sábado, 25 de setembro de 2021

Pobre de Marré Deci

"É bem difícil descobrir o que gera a felicidade; pobreza e riqueza falharam nisso." 

Elbert Hubbard

(endereço para o vídeo fonte da imagem)

O Curupira é uma personagem lendária, caracterizada por pele e cabelos avermelhados e também por possuir os pés invertidos, ou seja, o calcanhar é virado para frente e os dedos são voltados para atrás. Através de assovios e sinais falsos, ele atrai as pessoas para dentro da floresta, onde as espanca, corta, mutila e mata.

Um outro mito do folclore brasileiro é o Boitatá. Diz-se ser uma serpente de fogo que protege matas e florestas, atacando e queimando aqueles que tentam atear fogo na vegetação. É encontrado principalmente em regiões de lagos, rios e pântanos.

Esses dois monstros, por um longo período, foram úteis para assustar a garotada que crescia no campo. Já no meu caso, crescido na cidade, o medo se concentrou no Homem do Saco, que pegava as crianças solitárias e distraídas na rua, dando a elas algum destino obscuro longe dos pais, para sempre.

Hoje sabemos que todos esses monstros não existem (batendo três vezes na madeira), assim não são mais usados para assustar crianças. Entretanto, não é prudente igualmente ignorar os perigos reais que eles representavam. Por exemplo e muito provavelmente: o Curupira foi a personificação de ataques de onças em mata fechada; o Boitatá pode ter sido a percepção de ambientes inflamáveis, devido a decomposição de matéria orgânica (fogo-fátuo), ao redor do qual não se deveria acender uma fogueira, ou uma tocha; o Homem do Saco era sequestradores que raptavam crianças com os mais variados objetivos nefastos. E tanto ainda hoje não ignoramos os riscos antigos e novos, que nossas estratégias atuais, para proteger as crianças, é "prendê-las" dentro de casa, utilizando como atrativo a TV, o computador e os jogos eletrônicos.

Pois bem, paralelamente às figuras folclóricas, é compreensível não se acreditar na existência de Deus. Quem sabe até alguém O defina como folclore para adultos? Porém, insistindo na comparação com os casos anteriores, também não se deveria negligenciar as lições que a história da existência de Deus nos oferece.

O que quero dizer? Aquilo que já citei aqui e aqui, que um cético, no real significado da palavra, ou considerando a origem do movimento filosófico da Grécia Antiga, não despreza as tradições, o folclore, Deus e tudo o que eles representam, apenas por deliberar que são meras "criações" humanas. Pelo contrário, sua principal desconfiança é sobre a ideia moderna de que eles nunca serviram, ou já não servem, para ensinar algum aspecto significativo sobre a nossa humanidade.

"Contos de fada não dizem às crianças que dragões existem. Crianças já sabem que dragões existem. Contos de fada dizem às crianças que dragões podem ser mortos."

G. K. Chesterton

E para explicar o motivo pelo qual pensei em tudo isso, precisarei expor o que disparou a minha inquietação. Foi quando eu assistia a um documentário sobre o crime cometido contra o herdeiro da Yoki. Em determinado momento da entrevista a protagonista disse: "Sempre fui pobre, minha mãe nunca teve dinheiro para me dar uma boneca". Naquele momento, tornou-se inconsistente na minha mente o fato de uma criança, e também um adulto, medir a riqueza da família através da falta de um brinquedo.

Posteriormente, fiquei me questionando... Quem coloca na mente de uma criança que ter um brinquedo é sinônimo de riqueza e fartura? Que tipo de mensagem chega ao ouvido e aos olhos da criança para que ela faça essa associação? Por que ela passa a comparar a própria realidade – escola, atividades com a terra e animais, brincadeiras livres pelo campo, diversão em meio a árvores e córregos, frutas disponíveis no pé, carne, leite e ovos frescos preparados em fogão a lenha, etc. – com um brinquedo e se convence que é pobre? E por que, enquanto adulto, continua acreditando nisso? Como a mensagem sussurrada a uma criança é capaz de ecoar no ouvido do adulto? Com que propósito essa relação é criada?

Por que medimos o grau de pobreza de um indivíduo, ou de uma família, através do bairro no qual se reside, da festa de aniversário, do brinquedo no Natal, do celular, do vestuário, do automóvel, do cartão de crédito, etc? Quem define o que é riqueza, o indivíduo, ou a sociedade? Quem entre eles define a qualidade e o valor da posse? Quem estabeleceu a escala entre pobreza e riqueza? O que é ser rico e o que é ser pobre? (Tentei falar sobre isso aqui também.)

Desviando: Não me atrevo a tentar responder principalmente a última pergunta, "o que é ser rico?", pois tenho certeza que meu intelecto e minhas palavras iriam querer sugerir algo elevado, mas minhas ações e minha forma de vida iriam me contradizer. Quero dizer, eu poderia "falar" que todas as definições de riqueza e pobreza são dadas pelo indivíduo, mas meus "atos" revelariam aquilo em que acredito mesmo, que é a sociedade quem define os valores. Sejamos sinceros, isso funciona porque a gente gosta da competição, ela nos estimula, nos excita, nos provoca, nos instiga.

Voltando: Foi então que ocorreu o choque, pelo menos em minha mente, entre o relato da "garota pobre" e o pretexto do "folclore", que finalmente vou explicar.

Dias atrás me perguntaram: "Por que Deus valoriza tanto a pobreza? Por que tanto aconselhamento contra a riqueza na Bíblia? Por que tanta abnegação e tanto desapego como algo elevado? Por que das doações e dos jejuns?" Convenhamos, é uma pergunta muitíssimo pertinente. Por que Deus parece se interessar tanto pela pobreza?

Espante-se, quem me respondeu isso foi o relato da "garota pobre". Todas aquelas perguntas tem um aspecto oculto. Elas são feitas sob a nossa conjuntura atual, ou seja, pressupondo que os valores que nós estabelecemos para a riqueza e a pobreza são reais. Sendo assim, quando vemos Deus "exortando" a pobreza e desencorajando a riqueza, não é que Ele esteja nos dando uma resposta. Pelo contrário, na verdade e de fato, Ele está nos fazendo uma pergunta. Ele está nos questionando se estamos prestando atenção nas associações que estamos fazendo e em que tipo de águas estamos "mergulhando". Ele está colocando em xeque nossos padrões e as definições que escolhemos como verdadeiras.

Você já se perguntou por que você valoriza o que valoriza, onde essa relação foi construída e com o propósito e intenção de quem?

Há uma frase atribuída a Karl Marx que diz o seguinte:

"Os homens fazem a sua própria história, mas não o fazem como querem... a tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos."

Entretanto, se todas as minhas observações anteriores estiverem certas, ou se pelo menos você concordar com elas, apesar de Marx estar certo quanto ao objetivo da crítica, a causa definida por ele não poderia estar mais equivocada. É justamente uma tradição milenar que está tentando nos alertar contra as cadeias nas quais nós mesmos, instintiva e miseravelmente, tendemos a nos encarcerar.