terça-feira, 18 de agosto de 2015

Sem Palavras...

"Uma criança, cega de nascença, só sabe de sua cegueira se alguém lhe conta."
Stephen King

A Coréia do Norte é um país do leste asiático, uni partidário, sob uma frente liderada pelo "Partido dos Trabalhadores da Coreia" e com uma população estimada em torno de 24 milhões de pessoas (informação de 2009). Oficialmente, a Coréia do Norte é uma república socialista, considerada pelo mundo como uma ditadura totalitarista stalinista desde 1955, a partir do governo de Kim II-sung, praticamente isolada do resto do mundo, devido a um embargo econômico em função de sua insistência em realizar testes com armas nucleares.

Alguns analistas descrevem o governo da Coréia do Norte como uma "ditadura hereditária", com um forte culto de personalidade organizado em torno de Kim II-sung, seu filho Kim Jong-il (ambos falecidos) e agora seu neto Kim Jong-un. Por exemplo, Kim II-sung é considerado presidente eterno mesmo depois de morto. A perpetuação desse culto a personalidade só é possível através de um controle sobre vários aspectos da cultura do país e da expressão política. Os partidários que se desviam da linha do governo ficam sujeitos a "reeducação" em campos de trabalho. Os que se reabilitam voltam a sociedade, os que não se reabilitam... (não consegui informação sobre eles).

A mídia da Coréia do Norte é uma das mais controladas no mundo, se não a mais controlada, com todas as informações internas e externas passando pelo crivo da censura. Apenas informações e publicações que favoreçam o regime e que cultuem os líderes são permitidas, incluindo relatos constantes das "sublimes" atividades diárias de Kim Jong-un. Por exemplo, o acesso a internet na Coréia do Norte é inteiramente proibido. Não diferente, a literatura e as artes são também todas controladas pelo governo. Por exemplo, a maioria das músicas produzidas cultuam o "grande" líder.

Para termos alguma noção do que estamos falando, circulou um vídeo na internet sugerindo que a Coreia do Norte foi campeã da Copa do Mundo de 2014 no Brasil, com goleadas de 4 a 0 sobre os Estados Unidos e 7 a 0 sobre o Japão, sendo que a final seria disputada contra Portugal de Cristiano Ronaldo. O vídeo incluiu imagens dos jogos que nunca existiram, inclusive a imagem de Kim Jong-un em um telão montado em uma praia brasileira, sob aplausos de torcedores das mais variadas nacionalidades (link para a matéria). A coisa é tão surreal que eu desconfiei. Procurei muito na internet, mas tenho que confessar que não consegui concluir se o vídeo é falso ou se é mesmo uma estratégia de controle do governo norte-coreano. Encontrei informações afirmando as duas coisas.

Por que o governo norte-coreano faz tudo isso? Simples, para controlar as pessoas viabilizando o regime totalitário do governo. Nesse caso, como as pessoas poderiam escapar? Se quiséssemos "acordá-los", o que diríamos para eles? O que pensariam de nós se passássemos a falar coisas que não fazem parte da única realidade que eles conhecem? Se imagine vivendo naquele país, como você saberia que está sendo controlado? Como você conseguiria perceber que as informações que chegam até você são manipuladas? São as únicas que chegam. Como saber que o todo é somente parte e ainda uma parte bem questionável?

Desviando: Marcelo Gleiser em seu livro "A Dança do Universo" diz o seguinte: "Se nosso cérebro, e, portanto, o modo como pensamos, é produto do ambiente em que ele funciona, será que podemos construir uma visão 'pura' do mundo? Em outras palavras, será que podemos transcender a limitação de sermos 'criaturas do mundo', de modo a construir uma visão realmente completa, sobre-humana, da realidade? Ou será que estamos aprisionados dentro de nossos próprios mecanismos racionais? Parece que temos de aceitar o fato de que nossa percepção da realidade é realmente limitada."

Voltando: O nosso mundo é diferente do mundo norte-coreano? Quem decide o que vai ser noticiado? Quem decide o que vai ser publicado? Quem decide que tipo de filme será produzido? De onde vem os assuntos discutidos nas rodas entre amigos? Quem colocou na nossa cabeça o padrão de vida a ser buscado? Por que estudamos? Por que trabalhamos? Por que nos casamos? Por que queremos ter filhos? Por que queremos comprar uma casa? Por que queremos ter sucesso profissional? De onde vieram todos esses padrões? Como podemos garantir que todas as informações que são bombardeadas sobre nós, dia a dia, é o todo? Ou por que vivemos como se fosse o todo?

