"Se, a princípio, a ideia não é absurda, então não há esperança para ela."
O Bicho-Papão é um ser imaginário
das mitologias portuguesa e brasileira. Ele também pode ser reconhecido através
de outros nomes, como Papa-Gente, Cuca e Boitatá. O monstro é a personificação
do medo, ou seja, é a própria criança quem o cria, dando-lhe também a forma, em
sua mente.
O mito tem uma função, proteger as crianças de perigos. Os pais
frequentemente usam o bicho para ameaçar os filhos que não se comportam bem, ou
para afastá-los de algum risco sério e real. E eu concordo com essa sabedoria
prática. Se olharmos para os efeitos, mas não para as causas, o Bicho-Papão
existe mesmo. Pense comigo... Para a criança, o monstro é alguém que pode
devorá-las. Para os pais, o monstro é um local, um alguém, ou uma situação que
pode tirar a vida do filho, ou feri-lo gravemente. Então, como imaginei, do
ponto de vista da consequência, mas não da causa, o monstro de fato existe,
pois o resultado potencial é real. O nome do bicho é somente uma questão de abreviar
todas as probabilidades em um único "objeto". Simples praticidade.
A outra alternativa seria tentar explicar a física dos corpos e o
conceito de morte a uma criança de três ou quatro anos, que teima em subir uma
escada que dá acesso a um telhado. Mas não seriam todas essas coisas que os
contos de fada tentam explicar para as crianças, mas de uma forma lúdica? Assim,
o surgimento do mito resume-se ao fato da mente de uma criança não conseguir
compreender bem as relações entre causas e efeitos do mundo real. E quer saber?
Às vezes, mesmo um adulto precisa de um Bicho-Papão, pois uma rede de causa e
efeito pode ser tão complexa que acaba sendo mais prático para o cérebro simplesmente
substituir por um monstro.
No fim das contas, tanto para as crianças, quanto para os adultos, o
monstro acaba sempre sendo um aliado, por mais que o temamos. Aliás, a aliança
se dá justamente pelo fato de o monstro ser temido. Interessante isso...
E foi justamente pensando neste aspecto colaborativo que me deu vontade
de falar de um Bicho-Papão específico. Apenas a título de exemplo, eu vou focar
em um único aspecto da sociedade moderna, no caso, a luta feminina em prol de
seus anseios, aos quais sou plenamente a favor (é sempre prudente deixar
avisado). De outra maneira, seria muito abrangente se eu tentasse discorrer
sobre todos os problemas sociais que enfrentamos atualmente.
De fato, explicando melhor, eu não quero falar exatamente sobre as lutas
das mulheres, mas quero usar esse tema como um pano de fundo para poder expor o
nosso Bicho-Papão. E para apresentá-lo, preciso fazer a seguinte pergunta, que
outro sistema, além do capitalismo, possibilitaria que
mulheres fossem independentes, autossuficientes e "empoderadas", ou que lutassem
por tudo isso?
Desviando: Não gosto da palavra "empoderada(o)". Para mim, ouvi-la é como
ouvir alguém raspar uma pedra no quadro negro de uma sala de aula. E minha
aversão não é pelo contexto, mas pela palavra mesmo, em qualquer circunstância.
Aliás, tenho a mesma sensação com a palavra "guerreira(o)", mas essa pelo contexto em que modernamente tem sido aplicada. Causa arrepios.
Voltando: De fato, o capitalismo não somente permite as conquistas, como
é ele quem cria a ideia da luta. Percebe? Não fazem sentido independência, "empoderamento" (afe!) e conquistas em um mundo que não seja competitivo, que não
nos permita sermos "selvagens".
Segundo Pondé, no livro "Filosofia para Corajosos", se o capitalismo entrar em crise e acabar, as mulheres vão voltar a se
dedicar apenas à prole e os homens vão voltar a caçar, matar e morrer.
O marxismo e companhia, com
seus conceitos e ideologias, disseram que nossas classes econômicas definem
parte de nossos pensamentos e emoções. Se isso estiver certo, acho que as
conquistas do mundo moderno devem certo grau de agradecimento ao capitalismo,
seja por criar o confronto e ao mesmo tempo permitir a batalha. Reitero, afinal
de contas, em qual outro tipo de sistema temos autonomia para lutar?
Nesse momento você pode estar afirmando para si mesmo: "então é isso, ele
é capitalista". Se você estiver pensando isso mesmo, eu responderia a você da
forma como um poeta já fez: "eu sou um Zé-Ninguém, aqui em baixo as leis são diferentes". Ou quem sabe, eu
diria que, por causa das complexas relações de causa e efeito do mundo real,
você só esteja preferindo criar um monstro e dar um nome para ele, assim como
eu vou fazer agora... O que estou dizendo é que o menos pior de todos os sistemas
construídos por mãos humanas é um baita de um Bicho-Papão, pois, da mesma
maneira como a lenda, enquanto nos ameaça, ele nos mantém distante de perigos reais,
aqueles sistemas que não deram certo (eu sei, que sistema que deu certo?).
Desviando: Dias atrás eu li o prefácio do próprio autor, o socialista George Orwell, para a edição
inglesa do livro "A Revolução dos Bichos". Aquela introdução foi escrita há
aproximadamente 80 anos e ela descreve com tamanha precisão parte dos mesmos
problemas que ainda enfrentamos atualmente. Vejamos um trecho:
"Além da conhecida
noção marxista segundo a qual a 'liberdade burguesa' é uma ilusão, existe hoje
uma difundida tendência a argumentar que a democracia só pode ser defendida por
métodos totalitários. Se a pessoa tem apego pela democracia, diz o argumento,
precisa esmagar seus inimigos lançando mão de qualquer meio. (...) Noutras
palavras, a defesa da democracia envolve a destruição de qualquer independência
de pensamento. Foi este o argumento usado, por exemplo, para justificar os
expurgos na Rússia. (...) Essas pessoas não veem que, quando se endossam
métodos totalitários, pode chegar um momento em que deixarão de ser usados a
favor para se voltarem contra o individuo. Caso se transforme num hábito jogar
fascistas na prisão sem julgamento, o processo talvez não se limite aos
fascistas. (...) Mas pelo menos devíamos parar de aceitar absurdos em nome da
defesa das liberdades contra o fascismo. A liberdade, se é que significa alguma
coisa, significa o nosso direito de dizer às pessoas o que não querem ouvir. As
pessoas comuns ainda acreditam vagamente nessa doutrina, e agem de acordo com
ela."
Voltando: Pelo teor da minha escrita e para que não fiquem dúvidas, é
necessário reiterar algo que já mencionei em alguns textos anteriores, como por
exemplo, aqui, aqui e aqui. Enfim, eu não
acredito que exista a mínima possibilidade de que a gente dê certo por nós
mesmos. Receio que já tenhamos tentado todas as possibilidades. A citação de George
Orwell deixa claro que os problemas tem se repetido dentro de um intervalo de apenas
80 anos. Porém, sem medo de errar, afirmo que desde que inventamos a escrita,
há aproximadamente cinco mil anos, estamos apenas andando em círculos. Já
vivemos todo tipo de sistema social-político-econômico. Já lançamos os dados
tantas e tantas vezes. Faça um exercício mental, tente "ler" a história da Terra
como se estivesse de fora dela. Tudo tem sido o mais puro trabalho de Sísifo. Então, fio-me na esperança de que a salvação venha de fora, pois é a
única coisa que ainda não nos ocorreu.