sábado, 27 de outubro de 2018

Acertou na Mosca

"O óbvio é a verdade mais difícil de enxergar."


Alguém fez uma pergunta meses atrás, mas não deu chance para uma resposta. Na ocasião, foi uma pergunta retórica, mas fiquei instigado em tentar responder, mais por ter vindo algo muito rápido à mente do que por ter de pensar a respeito.

Por que Deus colocou uma Árvore, cujo Fruto não poderia ser comido, no centro do Jardim e ao alcance do Homem? E pior, por que Ele fez isso mesmo sabendo que o Homem comeria o Fruto daquela Árvore?

A ideia que veio a minha mente, como uma centelha, foi a seguinte. Imagine um quadro branco. Pois imagine que eu desenhe uma circunferência neste quadro e, de alguma forma, dou vida a ela. Então, eu digo para a minha pequena criação: "Esse quadro branco é o seu mundo. Quero que você o ocupe e o domine, pois lhe dotei de consciência, de liberdade e de escolha." Provavelmente, a pequena circunferência se voltaria para a vastidão do quadro branco e responderia: "Mas senhor, o que é a liberdade para que eu possa usufruir dela? O que é a escolha para que eu a pratique?" Bem, as questões feitas por ela mostram que pelo menos de consciência ela entendeu.

Sabemos o que é liberdade? Nós vivemos em uma realidade na qual nossas escolhas são condicionadas, onde nossa autonomia é limitada. Isso me faz questionar se a liberdade existe mesmo, ou se ela é apenas uma idealização. Tomando um único exemplo, primitivo em certa medida, nós estamos presos à debilidade de nossos corpos. Necessitamos comer, descansar e de oxigênio. Esses três fatores já limitam muito o nosso alcance. E se nos aprofundarmos nas estruturas que construímos, na sociedade e nas relações interpessoais, centenas ou milhares de outras restrições se impõem diante do que poderíamos fazer e, principalmente, do que poderíamos ser.

Estou tentando alertar para o fato de que, mesmo conhecendo o conceito de liberdade e de escolha, quando pensamos no sentido prático dessas palavras, nós temos dificuldade de compreendê-las, ou melhor, de concluir se elas são realmente aplicáveis. Quanto mais, quando o conceito ainda nem existe, como eu responderia à minha criação – aquela desenhada no quadro branco – sobre o que é liberdade e escolha?

Vou dizer como eu faria, não porque a ideia foi minha, mas porque já foi feito uma vez e funcionou. Eu desenharia duas árvores no quadro branco, uma com frutos bons e outra com frutos ruins. Então, diria ao pequeno círculo: "Da primeira árvore você pode comer o quanto desejar, pois lhe fará bem. Porém, não coma nada da segunda árvore, pois lhe fará mal. E saiba, você depende apenas de si mesmo para cumprir essa regra." Está certo, a última afirmação foi ideia minha.

Não existe um ser dotado de capacidade de escolha por si só. Para que ele exista, é necessário que as alternativas existam e que ele dependa exclusivamente de si para decidir.

Agora, a segunda parte da pergunta. Stephen Hawking tentou responder algumas questões muito interessantes no seu livro "O Universo numa casca de noz". Entre elas, por que o Universo possui três dimensões, mas não duas, ou uma? Ele fez uma observação simples, porém genial. Um universo de três dimensões é o único, em todas as probabilidades, que pode ser habitado por seres capazes de fazerem esse tipo de pergunta. Ele usou o seguinte exemplo, se um camelo fosse plano (como um desenho em uma folha de papel),  o tubo digestivo, que começa na boca e termina no anus, dividiria o animal ao meio, separando-o em duas partes, a de cima e a de baixo. Assim, o camelo não possuiria vida. Portanto, entre todas as alternativas de universo, prevaleceu a única que seria possível, ou, pelo menos, prevaleceu a única onde pode haver vida como a conhecemos e capaz de questionar o próprio Universo.

Se Hawking estiver certo, ele pode ter ajudado a responder outra pergunta mais enigmática ainda. Por que Deus deu ao Homem a liberdade e a capacidade de escolha mesmo sabendo que ele se rebelaria e sofreria por isso? Extrapolando a ideia de Hawking, talvez porque entre todas as alternativas, para aquilo que Deus desejava criar, Ele soubesse que essa era a única possibilidade viável. Interessante, para quem assistiu Guerra Infinita, lembrei-me da cena em que o Dr Estranho viu todas alternativas para o fim da guerra (falar mais do que isso será spoiler).

Desviando: Considere por um momento que Deus exista mesmo. Até onde se estenderiam as capacidades dEle? Quais seriam as limitações? Que tipo de poder a palavra "Deus" esconde em si? Se Ele for o criador de tudo o que pode ser visto e do que não pode, será que há alguma chance de termos razão em colocarmos em cheque a forma como tudo foi criado? Entenda, não quero dizer que não temos a liberdade de questionar. Lembre-se do pequeno círculo. O que estou tentando entender é quão longe um ser definido pela palavra Humano está daquele definido pela palavra Deus. Nós teríamos mesmo condições de argumentar contra um ser onipresente, onisciente e onipotente? Até essa minha tentativa de achar um sentido para a criação não passa de uma presunção bem humana. Não me admiraria se Deus apenas dissesse que fez o que fez porque Ele simplesmente desejou. Afinal de contas, ser Deus tem que ter lá suas vantagens.

Voltando: Já que para dar a capacidade de liberdade ao meu pequeno círculo, eu criei a chance de ele fazer a escolha errada e sofrer com isso. E já que, de fato, ele escolheu errado e agora se deformou um pouco, ficando oval, eu tenho duas alternativas: ou apago o pequeno círculo e crio outro, na expectativa de que o novo faça as escolhas certas; ou eu faço uma restauração do original. Escolhendo a primeira alternativa, eu corro o risco de repetir essa solução cíclica e infinitamente, mas não acredito que essa seja a melhor resposta, pois como já disse aquela frase famosa, equivocadamente atribuída a Einstein, "insanidade é continuar fazendo sempre a mesma coisa e esperar resultados diferentes." Assim, com minha limitada lógica, concluo que a segunda alternativa parece-me mais plausível. Porém, hoje não desejo falar da mais que conhecida história sobre a restauração do pequeno círculo no quadro branco.

Sim, concordo, tudo isso se resolveria com uma única afirmação, "Deus não existe". Nesse caso, esse texto inteiro se resumiria a essa última alegação. Porém, não é nisso em que acreditamos. Eu que escrevo e você que lê, o fazemos justamente porque acreditamos que as coisas não são tão simples assim. Ambos estamos aqui porque procuramos por algo além. Então, a pergunta correta não é "porque Ele fez assim?". A pergunta certeira é "o que aquela história quer ensinar?". Somos capazes de responder a essa última pergunta? Lembrando sempre que, não é a resposta que queremos de fato, mas sim aquilo que vamos aprender com a busca por ela.