"A consciência é um instinto que faz que nos julguemos à luz das leis morais. Não é mera faculdade; é um instinto"
Kant
Em 1956, John McCarthy cunhou o termo Inteligência Artificial. Os desenvolvimentos nesse campo foram iniciados logo após a
Segunda Guerra Mundial, com o artigo "Computing Machinery and Intelligence" do matemático inglês Alan Turing. Os principais
pesquisadores definem essa área como "o estudo e projeto de agentes inteligentes",
onde agente inteligente é um sistema que percebe seu ambiente e toma atitudes para maximizar
suas chances de sucesso.
Tomando essa definição para agente inteligente, eu fiquei pensando... Um
cachorro é uma inteligência, pois ao "implorar" por uma migalha da mesa de seu
dono, ele está buscando maximizar suas chances de sucesso. Concluo, então, que uma
inteligência não está necessariamente relacionada a racionalidade, a consciência
e a identidade, como poderia instintivamente sugerir um primeiro pensamento. Portanto,
nossa tarefa de desenvolver uma inteligência artificial fica muitíssimo mais
complexa do que podemos estar imaginando, uma vez que há certa dificuldade em
responder a pergunta, "o que é inteligência?".
Outro problema é o fato de tomarmos o ser humano como o padrão de
inteligência a ser imitado artificialmente. Sem perceber, limitamos o conceito
quando decidimos nos copiar. Por exemplo, uma inteligência artificial deveria
trabalhar com símbolos e sons que sejam semelhantes a palavras e ideias da
forma como usamos? Ou poderia haver outro tipo de comunicação, algum
processamento sub ou supra simbólico além de nossas capacidades? E por que há o
problema em tomarmo-nos por referência? Porque nem sabemos se somos
inteligentes mesmo.
Desviando: Sobre esse assunto, de outras possibilidades para padrões de
inteligência, recomendo o conto "A História da sua Vida" de
Ted Chiang, inspiração para o filme "A Chegada", ou mesmo
o filme.
Voltando: Já que mencionei um cachorro no início, vou estender meu
exemplo ao bicho de estimação da família. Quando eu vou comer alguma fruta, uma
maçã, por exemplo, a cadelinha ergue as orelhas e arregala os olhos. Se fico
parado, senta-se diante de mim. Se me movo, segue-me pela casa onde quer que eu
vá. Quando paro no sofá, ela se senta na minha frente e fica me encarando. Uma
espécie de ritual, implorando por um pedaço da suculenta e adocicada maçã. Tomando
uma lasca, eu vou com a mão na direção da boca do animalzinho. Ela se levanta,
apoia as duas patas dianteiras na beirada do sofá e, com cautela, abocanha a
fatia que lhe dou (eu aposto que ela pensa que tomou a maçã de mim). Então, ela
volta-se para si e para sua fome e, tão logo termine de comer o que tem, fixa a
sua atenção em mim novamente.
Como sabemos, os animais são seres irracionais. Portanto, o comportamento
da cachorrinha que acabei de descrever é baseado em instinto. Atos puramente
mecânicos. Ela age em busca de comida da mesma forma que corremos para o
banheiro quando temos uma dor de barriga.
Dias atrás aconteceu algo comigo que achei muito estranho. Levantei-me
do sofá e fui até a cozinha. Sobre a mesa, retirei a tampa da fôrma que
acondicionava um bolo. Na gaveta peguei uma faca, com a qual cortei uma fatia. Eu
senti e vi a faca primeiro forçando a maciez e depois cortando a fatia. Comi.
Fui com a faca novamente até o bolo para separar outro bocado. E desta vez, enquanto
a faca ainda forçava a massa, "acordei". O que eu estou fazendo? Comendo um bolo?
Mas não lembro-me de ter sentido fome, tampouco de ter concluído que para
saciá-la deveria ter vindo até a cozinha pegar uma fatia de bolo. Nem ao menos
me lembro de ter caminhado até aqui.
Descrevi a situação do ponto de vista de quem acordou depois que tudo
aconteceu, mas não do ponto de vista de uma pessoa que planejou o que iria
fazer. Meus atos foram tão mecânicos quanto uma pessoa que repete diariamente o
mesmo caminho com o carro e, ao chegar ao seu destino, percebe que fez tudo no
automático, sem ter prestado atenção no trajeto.
Nós podemos ter centenas de pensamentos a cada hora, pensamentos
incontáveis, e dos quais não conseguimos nos lembrar. Inevitavelmente acabei
fazendo algumas perguntas. Quão mecânico eu tenho sido? No meu dia a dia, por
onde anda a minha consciência? Para o que ela tem servido de fato? O que ela é?
Ela existe mesmo? Talvez ela seja somente mais um artifício, apenas um instinto
que descobriu que existe.
Desviando: Ultimamente tenho acreditado que, na história da humanidade,
as ideias evoluíram mais rápido do que a linguagem. Milênios atrás alguns
conceitos universais e atemporais já haviam sido pensados, e mesmo hoje não
conseguimos descrevê-los apropriadamente. Por isso, muitas palavras soam como simples
alegorias e, consequentemente, tem seu significado banalizado, ou desacreditado.
A exemplo da dúvida que ocorreu-me sobre inteligência e consciência, tenho deixado
de acreditar que sei o significado de algumas palavras apenas porque elas foram
sempre usadas. Na medida de minhas capacidades, tenho pensado mais sobre elas,
pois significam mais do que a primeira impressão pode revelar. Começo a olhar
diferente, por exemplo, para conexões entre instinto, carne, trevas e pecado,
ou entre razão, espírito, luz e pureza. E cada dia que passa, parece-me que o Sábio
era (ou é?) mais sábio do que eu pensava.
Voltando: Eu já contei aqui
aquela história do macaco que se tornou humano por um dia e ao final das 24
horas, ao voltar a ser macaco, não tinha ferramentas e capacidades suficientes
para explicar a humanidade aos demais de sua espécie. Desta vez, gostaria de
propor uma reflexão diferente, e se nós nos tornássemos chimpanzés por um dia
e, ao retornarmos à condição de humano, descobríssemos que não temos agido
diferente deles, mas seja apenas a mesma questão de saciar o próprio apetite, só
que em proporções maiores e de forma dissimulada?
É, talvez tudo resuma-se a somente isso. O dia que criarmos uma máquina
que sente fome teremos criado a inteligência artificial.