"A vida que me ensinaram como uma vida normal / Tinha trabalho, dinheiro, família, filhos e tal / Era tudo tão perfeito se tudo fosse só isso"
Kid Abelha

Desviando: Lembrei-me daquela questão sobre o tráfico ilegal de drogas, ou sobre produtos piratas etc. Quem é o culpado por todas as vidas que se perdem e que morrem para viabilizarem os mercados ilegais? O criminoso que disponibiliza o produto ilegal, ou o consumidor que viabiliza o mercado?

Existe um filme que se chama "Precisamos falar sobre Kevin" de 2011. É uma história fictícia, sobre um garoto que invade sua escola e mata todos os colegas com arco e flechas. O filme retrata toda a vida do garoto dentro e fora de casa, todos os seus relacionamentos, tudo o que ocorreu até chegar aquele fatídico ponto e tudo o que ocorre a partir daquele dia. O filme parece um ensaio, tentando entender como e por que esse tipo de coisa pode ocorrer. O viés do filme é psicológico, retrata justamente o interesse que as pessoas tem pelo horror, pelo que é degradante. Para minha "vergonha", em determinado momento do filme, o protagonista se dirige ao telespectador e pergunta se estaríamos interessados no filme se ele, o protagonista, fosse uma pessoa modelo (não com essas palavras). Já vimos algo parecido? Soa familiar? Alguma semelhança com a grande audiência de programas jornalísticos ou reportagens sensacionalistas, ou com recordes de bilheteria para filmes cheios de intrigas, traição, ódio, vingança, destruição e morte?

Voltando: Apesar de estar parecendo, eu não estou querendo falar de teorias da conspiração, ou de qualquer plano megalomaníaco para conquistar o mundo, tampouco estou tentando falar que devemos sair as ruas com cartazes e faixas, ou mesmo pegar em armas para promover a queda de algum sistema. Eu estou querendo falar das mensagens subliminares, das coisas "pequenas", das coisas sutis, que justamente por serem assim entram na nossa mente sem percebermos. Coisas nas quais nos tornarmos, das quais não conseguimos escapar, porque são as únicas realidades que conhecemos. Coisas que são o padrão que nos ensinam, que nos sugerem. As ideias que temos sem saber de onde vem e por isso acreditamos que são o todo.

Por que é tão natural e compreensível que uma pessoa magoada nunca mais olhe no rosto de quem a magoou? Por que é tão natural "engolir" grosserias só porque estamos em uma posição hierárquica desfavorecida? Por que é natural ser grosseiro quando a hierarquia nos favorece? Por que é tão natural o mercado ser selvagem e termos que ser feras para termos sucesso? Por que é tão natural acreditar que está tudo bem contanto que tudo esteja além do portão de casa? Por que é tão natural que tenhamos que viver longe das pessoas que amamos, ou gastar todo o tempo que temos, para podermos construir vidas que valham a pena? Vai valer a pena? Por que é natural que consigamos nos emocionar com pessoas que passam por dificuldades financeiras enquanto temos algum dinheiro no banco que não nos faria muita falta? Por que é tão natural querer que quem nos faz o mal sofra algum tipo de justiça enquanto nos esquecemos que merecemos pagar nossas dividas? Quem construiu todos esses padrões e outros? Quem os colocou na nossa cabeça? Como poderíamos escapar? Como podemos reconhecê-los?

Eu poderia não ter escrito todas essas coisas, mas poderia ter escrito um texto apenas usando palavras cafonas (é irônico como a palavra cafona parece tão cafona). Eu poderia ter escrito um texto cheio de clichês falando que dinheiro não é tudo, que o conforto nos doma, que o importante são os relacionamentos que construímos com as pessoas. Eu poderia falar para não exigirmos de volta quando alguém leva o que nos pertence, falar sobre caminhar dois quilômetros com quem nos obriga a caminhar um, sobre oferecer o lado esquerdo do rosto a quem nos acertar o lado direito, sobre cuidar do outro como gostaríamos de ser cuidados. Eu poderia ter escrito um texto cheio de palavras que você acha que está cansado de ouvir, contando sobre um exemplo que viveu uma vida "fora da caixa" e que é uma boa referência para podermos reconhecer os padrões que vivemos. Mas eu percebi (me incluo nisso) que nós não tentamos mais entender o que as palavras querem explicar, apenas assumimos os significados que vem a nossa mente quando as ouvimos, mesmo sem saber bem de onde esses significados vem.


O que é ser alienado? Qual é o antônimo de alienado? É engraçado como o antônimo explica melhor o que é ser alienado do que a própria palavra. Veja nos links se não é isso mesmo. Esqueçamos o que as palavras significam, ou o que achamos que elas significam. Passemos a pensar e a olhar para as coisas como elas são, pois é isso o que as palavras estão tentando explicar. As palavras por si só não são os conceitos, elas não passam de sons e rabiscos. Se nós começarmos a praticar isso, talvez nos surpreendamos um dia, ao descobrir que a Coréia do Norte não foi campeã da Copa do Mundo de 2014.

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