o que vamos ganhar com um relacionamento, mas o que vamos nos tornar. Qual identidade vamos construir se colocarmos interesses nesse balanço? "Diga-me com quem andas e te direi quem tu és", lembra? Tentar responder a pergunta "por que eu preciso?" é medieval, é o que o nome do documentário dizia, "procurar uma religião". Assim como fez Édipo, a personificação da evolução em função de uma mudança de mentalidade, nós podemos fazer o mundo girar de fato.

Curiosidade: o enigma que Édipo enfrentou foi, "que criatura pela manhã tem quatro pés, ao meio-dia tem dois, e à tarde tem três?"; e esfinge deriva do grego sphingo que significa "cerrar", "apertar", "estrangular".

sexta-feira, 6 de novembro de 2015

Acho que Trocaram a Minha Sombra

"Quando eu me pergunto quem sou eu, sou o que pergunta ou o que não sabe a resposta?"
Geraldo Eustáquio


Esses dias eu vi uma reportagem na TV sobre a geração X. Curioso, eu fui pesquisar sobre o assunto e tomei o que costumo chamar de "choque de realidade" (isso acontece muito também nas segundas-feiras pela manhã).

Geração X é uma expressão usada para definir as pessoas que nasceram após o Baby Boom (explosão populacional que aconteceu pós II Guerra Mundial), ou seja, a geração X é a descendência dos baby boomers. Embora não haja precisão em relação ao período que corresponde a geração X, geralmente, são incluídas as pessoas nascidas a partir do início dos anos 1960 até no máximo o início dos anos 1980, sem ultrapassar 1981 (opa, estou no pacote).

Nas palavras do escritor norte-americano John Ulrich, contemporâneo dos baby boomers e da geração X, "este último grupo consiste de pessoas jovens, sem identidade aparente, que enfrentariam um mal incerto, sem definição, um futuro hostil. Enfrentariam um futuro pós-guerra, um tempo de incertezas e de guerra fria, de polarização entre o bem e o mal, entre Estados Unidos da América e União Soviética."

A geração X cresceu, foi hippie, teve seus ideais, esqueceu-se deles e foi para o mercado capitalista. Essa geração inventou o computador pessoal, a internet, o celular, a impressora, o e-mail e viu seu mundo mudar do toca-discos para o MP3. Grande parte da geração chegou aos 30 ou 40 anos e descobriu que um apartamento, que irá pagar até os 60 anos de vida, lhe custará um preço muito alto, e não estamos falando apenas de dinheiro. Os filhos crescem, os baby boomers se vão e os sonhos se engavetam.

O choque de realidade me ocorreu especificamente quando, em minhas pesquisas na internet, li o seguinte trecho: "Hoje, é cada vez mais comum ver estes profissionais 'chutando o balde', pela internet, inclusive. Há vários blogs e canais do YouTube de profissionais até então bem sucedidos, com cargos muito bem remunerados e carreiras consolidadas de mais de 10 anos em uma grande multinacional, que largam tudo para pintar quadros, estudar fotografia, gastronomia, aquilo que os fazem felizes" (opa, estou no pacote de novo, se não pela coragem, ao menos pelas motivações).

Até que ponto o "eu" não passa da manifestação de uma tendência? Esse "meu" sentimento de que o mundo está de ponta-cabeça e essa vontade de tentar entender o valor da vida que estamos levando parecem não ser nada além de comportamentos comuns a uma geração, apenas consequências da história da humanidade. Olhos abertos? Acordado para a realidade? Insatisfação? Consciência? Loucura? Uma geração inteira pode estar vivendo tudo isso. Então, o que sou "eu" e o que é "eles"? O "eu" é algo individual, ou é coletivo? Ou ainda, será que o "eu" é puramente orgânico e consequentemente comum?

Desviando: Eu tive uma colega de estudo, no ensino médio, que era muito quieta, reservada, com poucos amigos. Certo dia ela apareceu transformada, capaz de conversar com o colégio inteiro, muito extrovertida, extrapolando certo limite, segundo meu julgamento. Soubemos que ela procurou um especialista e foi diagnosticada com algum tipo de depressão. Ela foi medicada e se transformou. Lembro-me que discutimos na época, quem era ela afinal? A pessoa reservada, ou a pessoa exageradamente extrovertida? O que definia o "ela"? O medicamento prescrito a trouxe para o seu equilíbrio orgânico e psicológico, tornando-a o que ela seria se nunca tivesse sido diagnosticada com depressão? Ou a medicação a retirava do seu estado fundamental, de reservada e retraída, para transformá-la em outra pessoa que "naturalmente" ela jamais seria? Quando falamos de bebida ou drogas ilícitas, fica fácil definir o que é a pessoa e o que não é, o limite é determinado pelo período que o organismo fica sob o efeito químico da droga. No entanto, quando falamos de medicamentos, que em teoria tem a função de trazer uma pessoa ao seu estado "normal", podemos ficar na dúvida de quem é a pessoa. Ela é o antes ou o depois do medicamento?

Voltando: Quando falamos de raças de cachorro, concordamos como cada uma delas apresenta comportamentos particulares. Umas mais calmas, outras mais agitadas, algumas previsíveis, outras selvagens, umas inteligentes, outras independentes etc. Porém, quando falamos de humanos, resistimos a acreditar que nossos comportamentos possam também ser ditados por nossa genética. Lutamos contra a ansiedade, o medo, a extroversão, a timidez, o nervosismo, o descaramento, a depressão etc. Então, somos medicados, ou nos medicamos. Qual o limite entre uma patologia e uma característica genética? A medicação serve para nos tornarmos o que realmente somos, ou para esconder o que não aceitamos ser? Nesse sentido, o "eu" pode ser construído?

