sexta-feira, 24 de março de 2017

O Mito do Nariz

"Estamos habituados a julgar os outros por nós próprios, e se os absolvemos complacentemente dos nossos defeitos, condenamo-los com severidade por não terem as nossas qualidades."

Um dos primeiros instrumentos que se tem registro foi o relógio de sol. Não é possível datar precisamente o seu surgimento, mas estima-se que os egípcios e babilônicos o tenham desenvolvido. Esses povos perceberam que, ao fincar uma vareta no chão, o movimento do sol provocava uma variação na sombra do bastão, permitindo fixar e prever ciclos de tempos. Esses relógios foram amplamente utilizados até meados do século XVIII.

Com a Revolução Industrial, a partir da segunda metade do século XVIII, ocorreram o surgimento de máquinas e o desenvolvimento de novos processos produtivos. Assim, foi necessário um controle mais rígido do tempo, o que culminou com o aperfeiçoamento do relógio. Além disso, foi criada a máquina à vapor, resultando na necessidade por novos instrumentos. Entre eles, o termômetro e o manômetro, que deram ao homem a capacidade de medir temperatura e pressão, respectivamente, permitindo controlar as caldeiras que evaporavam água e geravam energia térmica.

Com a evolução da tecnologia a partir dos séculos XIX e XX, principalmente com avanços nos campos da elétrica, química e biologia, mais variáveis foram surgindo e, consequentemente, aumentou-se a necessidade por novos tipos de instrumentos. Foram desenvolvidos medidores para pH, corrente e tensão elétricas, rotação, velocidade, volume, distância, vazão, peso, concentrações de sólidos e líquidos, e centenas ou milhares de outros mais. Soma-se a isso a exatidão cada vez maior com que fomos capazes de realizar essas leituras. Hoje, por exemplo, a precisão do relógio atômico é de um bilionésimo de segundo.

E foi justamente pensando em instrumentação que veio à minha mente a seguinte pergunta, que tipo de instrumento ou ferramenta permite que leiamos um ser humano com precisão? Como podemos garantir sinceridade, arrependimento, honestidade, bondade ou maldade em uma pessoa e sem margem para erros? Se o reconhecimento da verdade depende de uma opinião, de minha sensibilidade, então é uma avaliação subjetiva. Duas pessoas podem inferir intenções diferentes ao analisar o mesmo comportamento em um terceiro indivíduo. O diagnóstico dependerá da experiência pessoal, da realidade particular, aquela que foi construída ao longo da vida de cada observador. Temos, então, que dar o braço a torcer à possibilidade de estarmos errados em nossas conclusões. E se há uma chance de estarmos enganados, o fato de não podermos medi-la com precisão invalidará os juízos que fazemos. Ou somos infalíveis em nossos julgamentos?

Para nos ajudar contra as ciladas de nossas subjetividades, leis foram criadas. São conjuntos de regras e procedimentos a serem seguidos. O intuito é manter a sociedade em equilibro ao invés de pender aos caprichos de uma única pessoa ou de um grupo delas (não sei se estamos tendo sucesso).  Isso inevitavelmente implica em dois pontos:

1 – Quem de nós pode julgar uma pessoa sob aspectos diferentes daqueles medidos pelas leis e regras? Se estamos descontentes com os resultados, temos que rever os padrões que criamos para nos proteger, de forma que eles voltem a representar o nosso ideal, mas não podemos simplesmente sobrepor nossas opiniões pessoais como uma realidade soberana. Quem pode dizer que está acima das leis?  Temos que ser pragmáticos com relação a aplicação de regras. E é justamente esse o problema que está ocorrendo aqui, tudo dentro da lei, mas a "massa" não está sendo pragmática (Massa? Já questionei aqui, de quem são nossas ideias?). Reitero para que fique claro, não estou em defensa de A ou B. O que digo é, se nossas leis não nos representam mais, temos que revê-las, mas não colocarmos nossas opiniões pessoais acima do código atual. Isso seria um retrocesso.

