domingo, 17 de julho de 2016

Os Artistas Passam, o Espetáculo Continua

"O tempo que passa não passa depressa. O que passa depressa é o tempo que passou."

Bobos da corte eram funcionários encarregados de fazerem reis e rainhas rirem, isso lá pelas tantas dos séculos XIV a XVI. Justamente por causa dessa incumbência, eles eram as únicas pessoas autorizadas a criticarem os monarcas sem que corressem risco de vida. Entre suas peripécias, muitas vezes apontavam os vícios e as ignorâncias da sociedade de forma bem grotesca. Por isso, com exceção do casal real, as pessoas sempre consideravam os bobos bem desagradáveis.

Não devemos confundir bobo da corte com palhaço. A principal diferença é que este último tem como base a ingenuidade e a inocência, expondo a si mesmo ao escárnio, enquanto o bobo da corte desnudava o ridículo e as incoerências das autoridades e da sociedade. Pensando na etimologia da palavra, pelo menos para o Português, palhaço vem do italiano paglia, que quer dizer palha. Por volta do século XVI esse material era muito utilizado para preencher colchões de dormir. Os precursores das palhaçadas vestiam-se do mesmo tipo de pano usado nos colchões, preenchendo as partes mais salientes do corpo também com palha, para poderem dar suas cambalhotas sem se machucarem.

Eu nunca tive a chance de conhecer um bobo da corte, em função do século que eu nasci, claro. Porém já vi bastantes palhaços. Muitas crianças tem medo deles. Eu não lembro-me de temê-los, mas de fato, não eram seres sobre os braços de quem eu me atirava. Eu gostava de manter certa distância e confesso que ainda hoje prefiro rir de longe.

Enquanto lembrava de palhaços e da minha infância, eu me dei conta de algo "inédito". Até por volta dos meus vinte e cinco anos de idade, eu, inconscientemente, mantive-me separado do conceito de adulto. Como assim? Durante a maior parte a minha vida, os meus pais foram adultos e eu fui criança, adolescente, ou  jovem. Dias atrás, percebi que aos vinte cinco anos eu entrei em uma faixa de idade que, enquanto criança, eu vi os meus pais terem. Isso mudou drasticamente a forma de olhar para mim mesmo, foi quando eu "percebi" que eu sou adulto. Não que eu não soubesse disso a mais tempo, mas é diferente quando você realmente toma consciência disso e deixa de ser apenas uma ponderação. Parece que quando esse tipo de percepção acontece os fatos tem mais peso. Já falei aqui, por exemplo, que faz muito tempo que eu sei que a morte existe, mas apenas poucos anos atrás eu ponderei de fato que ela está a um suspiro de distância de cada um de nós.

Desviando: Mario Sergio Cortella disse nesse vídeo que o primeiro ato de uma pessoa após o nascimento é inspirar o ar. O último ato, imediatamente antes da morte, é expirá-lo. E que entre esses dois momentos existe vida.

Voltando: Já que tocamos no assunto morrer, lembrei-me de outra abstração (é intrigante como um tema puxa outro e tudo parece se conectar – espero que se conecte). A morte é algo que está ao nosso redor, sempre presente, e todos sabemos que o nosso dia chegará. Ela é tão natural quanto o nascimento. Porém, tratamos o fim bem diferente do começo. A morte nos espanta mais do que o nascimento nos arrebata. É estranho como, apesar de tão presente e trivial durante toda a nossa existência, nós não nos adaptamos a ela. Acho que isso acontece porque é uma experiência individual e consciente. Quando uma criança nasce, a casa se enche e a mente do bebe é como um computador vazio que ainda precisa ter os softwares instalados (como diria um amigo meu). A criança não faz ideia do que está acontecendo, por isso o nascimento é muito mais uma experiência de quem já está aqui do que de quem está chegando, pelo menos de forma lúcida. No dia do nosso fim, a viagem será uma experiência mais de quem está partindo, solitária, deixando para trás todos os que ficam e consciente do que se passa (salvo algumas exceções). Aliás, fico curioso ao tentar imaginar quais seriam nossas ansiedades se existisse uma fila para nascer.

Até certo ponto, nós podemos considerar que a vida nos generaliza, mas a morte nos individualiza. Quando nascemos, entramos para o grupo. Quando morremos, deixamos o grupo e vamos sozinhos. Acredito que, naquele momento final, devemos ter a sensação de que o tempo passou mesmo, de que não era apenas uma história para crianças, como aquelas que contamos para que se mantenham afastadas do perigo. Acredito que, naquele instante, nós devemos sentir um grande peso por termos evitado pensar no assunto, da mesma forma como eu prefiro manter os palhaços a certa distância, pois do contrário teríamos tido coragem, ou motivação suficiente para fazer escolhas diferentes.