Certa vez ouvi falar do Teste de Turing, que foi  introduzido por Alan Turing em seu artigo de 1950, "Computing Machinery and Intelligence", mas eu não vou tentar explicá-lo (mais uma vez iria me atrapalhar). Ao invés disso vou colocar o trecho de um dialogo que lida com o assunto.

"Nathan: Sabe o que é o teste de Turing?
Caleb: É quando um humano interage com um computador e se ele não descobrir que está interagindo com uma máquina, o teste terá sido bem sucedido.
Nathan: E o que significa passar no teste?
Caleb: Que o computador tem inteligência artificial.
(...)
Nathan: O teste real é mostrar para você que ela é um robô e depois ver se você ainda sente que ela tem uma consciência.
(...)
Caleb: Qual é outra forma de testar um computador que joga xadrez? Você pode jogar com ele, para ver se ele joga bem, mas isso não demonstra que ele sabe que está jogando xadrez. E não diz se ele sabe o que é xadrez. Conseguir diferenciar essas duas coisas é o teste de Turing que você quer que eu faça."

Ex-Machina (2015) 

Parece-me que temos um bom método para identificar uma consciência. O que ainda nos falta é a definição do "eu".

Sem pensar muito nestes testes elaborados, nós tendemos a diferenciar o que se espera do que não se espera possuir consciência segundo uma classificação de "natural" contra artificial. Por exemplo, cérebro versus circuitos, sangue versus fluídos lubrificantes, coração versus baterias, olhos versus câmeras. No entanto, nos esquecemos de que tudo não passa de palavras que, de tanto terem sido ditas, passaram a apontar para o objeto e não mais para o conceito (já mencionei algo aqui). Conceitualmente não há diferença, poderíamos pensar as partes do corpo humano como elas de fato são, peças. Software refere-se apenas a programas de computador que foram criados por nós e que processam cálculos binários, ou conceitualmente pode-se afirmar que existem softwares em execução dentro do cérebro de cada um de nós? Uma vez que a "máquina" não nasce pronta, mas ela se desenvolve ao longo de anos, ela deve ser chamada de organismo? Quão artificiais somos nós? E se um dia descobríssemos que seres metálicos, com limitados graus de movimento, estabelecidos sobre circuitos elétricos, com fluidos lubrificantes bombeados entre suas juntas e cabos conectados a baterias que energizam todo o sistema, foram nossos criadores, nossos projetistas, nos deram a vida? Que invertida no jogo, hein? Quão grande seria o tombo de um deus ao se descobrir criatura. Uma verdadeira crise existencial ao se perceber como uma invenção e não um inventor? Os conceitos não seriam alterados, mas muito provavelmente iríamos querer trocar as palavras.

Enfim, eu não sei se o "eu" é individual ou se é coletivo, se é orgânico ou se é algo construído, se é a manifestação de uma tendência, ou talvez apenas um conjunto de comportamentos comuns. Quem sabe a consciência nem mesmo exista, tudo não passe de uma palavra inventada apenas tentando nomear uma percepção. O que eu sei é que eu tenho algumas lembranças, principalmente de um garoto e da vida que ele levava. Lembro-me bem da família e dos amigos dele, da diversão e das responsabilidades. Lembro-me como ele se comportava em cada situação e como ele era reconhecido pelas pessoas. Lembro-me bem da vida que ele teve. Sei o que ele gostava e o que detestava, quais eram os poucos momentos de coragem e os seus medos mais fortes. Eu sei o que ele queria da vida, quais eram os seus objetivos e como ele enxergava o mundo. Eu sei quem ele foi e ele sabia quem ele era. Porém, o tempo passa e as lembranças vão desvanecendo, os fatos vão ficando cada vez mais longe, dia a dia. Em determinando momento a distância entre o hoje e o ontem fica tão grande que a história parece ter sido de outra pessoa.

Desviando: Há uns 25 ou 30 anos atrás, lembro-me de interagir bastante com minha sombra, divertia-me muito com ela. Eu brincava com a variação das dimensões em função do ângulo da luz, fazia imagens de animais, simulava uma luta de boxe (eu sempre vencia por pontos), gostava de ver como ela se movia de acordo com os meus movimentos, procurava me reconhecer nela etc. Enfim, eu era bastante intimo da minha sombra. Ela era praticamente um amigo imaginário. Recentemente, dei conta que em algum momento aquele relacionamento foi esquecido. Como assim? Há quanto tempo não reparo na minha sombra? Posicionei-me próximo a uma parede, acendi uma luz e outro choque de realidade. Aquela não era a minha sombra, nem de longe. Lembro-me dela bem menor, menos arqueada, com largura mais proporcional a altura, mais elástica e capaz de saltos e movimentos rápidos. Definitivamente, alguém trocou a minha sombra.

Voltando: O relevante não é a personagem que se conheceu, mas aquela que não se conhece, tampouco a pergunta correta é "quem sou eu?".  Se eu já não me reconheço e o que vejo é comum a uma espécie, a uma geração, a um grupo, então a pergunta correta é "o que em mim é exclusivamente eu?".