2 – Quem pode dizer que nunca quebrou uma lei? Não refiro-me a ter sido pego necessariamente, mas faço alusão a algum ato que infringiu um regulamento, independente da gravidade. Se ninguém puder atirar a primeira pedra, quem poderá dizer-se justo para julgar? (Já falei disso aqui.) Portanto, podemos concluir que as leis não servem para nos aprovar, ou para nos classificar como pessoas boas ou más, mas servem apenas para nos deixar cientes e nos proteger das maldades que somos capazes de fazer.

Desviando: ISO é uma organização não governamental fundada em 1947, cuja função é promover a normatização de produtos e serviços. Ela condensa normas técnicas que estabelecem modelos para sistemas da qualidade de empresas. Entre esses conjuntos há, por exemplo, a ISO 9000. Um sistema da qualidade corporativo define, resumidamente, um conjunto de diretrizes que orientam a execução dos processos e a manufatura de produtos por uma dada empresa. Isso garante que o resultado final esteja sempre sob controle, problemas sejam eficazmente identificados e resolvidos, e planos de melhoria contínua sejam colocados em prática. Um dos pontos principais é que as atividades sejam executadas e os produtos sejam confeccionados sempre da mesma maneira, independente da pessoa que esteja governando, administrando, ou executando.

Voltando: Percebendo que as pessoas ficavam a mercê das regras e determinações pessoais de reis, governantes, magos etc, Moises escreveu as leis em um livro. Isso garantiria um padrão de governo independente de quem estivesse no poder, permitindo estabelecer o povo que estava em formação. Esse livro foi um dos primeiros planos diretores, um dos primeiros sistemas de gestão da qualidade. Uma vez que as leis estivessem escritas, o povo não se submeteria mais às vontades particulares de homens e estaria finalmente livre.

Mesmo nesse caso, as regras não serviram para qualificar as pessoas como boas ou más, mas apenas para revelar a maldade que elas eram capazes de cometer. Portanto, estariam protegidas delas mesmas. Mario Sergio Cortella disse certa vez que não é a ocasião que faz o ladrão, mas ela apenas o revela.

Paralelamente, aquelas mesmas regras escritas por Moises revelavam a plenitude. Elas apontavam para o fato de que se houvesse um ser capaz de cumprir todas as regras, ele seria perfeito. Ele poderia atirar a primeira pedra e, consequentemente, medir e julgar, sem margem para erros, as atitudes e intenções do coração de uma pessoa. Enigmaticamente, um dia apareceu uma pessoa apresentando-se como esse Ser. Porém Ele não julgou, mas se propôs a "pagar" pela condenação de cada um dos julgados, contanto que eles se dispusessem a ser boas pessoas, mesmo que não conseguissem, pois um dia Ele atenderia às suas disposições sinceras.

"Então, erguendo-se Jesus e não vendo a ninguém senão a mulher, perguntou-lhe: Mulher, onde estão aqueles teus acusadores? Ninguém te condenou?
Respondeu ela: Ninguém, Senhor. E disse-lhe Jesus: Nem eu te condeno; vai-te, e não peques mais."

João 8:10,11

O que me deixa atordoado é a seguinte dúvida, o que esse Ser quer que eu aprenda com a história desse acontecimento, mas eu não estou conseguindo enxergar? Parece aquele caso em que um mosquito pousa em nosso nariz, mas precisamos de um espelho para conseguir acertá-lo.

Se os maus tem lampejos de bondade, que mundo construiriam se pudessem ser indiscutivelmente bons? Quem se dispõe a passar por cima de seus julgamentos pessoais, uma vez que eles poderiam ser usados para a sua própria condenação? Se te oferecessem a possibilidade de torná-lo uma pessoa puramente boa, mas para isso você tivesse que deixar de lado os seus anseios por vingança e justiça, você aceitaria? Queremos mesmo ser bons? Pensando nessas perguntas, acho que encontrei a mosca que pousou no meu nariz, Deus não é o deus que nós insistimos em querer ser.