Desviando: Depois que a vela é acesa, não precisamos fazer mais nada até que ela se consuma até o final. A diferença entre nós e uma vela? Ela não sabe que está acesa. Ou isso seria uma semelhança?

Voltando: Para mim, elucubrar sobre tudo isso é bom e ruim. É bom pois permite reduzir um pouco o peso lá no final, ao guiar-me por alguns lampejos de escolhas que realmente importam. É ruim, pois sinto-me como um doente terminal, que sabe do valor de fazer só o que realmente importa, mas sem a doença propriamente dita, sobre a qual eu poderia apoiar-me para que a sociedade não me considerasse um lunático, já que me falta a coragem. Enfim, eu estou vivendo esta fase, de trabalhar a ousadia na tentativa de aproveitar melhor o tempo sem ser considerado um desequilibrado (já falei disso aqui). Tenho que dar um jeito de ser considerado no máximo um excêntrico, pois está mais na moda e a sociedade considera a moda o máximo.

"Tempo, fique parado
Eu não estou olhando para trás
Mas quero olhar ao meu redor, agora
Tempo, fique parado
Ver mais das pessoas
E dos lugares que me rodeiam, agora.
(...)
O verão está passando rápido
As noites ficando mais frias
Crianças crescendo
Velhos amigos ficando mais velhos"

Eu não disse que tudo tinha que se conectar de alguma maneira? Pois então, o tempo é um grande bobo da corte de pseudo reis sentados em seus pseudo tronos, que estão sendo ridicularizados por fazerem bobagens para parecerem sérios. Porém, existem alguns palhaços que, percebendo suas ingenuidades, passaram a rir ou a chorar de si mesmos. Eu estou tentando migrar para o grupo dos palhaços, que fazem bobagem para parecerem bobos.


Agradecimentos: A PB, de quem tirei a ideia de que um bebê é como um computador vazio e a SR que sugeriu o tema sobre o tempo que passa.

quarta-feira, 6 de julho de 2016

Há Coisas Que Ganhamos Mesmo sem Acreditar Nelas

"Mesmo as pessoas que dizem que tudo está predeterminado e que não podemos fazer nada para mudá-lo, olham para os dois lados antes de atravessar a rua."
Stephen Hawking

Foi Gregor Mendel quem, em 1866, estabeleceu pela primeira vez, através de estatística, padrões de hereditariedade em algumas espécies de ervilhas. Hoje, já sabemos que a genética é o que nos determina biologicamente, geração após geração. Em síntese, um conjunto de características herdadas de nossos antepassados, todas codificadas em cadeias moleculares e armazenadas em cada uma de nossas células. Nosso código genético possui todas as informações necessárias para "montar" cada estrutura de nosso corpo, desde um fio de cabelo até um órgão extremamente complexo, como o nosso cérebro. Porém, e os nossos comportamentos? Eles estariam também registrados nesses códigos? Se sim, nossas formas de agir, pensar e reagir poderiam ser pré-definidas? Nossa personalidade vem "pronta de fábrica", ou é construída ao longo de nossa vida?

É muito interessante ver um pássaro chocando um ovo, ou uma criança com minutos de vida sugando o peito da mãe pela primeira vez, ou ainda um bezerro tentando levantar-se segundos após ter nascido. De onde vieram estes comportamentos, uma vez que não são conscientes? Estariam registrados nos códigos genéticos?

Desviando: É prudente tomar muito cuidado ao dizer que comportamentos podem ser definidos geneticamente, o que chamamos de determinismo genético. Esse raciocínio pode levar a perguntas como, quanto uma pessoa é culpada de um crime de fato e quanto ela não teve opção e foi programada a tais tendências? Também surgiram na História pessoas que tentaram eliminar alguns grupos étnicos baseando-se na ideia de perfeição genética. Tudo bem, naquele caso as motivações foram outras e o DNA teria sido usado apenas como subterfúgio. Mas já parou para pensar na lenda do Tarzan? Homem branco, olhos claros, filho de aristocratas, criado por gorilas, que conseguiu se desenvolver sozinho mesmo perdido em uma floresta, que virou líder dos símios e que, de volta ao mundo civilizado, também apresentou habilidades físicas superiores aos demais seres humanos. Pois então, essa lenda foi criada em 1914.

