"Além das aptidões e das qualidades herdadas, é a tradição que faz de nós aquilo que somos."
Imagine que você possui um barco feito de madeira atracado em um cais.
Digamos que você o tenha nomeado como Bombarco. Suponhamos que, com o passar do
tempo, as tábuas que constituem a embarcação comecem a ficar obsoletas e precisem
ser gradualmente substituídas. Após várias semanas, todas as partes do navio foram
trocadas por madeiras novas, e as antigas peças foram esquecidas em um
depósito. O Bombarco permaneceu ancorado no mesmo local durante todo o período.
Agora, imagine que alguém tome as madeiras antigas do depósito e reconstrua o
barco exatamente como ele era, mesmo que um pouco avariado. E então, qual dos
dois é o Bombarco? Pois bem, esse é o paradoxo do barco de Teseu.
Esse problema baseia-se na imprecisão da linguagem natural. Nós temos a
ilusão de que somos capazes de definir bem as coisas, mas de fato não conseguimos.
Usamos muita simbologia tentando constantemente delimitar ideias e conceitos,
mas isso funciona somente até certo ponto.
Desviando: Outro exemplo é o paradoxo de sorites. Ele diz que não podemos
definir em que momento um monte de areia deixa de ser um monte, à medida que
vamos tirando grãos um a um. O senso comum sugere que um monte de areia tem as
propriedades abaixo, mas essas mesmas propriedades se contrapõe umas as outras.
1. Dois ou três grãos de areia não são um monte.
2. Um milhão de grãos de areia são um monte.
3. Se "n" grãos de areia não formam um monte, tampouco o
seriam "n+1" grãos.
4. Se "n" grãos de areia
são um monte, também o seriam "n−1" grãos.
Voltando: Analogamente ao barco de Teseu, existe um mito de que todas as
células de nossos corpos são trocadas a cada sete anos. O equívoco desta ideia
é que as células nervosas de uma pessoa saudável não são substituídas, mas duram
a vida toda. É por isso, por exemplo, que lesões de medula espinhal são
irreversíveis. Porém, vamos supor que o mito seja verdade. Então, se
reconstruíssemos o meu corpo juntando todas as minhas células de sete anos
atrás, quem seria eu?
Vamos tentar comparar o barco com nossos corpos? Para isso, colocaremos Teseu
dentro do navio e o manteremos lá o tempo todo, durante as substituições graduais
das tábuas de madeira, assim como ocorre com nossas células nervosas. Portanto,
se o marinheiro passa a ser uma propriedade necessária para caracterizar o
barco, aquela onde ele se encontra torna-se a única embarcação relevante. Da
mesma forma, é possível que eu e o meu outro corpo reconstruído existamos ao
mesmo tempo, sem crises existenciais.
Há algo que nos define, mas não conseguimos determinar. Nós sabemos e
entendemos isso, mas não conseguimos descrever, exatamente como uma criança que
aprende o conceito de mãe muito antes de ser capaz de explicá-lo.
Enfim, por que estou dizendo tudo isso? Porque pessoas que viveram dois,
três ou quatro milênios antes de nós já pensavam nesse mesmo assunto, às vezes de
forma não tão direta. E o resultado foi o surgimento de uma sabedoria prática
que, com o passar do tempo, tornou-se uma tradição. Indivíduos como aqueles meditaram
sobre esses conceitos e criaram nomes para tentar estabelecer os limites que
nossa linguagem tem tanta dificuldade de especificar. Alguns chamaram de alma,
outros de espírito, outros de ser, outros de mente, ainda outros de essência. Esses
títulos são precisos? Provavelmente não, mas passaram por duras provas por
milhares de anos.
Nos dias de hoje, alguém cheio de opinião, mas com pouca informação, pode
ouvir falar sobre espírito e alma, por exemplo, e dizer que isso é baboseira,
que é ilusão, que não tem significado, que não é verdade. Algumas pessoas tem
usado o vazio para refutar tudo. E por que o vazio? Porque elas não tem nada
para colocar no lugar. Elas apenas contestam, geralmente porque, e por algum
motivo desconhecido, parece ser mais intelectual negar.
Vamos analisar outro exemplo. A palavra Lúcifer vem do latim "lux fero", que significa "portador da luz".
