"O mais escandaloso dos escândalos é que nos habituamos a eles."
O touro de Wall Street, nos EUA, é uma estátua de bronze, de três toneladas e meia, criada pelo artista italiano Arturo di Modica, com o intuito de representar a força e o poder do povo norte americano. Em 1989, dois anos após o crash da Bolsa de Valores de Nova York, a imponente escultura foi instalada, tornando-se um dos maiores símbolos do mercado financeiro dos Estados Unidos.
Inicialmente, o touro foi posicionado em frente ao prédio da Bolsa de Valores, mas a polícia o removeu, com a justificativa de que a instalação não havia sido autorizada e estava atrapalhando o trafego. Após ficar alguns dias em um armazém, em meio a protestos, as autoridades viram-se "obrigadas" a reinstalar a estátua, mas, desta vez, a duas quadras do local original.
O verdadeiro nome da escultura é Charging Bull, uma metáfora do mercado de ações em alta, pois o touro ataca de baixo para cima. Em contraponto, o mercado em baixa é representado pelo urso, que ataca de cima para baixo. A estátua se tornou tão famosa que vários milionários encomendaram réplicas particulares. Inclusive, uma versão foi instalada na China, no coração do novo distrito financeiro de Xangai, em 2010.
No dia dezesseis de novembro de 2021, uma versão brasileira foi instalada em frente ao prédio da B3 – Bolsa de Valores do Brasil. Entretanto, no dia seguinte, a réplica foi "palco" de uma manifestação contra a fome. Cartazes foram colados no touro e sua lateral foi pichada. Além disso, nas redes sociais, os manifestantes repudiaram a escultura, tomando-a como um símbolo da "fome, da miséria e da super exploração do trabalho". A pressão social (dependendo do barulho, não se pode identificar se poucos ou muitos) foi tão forte que, sete dias após instalado, o touro acabou sendo removido. A determinação foi dada pela Comissão de Proteção à Paisagem Urbana (CPPU), sob a prerrogativa oficial de que a escultura não tinha licença para estar no local e que, possuindo caráter publicitário, infringia os artigos 39 e 40 da Lei Cidade Limpa.
Eu fiquei dias me questionando... Por que aquela estátua, na frente da Bolsa de Valores, nos feriu ética e moralmente, enquanto, ao mesmo tempo, importamos outros aspectos culturais e econômicos dos EUA? Por que trazer ao Brasil o Halloween, a Black Friday e os blockbusters não nos fere, igualmente, a autoestima e o altruísmo? Por que não nos ofendemos com a importação dos esportes, do Rock 'n' Roll, do Papai Noel, do refrigerante e do fast-food? Já paramos para ponderar quanto de riqueza se destina aos cofres americanos quando lotamos salas de cinemas, por exemplo? Até onde eu sei, nenhum valor saiu do Brasil por associação à réplica do touro. Além disso, teríamos tempo para a diversão e recursos para despachar às empresas estrangeiras, enquanto moramos em um país onde o brio nos incita, em nome da pobreza, a "saquearmos" uma estátua? Isso não é um paradoxo comportamental? Por que a escultura daquele touro, aquela escultura específica, naquele lugar, nos comoveu tanto e somente ela? Uma hipótese seria que não toleramos algo que nos expõe como um espelho.
Quem de nós é isento dos resultados das atividades capitalistas realizadas na B3? Quero dizer, quem de nós é inerte a – ou nega – qualquer benefício gerado pela Bolsa de Valores brasileira e que, legitimamente, pode exigir que o touro seja retirado? Estaria eu dizendo que não podemos nos manifestar contra? Não, longe disso. O que estou perguntando é, quando pedimos para retirar a estátua, estamos protestando contra o quê? Quem não "colhe os louros" do capitalismo brasileiro, ou não tira proveito dele? Aliás, lembrei-me que já falei aqui dos manifestantes do "panelaço" contra o rompimento da barragem da Vale, em Brumadinho, que não se deram conta de que, muito provavelmente, os minérios constituintes daqueles utensílios teriam vindo daquela mesma mina.
Talvez agora você esteja pensando: "ah, entendi, ele está defendendo a permanência da estátua." Ou, então: "sim, ficou claro, ele está sugerindo, além da retirada do touro, a remoção de tudo o que se assemelha à escultura." Quem sabe, você esteja tentando identificar se sou a favor da mistura cultural e econômica, ou se sou defensor de uma nação pura e justa? Entretanto, é exatamente aqui onde quero chegar, eu não estou apoiando nem "A" e nem "B", apesar de ter sim a "minha" opinião – há controvérsia com relação a palavra "minha" e chegaremos lá. Minha inquietação diz respeito a um terceiro tipo de pergunta, cujas duas afirmações anteriores não são respostas.
Desviando: "Aprendi a dizer não / Ver a morte sem chorar / E a morte, o destino, tudo / Estava fora do lugar / Na boiada já fui boi, mas um dia me montei / Não por um motivo meu / (...) / Porém por necessidade / Do dono de uma boiada / Cujo vaqueiro morreu / Boiadeiro muito tempo / (...) / Seguia como num sonho / Que boiadeiro, era um rei / Mas o mundo foi rodando / Nas patas do meu cavalo / E nos sonhos que fui sonhando / As visões se clareando / Até que um dia acordei / Então não pude seguir / (...) / De dono de gado e gente / Porque gado a gente marca / Tange, ferra, engorda e mata / Mas com gente é diferente"
Disparada - Geraldo Vandré e Théo De Barros
Voltando: A "pergunta de um milhão" é, quem sou eu? Por que eu defenderia a permanência da estátua, ou a retirada dela? Por que eu me importo com algumas coisas, mas com outras não? Já falei aqui que, talvez, nossas lutas vão até a medida em que nossos "confortos" não sejam abalados. Também já fiz aqui a seguinte pergunta, "de quem são nossas ideias?".
Seria eu contra o touro porque vi manifestantes contrários e me apoderei de seus argumentos? (Ou se apoderaram de mim?) Seria eu a favor da estátua porque vi entusiastas do que ela representa, com seus argumentos lógicos e bem intrincados sobre mérito? Por que eu me importo com aquilo que eu digo que me importo? Eu sou do tipo que elabora opiniões, ou do tipo que escolhe entre críticas prontas? Eu consigo ao menos reconhecer quando não foi eu quem desenvolveu a "própria" ideia? Quem sou eu, um "cozinheiro" de ideias, ou um "cliente" fazendo seu prato na gôndola do restaurante self-service?
"Guias cegos! Coam um mosquito, mas engolem um camelo!"
Enfim e infelizmente, não acredito que um dia saberei quem sou, de fato. Talvez eu seja o "cozinheiro", talvez eu seja o "cliente". Pode ser que ora eu seja um, ora eu seja o outro. Quem poderia responder? Porém, uma coisa eu não consigo e não posso negar sobre mim... o meu prato favorito, seja para preparar, seja para saborear, tem sido sempre cozido de camelos. Mosquito – e touro – não, de jeito nenhum, esse eu coo.