Acho que descobri porque não conseguimos sair da Caverna de Plantão, sempre que olhamos para a saída, há um Nariz fechando a entrada.


Abraço: Ao PER, com quem discuti um pouco sobre esse assunto, quando surgiu a ideia para o texto.

domingo, 12 de março de 2017

De Quem São Nossas Ideias?

"Uma ideia torna-se uma força material quando ganha as massas organizadas."
Karl Marx


Quando criança, eu sempre preferi brincar ao ar livre, assistir desenhos animados e jogar videogame a ler um livro. Leitura, para mim, resumia-se a livros escolares com o objetivo de responder corretamente as questões das provas. Lia-os e memorizava os parágrafos daqueles capítulos que seriam assuntos para os testes.

Eu li dois livros de história até meus dezoito anos. Ou foram três? Sim, foram três. Inclusive, quando li o último eles ainda eram livros de estória. Lembro-me deles, "Na Mira do Vampiro", "A Desintegração da Morte" e "Aventuras de Xisto". Após os 18 anos, li alguns durante a preparação para o vestibular. Foi aquela leitura obrigatória para poder fazer a prova e ingressar em uma faculdade. Entre eles, "O Primo Basílio", "A Relíquia", "Dom Casmurro", "Memórias Póstumas de Brás Cubas", "O Cortiço" e mais um ou dois. Todos foram lidos por obrigação. Depois dos 20 anos, ganhei um ou outro livro de presente e os li, desta vez sem a obrigação, mas também sem pretensão alguma. Continuava preferindo o videogame (pois é, mesmo nessa idade), o futebol, a bicicleta etc.

Desviando: Ao lembrar-me de minha época de vestibulando, veio à minha mente o discurso de um professor do curso preparatório para o vestibular, em 1998 (ou 1999?). Ele dizia, "por toda as suas vidas, mesmo aqui no curso preparatório, vocês tem sido treinados para responder perguntas, pois está na hora de passarem a fazê-las".

Voltando: Sabe quando meu comportamento com relação a leitura mudou? Quando eu descobri que ler não estava necessariamente ligado a uma obrigação. Ou melhor, mudou quando eu descobri que eu poderia escolher o assunto que me interessava. Parece óbvio? Para mim não era.

Se eu fosse um militante pós moderno, aquele que não limita-se apenas a causas políticas, mas que também tenta interferir nas estruturas sobre as quais a sociedade se alicerça, eu poderia usar a minha história para dizer que os pais precisam educar seus filhos de forma diferente do que eu fui educado. Diria que devem deixá-los, desde pequenos, escolherem o que desejam ler. Eu talvez diria, inclusive, que devemos atuar nas escolas para que as crianças não sejam obrigadas a lerem livros que não querem, pois se deixarmos nas mãos dos pais, eles não saberão como criar seus filhos. E completaria dizendo, "abaixo as obrigações, um viva a livre escolha". Enfim, aquele tipo de discurso bem Neomarxista. Afinal de contas, uma árvore se conhece pelos frutos e, olhando para nós, só podemos concluir mesmo que a educação da época que nos criou foi péssima. Tentei ser irônico, mas pensando no mundo de hoje, acabei ficando na dúvida.

Porém, não luto esse tipo de causa. Tenho absoluta certeza que, se hoje aprendi que posso escolher o que eu quero ler e, principalmente, que posso fazê-lo, foi porque um dia li muitas coisas que não queria. Se não ficarmos atentos com algumas ideologias, nós podemos nos esquecer que não nascemos preparados. Em dado momento de nossas vidas, nós dependemos de escolhas feitas por outras pessoas, na maioria das vezes nossos pais, que queriam nos ensinar a fazer perguntas e não somente a respondê-las (já falei sobre confiança aqui). Liberdade não é necessariamente sinônimo de autonomia. Então, se nos entregarmos a influências modernas sem necessariamente pensar antes sobre elas, acabamos nos tornando uma peça, em um tabuleiro, que acha que é o jogador (já falei sobre esse tema aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, entre outros – pelo jeito sou bem repetitivo, preciso mudar meu repertório).

