domingo, 30 de junho de 2019

Peixe Fora D’água

"O pássaro é livre na prisão do ar. O espírito é livre na prisão do corpo."


Ultimamente tenho me surpreendido com as definições que encontramos nos dicionários. Acredito que nunca prestei atenção nelas por pura falta de maturidade, se é que houve alguma evolução em mim nesse sentido. De fato, se não me falha a memória, a última vez que consultei um dicionário, diga-se de passagem impresso, foi há uns 20 ou 25 anos. Mas, como a escrita exige lá alguns esforços, retomei as consultas, desta vez digitais, apenas nos últimos quatro anos.

Indo direto ao assunto, a palavra da vez é prisão. E essa foi uma das definições encontradas no Aurélio:

"Coisa que enleva a alma, que a atrai e cativa, que a prende e a desvia de toda outra qualquer influência."

Se há alguma coisa capaz de prender a alma é a influência do outro. Quanto em nós foi definido por algo que alguém disse? Geralmente e principalmente, quando são palavras que causam dor, nunca mais as esquecemos e todo nosso comportamento passa a ser pautado na tentativa desesperada de evitar a recorrência delas, ou do julgamento. Nós criamos mecanismos de defesa contra a repetição delas, mesmo sem termos consciência deles. Por isso a minha dúvida, como eu sei o que em mim é da minha própria natureza, ou me foi enxertado através das opiniões alheias? Talvez eu seja somente opinião alheia mesmo e não há como evitar isso. Quem pode saber?

Neste texto aqui, coloquei a seguinte imagem.


Então, levantei a seguinte questão, pois achei que a mensagem estava incompleta, ou era parcial e tendenciosa: "Iríamos querer fazer uma tatuagem se tivéssemos nascidos cegos?"

Por pura coincidência, recentemente recebi um vídeo que fez uma pergunta análoga: "Que tipo de ideia faríamos de nós mesmos, se tivéssemos nascidos surdos?" Pense, como você se definiria se nunca tivesse ouvido uma opinião sequer a respeito de si? E se nem ao menos soubéssemos que os outros são capazes de dar alguma opinião a respeito de nós?

Em certo sentido, parece-me que neste caso a limitação é o que liberta, mas não o que aprisiona. Aliás, atrevo-me a dizer que esse é o sentido mais pleno dessa ideia e não apenas parte dele. Nós não deveríamos tentar ensinar aos cegos e surdos de nascença como é o mundo que todas as pessoas ouvem e vem. Nós deveríamos aprender deles o mundo que apenas eles conhecem. Quem são os verdadeiros enjaulados?

E sabe por que eu pensei nesse paradoxo recentemente? Porque alguém sugeriu que a espiritualidade aprisiona, enquanto a verdadeira liberdade pode ser oferecida somente pela ciência, de forma que, a escolha correta não seria óbvia apenas para os "ignorantes" aprisionados. Porém, essa ideia bateu na minha mente como uma contradição e não como um paradoxo.

Desviando: Lembra de nossa conversa sobre paradoxo e contradição? Se não se lembra, leia esse texto aqui.

Voltando: Como se pouca coincidência não bastasse, logo após ter recebido essa sugestão de ideia, eu li o contra-argumento para ela em um livro chamado "O Homem Eterno", de Chesterton. Vou transcrevê-la com minhas palavras, pois não me lembro em que página ela se encontra e estou com preguiça de folhear o livro inteiro. Confesso, se folheasse e a encontrasse, eu também teria preguiça de copiar tudo (com os devidos créditos claro).

A ciência, a lógica, a razão, em certo sentido, nos tiram a liberdade. A lei da evolução nos aprisiona ao propósito selvagem. A racionalidade limitada à ciência nos encarcera ao propósito matemático e físico. Biologicamente, ficamos à mercê da lei da sobrevivência do mais forte. Matematicamente, ficamos presos à regra da causalidade. Portanto, o milagre, este sim nos liberta, pois muda o destino do mais fraco e extrapola as previsões estatísticas. A espiritualidade não aprisiona a alma do ser humano, mas a liberta.

Desviando: Nós somos cheios de contradições. Por favor, primeiramente, faço questão de esclarecer que não tem sido meu intuito defender uma ideia em prol de outra (mas sim, tenho minhas opiniões). Não estou interessado em paixões partidárias. Estou tentando apenas mostrar como somos incoerentes, ou tendenciosos (se é que há alguém querendo perceber isso – bem, eu estou). Veja um exemplo, foi tema de uma discussão recente entre colegas. Quando o Estado acena no sentido de tentar escolher por nós a religião que devemos seguir, ou a ideologia que devemos acreditar, nós o chamamos de ditador, totalitarista e repressor. Mas quando o mesmo Estado dá um passo atrás e diz que ele não quer decidir como devemos cuidar da segurança de nossos filhos, nós o criticamos da mesma forma. Porque eu não precisaria do Estado para decidir por mim qual deveria ser a minha religião e a minha ideologia, mas precisaria dele para cuidar da pessoa que eu mais amo? De quem é o maior interesse em todos esses casos? Repito, não estou interessado se o correto é A ou B. O que me incomoda é o fato de vivermos em cima do muro como se tivéssemos assumido um lado. Nós não somos resolvidos, somos cheios de contradições, e é tão difícil assim assumir isso?

Voltando: Enfim, a resposta no livro de Chesterton culmina na seguinte opinião... É passível de receber crédito a descrença na espiritualidade por pensar que ela é um conto de fadas. Porém, não merece nenhum crédito o argumento que diz que a espiritualidade aprisiona e, portanto, a racionalidade e a ciência seriam as únicas que oferecem liberdade, pois este último argumento não oferece essa opção de fato. É justamente o inverso.

A ciência nos dá a falsa impressão de que entendemos tudo, quando a verdade é que ainda não entendemos nada. Olhamos para uma árvore e acreditamos que ela é a coisa mais natural do Universo. Porém, ela é um milagre, uma vez que, até onde sabemos, uma árvore só acontece em um único planeta em incontáveis deles no Universo, e nós não temos a mínima ideia do porquê. Somos bebês que pararam de admirar o móbile sobre o berço, porque descobriram que ele é feito de plástico. Somos peixes querendo viver fora d’água, porque, ao descobrir que ela é um líquido, passamos a acreditar que não precisamos mais dela.

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