Voltando: Existem sim tendências de comportamentos armazenados em nossos genes, mas é importante lembrar que a classificação do que é bom contra o que é ruim somos nós que fazemos e não a Natureza. Aliás, justamente por não lembrarmos disso, nós temos dificuldade em aceitar que alguns comportamentos sejam tendências genéticas. Eu já falei aqui, por exemplo, que não temos dificuldade nenhuma em associar diferentes comportamentos entre diferentes raças de cachorro, mas que quando olhamos para nós, tendemos a desconsiderar a possibilidade de que ansiedade, passividade, impulsividade, entre outros, possam "estar no nosso sangue". Até levantei a pergunta, nos medicamos para voltar a ser, ou para deixar de ser?

Vamos pensar em uma máquina, pois são ótimos exemplos. Se um computador conseguisse imitar a consciência humana em todos os seus aspectos, poderíamos dizer que ele possui personalidade? Não seria apenas um software extremamente complexo executando linhas de código? Pois então, nós fomos programados, ou somos livres? Quanto de nós está mesmo sob nosso controle? A pergunta central, ou o devaneio de hoje: e a nossa liberdade?

Eu acredito que o livre arbítrio é impreterivelmente resultado de sermos pretendidos. Se admitirmos que fomos colocados aqui, propositadamente, só nesta condição podemos acreditar que nossa liberdade existe. Pense no contrário. Se considerarmos que tudo não passa de probabilidades, então não temos escolhas. Nós seremos o resultado de pura causalidade, de eventos baseados em causa e efeito. Uma bola de bilhar batendo em outra, que bate em outra, que bate em outra e assim por diante.

Imagine que você encontrou alguém com quem deseja passar o resto dos seus dias. Se você acredita que tem livre escolha, você sabe que pode parar de procurar um(a) companheiro(a), que você tem mérito na manutenção do seu relacionamento, que você está construindo algo com alguém, que você está do lado de quem você escolheu continuar ao lado. Porém, se você considerar que a existência não passa de "lançamento de dados", você terá que acreditar que tudo que ocorreu no Universo, inevitavelmente, levaram-te até o momento em que reações bioquímicas do seu corpo fizeram você se aproximar do(a) seu(ua) amado(a). E pior, tudo continua sendo apenas reações, causa e efeito que prendem você a pessoa "amada". Neste caso, você não tem escolha, nunca teve. Pura causalidade e você teria que se perguntar, o que é o amor, o respeito, as conquistas, o talento, a própria vida? Uma realidade, ou uma ilusão?

Desviando: Certo homem tinha a função de cruzar cidades para ajudar pessoas a tornarem-se indivíduos melhores. Porém, havia uma cidade específica, cujo povo ele detestava. E o que o homem temia aconteceu, foi incumbido de ir também àquele local odiado e mostrar às pessoas como poderiam ser mais evoluídas. Sem cerimônias, ele negou, pois não queria que aquele povo se tornasse melhor, queria sim que todos desaparecessem da face da Terra. Porém, acabou indo obrigado. Literalmente capturado, ele foi transportado até a cidade. Uma vez no povoado, sem outra alternativa, concluiu com sucesso o seu trabalho, mesmo ainda abominando aquelas pessoas. Pois bem, essa história sugeriu-me duas perguntas. Primeira, o livre arbítrio daquele homem foi suprimido? Tenho para mim que ele possuía uma função, por isso, se quisesse mantê-la, era obrigado a executar a sua tarefa. Porém, o direito de amar ou odiar as pessoas daquela cidade não lhe foi tirado. A mente dele não foi transformada, como um software de computador, para que ele obrigatoriamente passasse a amar aquela gente. A individualidade dele foi respeitada. A segunda pergunta, quem pode garantir que o objetivo daquela jornada não seria ensinar justamente o instrutor a ser uma pessoa melhor? Para quem se interessou pela história, o nome do homem era Jonas e o nome da cidade era Nínive.

Voltando: Qual a reposta correta? Fomos ou não fomos colocados aqui? Somos ou não somos livres? Quando algo parece ter várias respostas não quer dizer que signifique tudo necessariamente, mas sim que ninguém conhece ainda qual é a verdade.

O meu palpite? Seguir regras e códigos não significa não ter livre arbítrio, assim como não segui-los, não significa ser livre. Todas as nossas escolhas, por mais pesadas ou mais leves que sejam, estão relacionadas aos ganhos que pretendemos, a quão valiosos os consideramos. Se nunca soubéssemos que há uma opção diferente daquela que escolhemos e vivêssemos presos a uma única alternativa como realidade, nesse caso sim, nós não teríamos livre arbítrio. A verdadeira liberdade é ter opções de individualidade. É nunca ser como o lado de uma moeda, que jamais saberá que o outro lado existe.

Enfim, você é livre para escolher se prefere acreditar na causalidade ou na liberdade. Ninguém conseguirá provar o contrário do que você optar, pois se fosse possível provar, isso inevitavelmente tiraria seu livre arbítrio.