Não estranhamente, tudo isso veio como um flash em minha mente quando li essa reportagem. Obviamente, precisei traduzir em palavras o piscar das ideias. Ela discorre sobre o fato de que, entre os mamíferos, apenas algumas espécies de primatas, incluindo a nós, desenvolveram a visão tricromática. São olhos com três tipos diferentes de células sensíveis a luz, que nos dão a capacidade de enxergar diferentes cores. Essa evolução teria ocorrido em função dos alimentos, para não morrermos de fome, permitindo que pudéssemos distinguir as frutas maduras das frutas verdes. A prova, segundo o texto, foi um experimento com 80 macacos rhesus (esse tipo de macaco, por uma condição genética, pode apresentar dois ou três receptores na retina). Metade da população do teste, com visão tricromática, conseguiu encontrar mais facilmente as frutas para se alimentarem do que a outra metade sem aquele tipo de visão. Infelizmente, a reportagem não citou referências e também não apresentou dados sobre os demais seres vivos existentes no planeta com seus diferentes tipos de visão, para os que podem ver.

Desviando: Você sabia que o fator Rh do sangue foi descoberto através de pesquisas com o macaco rhesus, em torno de 1940 pelos médicos Karl Landsteiner e Alex Wiener? Por isso a sigla Rh.

Voltando: Se a reportagem for verídica, parece-me que achamos uma resposta para a visão em cores, que, segundo meu ponto de vista, vem ao encontro de nossa necessidade de nos sentirmos especiais. Perceba que a capacidade de enxergar diferentes cores foi associado a uma evolução. Porém, raciocine comigo, em todas as espécies de seres vivos que existem no mundo, considerando as que enxergam e as que não enxergam (não se esqueça da vegetação também), nós e alguns poucos primatas, pelo menos entre os mamíferos, somos os únicos que temos a visão tricromática como um sinal de evolução, já que ela nos ajuda a não morrermos de fome. Sinceramente? Isso não é evolução, é no máximo uma diferenciação. Vou além, isso é equilibrar o jogo ao nosso favor, pois somos tão limitados que precisamos, além de enxergar, ver colorido para conseguirmos alimentos, enquanto a maioria dos seres vivos do planeta vivem muito bem, às vezes melhor e mais eficientemente, sem esse "dom". Queremos ou não queremos ser considerados especiais? Eu até acredito que somos mesmo, mas por outros motivos.

Tentar propagar esse tipo de ideia a respeito de evolução é ingenuidade ou é proposital? Ela sugere um padrão do que é bom e do que é ruim. E já citei Chesterton aqui, quando ele disse no livro "Ortodoxia", que classificar a natureza sob um prisma moral é algo que só existe na nossa mente, mas não na natureza. Portanto, se esse tipo de "interpretação" dos fatos é proposital, qual seria o objetivo? Querem me ensinar a fazer perguntas, ou querem que eu apenas engula respostas? Inclusive bem indigestas, às vezes.

Enfim, remetendo novamente a influências modernas, há um jogador? Quem concluiu as pesquisas e quem escreveu a matéria seriam jogadores ou peças? Há mais alguém em outro nível além deles? E eu, como encaixo-me nesse tabuleiro? E olha que não entrei no mérito da veracidade da reportagem, estou assumindo que é real.

Pensando na citação inicial deste texto, na frase de Karl Marx, por que alguém iria querer que uma ideia alcançasse as massas para tornar-se uma força material? Conhecer a origem de uma ideia não é o objetivo final, mas apenas parte do processo para descobrir onde se quer chegar com ela. Definitivamente, parece ser muito prudente fazer perguntas ao invés de apenas submeter-se às respostas. Desta maneira, pelo menos, poderemos escolher o jogo do qual vamos querer ser as peças.

"Todo mundo está procurando alguma coisa
Alguns deles querem te usar
Alguns deles querem ser usados por você
Alguns deles querem abusar de você
Alguns deles querem ser abusados"