Esse ser é considerado a personificação do mal. Mas nós já paramos para pensar
porque o demônio recebeu esse título? Porque ele representa a razão que se
ensoberbeceu. Pois não é curioso que há milhares de anos já associavam a razão à
luz, e entendiam que se ela se envaidecesse se tornaria o mal personificado? Eu
achava que a relação entre luz e razão era relativamente recente, que tinha
surgido apenas com o Iluminismo no século XVIII. Além
disso, textos judaicos antigos dizem que o demônio era a estrela da manhã. Consegue perceber quanta sabedoria uma ideia tradicional é capaz de carregar?
No alvorecer da humanidade (estrela da manhã), quando a razão surgiu na mente
da espécie homo sapiens (do latim, "homem
sábio"), aqueles que se orgulharam passaram a ser entendidos como estando sob a
ação da personificação do mal, o símbolo da razão presunçosa. Olhando para as
pessoas de hoje, parece-me que o galo ainda está cantando.
Com o passar dos séculos, nós não estamos necessariamente ficando
melhores em conhecer humanos. Nós só estamos ficando melhores em manipular
números. E não estou dizendo que ficar bom em matemática seja ruim.
Atualmente estou lendo Breves Respostas para Grandes Questões de Stephen Hawking. Na introdução ele
diz: "Os relatos sobre a gênese do mundo
criados no passado agora parecem menos relevantes e verossímeis." Achei
estranho colocar todas as narrativas sobre origem em um único pacote
caracterizado por irrelevante. De fato, penso que é uma classificação injusta,
porque as julga todas sob o aspecto da física. Porém, nem todo relato antigo
sobre o inicio tem um propósito físico, se é que algum deles tem. A maioria tem
a expectativa de dar algum sentido para os conflitos da alma humana, mas não de
explicar cosmologia, por exemplo. Vou tentar exemplificar a injustiça a que me
refiro usando a mesma frase de Hawking ligeiramente alterada: "Os relatos sobre os conflitos da alma humana
propostos pela física parecem menos relevantes e verossímeis à luz das antigas
tradições." Percebe como estou sendo arbitrário com a física? Pois ela não
se propõe a esse assunto.
Mas alguém poderia me dizer: "Sim,
mas convenhamos que alguns relatos antigos ousaram descrever uma gênese do
mundo em apenas sete dias." E eu poderia responder: "Sim, e até hoje eu não sabia o significado e o motivo da palavra
Lúcifer, e por isso o ignorava, ou acreditava que ele era apenas um vilão para histórias
de ninar. Então, isso me torna humilde suficiente para considerar que,
analogamente e talvez, eu ainda não tenha entendido o significado de todos os
relatos antigos sobre a gênese do mundo."
Coincidentemente, ainda no mesmo livro, o cientista havia escrito: "Como nossas mentes finitas podem compreender
um universo infinito? Não é pretensão de nossa parte até mesmo tentar fazê-lo?"
(Hawking não acreditava em um universo infinito, mas a frase dele foi apenas sua
demonstração de humildade diante de tudo o que ainda não conseguia explicar fisicamente
sobre o universo) Com essa segunda citação, concluo que todos tem seus próprios
infinitos e quando aceitamos nos render a eles, nós estamos apenas sendo
reverentes. A verdadeira humildade é render-se à possibilidade da existência do
infinito dos outros.
Eu não estou tentando convencê-lo de uma ideia em detrimento de outra,
mesmo porque, acredito que cada uma delas tem seus propósitos particulares e que
eles não se sobrepõem. O que estou tentando fazer é, como eu já disse aqui, mostrar que o
verdadeiro cético duvida até, ou principalmente, de seu próprio ceticismo.
Deveríamos ser humildes para considerar que uma ideia não passa a ser
irrelevante, desnecessária ou um conto de fadas apenas porque não a entendemos,
principalmente quando nunca foi de nosso interesse tentar entendê-la. Agir
assim é injusto.
Finalmente, chegamos à última ilustração que eu gostaria de compartilhar.
O verdadeiro cético pode ser comparado a um pescador que acredita que a
modernidade chegou para superar o passado. Ele senta no cais, coloca os pés
dentro d’água e usa uma vara de pescar com um molinete de última geração. O cético
pós-moderno, pode ser comparado também
a um pescador que acredita que a modernidade chegou para superar o passado. Ele
se senta em seu sofá, coloca seus óculos de realidade virtual e brinca com seu
jogo de videogame que simula a realidade de uma pescaria, rindo da persistência
dos pescadores tradicionais.