sexta-feira, 26 de março de 2021

Olho Maior que a Barriga

"O cofre do banco contém apenas dinheiro; frustra-se quem pensar que lá encontrará riqueza." 

Carlos Drummond de Andrade



Você já ouviu aquela piada sobre um homem que encontra uma lâmpada mágica? Ele a esfrega e surge um gênio que lhe concede a realização de três desejos. O homem pensa um pouco e faz o primeiro pedido, "quero ir para uma ilha deserta, onde eu possa viver bem o resto da minha vida". Em um piscar de olhos, lá está ele na ilha. Segue com o segundo pedido, "quero a atriz mais bela de Hollywood aqui comigo". Outra vez, no bater de asas de um beija-flor, lá estava a moça, completamente apaixonada por ele. Finalmente, o derradeiro pedido, "quero o meu melhor amigo aqui comigo". Puft! Lá está o amigo. O gênio se vai e o amigo pergunta inquieto, "por que você me trouxe para cá?". Ao que o homem responde, "o que adianta ter sucesso na vida, se não tiver para quem mostrar?"

Desviando: Se essa história fosse criada séculos, ou milênios atrás, provavelmente seria melhor desenvolvida e se transformaria em uma fábula, já que estas sempre foram criadas para revelar algum sentido ético, moral ou realista de nossa humanidade. Como foi criada apenas nos tempos modernos, não passa de conversa fiada em uma roda de amigos (roda de amigos? eu quis dizer aplicativo de mensagem do telefone celular).

Voltando: Por que eu me lembrei dessa anedota? Ocorreu-me, por um momento, a possibilidade de que a riqueza é uma ilusão sustentada por aqueles que não são ricos. As conquistas do homem da historieta acima só fizeram sentido, pois havia alguém menos afortunado que pudesse deseja-las.

Eu já tratei aqui sobre o estranho comportamento inverso, em que a maioria se porta como o peixe fora d’água, ou melhor, que o polo pobre se sufoca cada vez mais em sua miséria, sem perceber que a transformação da realidade depende apenas de sua organização para reestruturar o mundo a partir de uma nova visão. Porém, a "fome" é muito grande.

Durante a minha infância, nos divertíamos nas ruas, com amigos, primos, vizinhos. Brincávamos de polícia e ladrão, jogávamos futebol, andávamos de bicicleta, quebrávamos vidraças com piões e bolas de gude, soltávamos pipas etc. Dependurávamos em árvores, muros e portões. Divertíamos ao sol, na chuva e no frio. À noite, ao voltar para casa, inúmeras vezes usei a escova da lavanderia de casa, embaixo do chuveiro, para limpar o encardido do pé. Quantos foram os remédios ardidos nos arranhões e que sopro nenhum fazia arder menos? Da mesma maneira como foi para Adão e Eva, as minhas melhores memórias são da época do Jardim do Éden.

Então, finalmente a era dos videogames (maldita serpente). O primeiro colega a ter um virou o centro das atenções. Agora, ao sair para a rua, desejávamos que ele nos chamasse para jogar dentro de casa. Todos passaram a querer o "tesouro" que o amigo "rico" ganhara do "gênio da lâmpada". Após finalizar os deveres da escola e sermos liberados para a rua, a bagunça que costumeiramente fazíamos já não era mais suficiente para nos divertir. Sempre faltava algo. Era um apetite inexplicável pelo que não se tinha à disposição, o telejogo.

"Há riqueza bastante no mundo para as necessidades do homem, mas não para a sua ambição."

Mahatma Gandhi

Eu usei o videogame como exemplo, pois ele foi o item mais valioso e duradouro para as crianças da minha geração. Porém, em ciclos menores, isso se repetia sempre que alguém aparecia com um brinquedo novo. O videogame apenas suplantou os ciclos menores. Nada do que apareceu depois foi tão legal quanto ele, tampouco conseguiu tomar seu lugar. Ele transformou-se no ápice da riqueza, segundo o valor que damos a ela.

E quer saber, chego à conclusão de que definir valores tem lá sua coerência. Em um mundo de pessoas com dor de barriga, o acesso a uma única latrina pode custar muito caro. O que me intriga é que em um mundo de diarreias, pagamos caro para vencer a disputa de quem tem o papel higiênico mais florido.

Assim, ainda sobre minha experiência com o videogame, fiquei pensando, quanto da mudança que ocorreu no meu conceito de diversão, na infância, foi em razão do presente, propriamente dito, que o garoto ganhou, e quanto foi em razão do valor que nós atribuímos ao brinquedo dele?

É o nosso desejo de ser rico que sustenta a ilusão da riqueza. Talvez alguém diga, "ah, mas eu não tenho desejo de ser rico". Eu responderia, "tem sim, todos nós temos". É a casa que gostaríamos que refletisse a nossa personalidade, que aliás e por isso, em algum momento do passado, começamos a chamar de lar, mas não mais de abrigo. É o jardim que querermos que seja o mais bonito da vizinhança. É o desejo pelo último modelo de celular, sem nos preocuparmos mais se é capaz de fazer ligações. É o carro mais chique e mais confortável, mas não necessariamente mais econômico que queremos comprar. É o restaurante, a paisagem, ou a viagem que precisam ser divididos com os contatos das mídias sociais. É a máscara contra um vírus qualquer, que desejamos que tenha uma estampa bonita, a mais bonita. Já paramos para pensar nisso? Quando foi que o propósito de uma máscara, nos proteger contra um agente patogênico, deixou de ser suficiente em si mesmo e passamos a precisar que ela tenha uma estampa?

Não sou hipócrita (talvez seja), minhas máscaras também tem estampas, tampouco acredito que os problemas do mundo irão se resolver sem elas. O que estou tentando fazer é usar um exemplo simples para buscar entender a complexidade dos problemas maiores, os quais nós mesmos criamos e neles nos metemos. Quando foi que o olho ficou maior que a barriga?

"Bebida é água!

Comida é pasto!

Você tem sede de que?

Você tem fome de que?"

Titãs - Comida

Em tempo e para fritar o cérebro: Haveria obrigação moral em praticar uma ação nobre se alguém fosse impactado negativamente por ela? Um ato elevado é caracterizado por seu objetivo ou por seu resultado? A nossa "fome" não sustenta apenas a ilusão dos ricos. Uma boa pergunta seria, a quem ela é mais importante? Quase todas as crianças, mais cedo ou mais tarde, ganharam um videogame depois. Portanto, a primeira consequência, se tivéssemos agido diferente após o surgimento do primeiro entre todos os amigos, seria o fato de que, provavelmente, não haveria emprego para os funcionários das empresas desenvolvedoras de jogos eletrônicos, ou pelo menos não teriam tido bons salários como deve ter sido. Sem falar na estrutura econômica que se estabeleceu em função daquele mercado. Quantos empregos diretos e indiretos surgiram a partir dos videogames e que existem até hoje, já que aquela onda não passou, mas ficou cada vez mais estabelecida? Setores de transporte, de embalagem, de eletrônica, de lojas de departamentos, de alimentação, de segurança, entre outros, surfaram e surfam nela também. É uma rede que se expandiu imensuravelmente e todos dependem dela. Está aí a fonte do cheiro de queimado, como resolver um problema quando dependemos dele?