"Pensar me irrita, pois antes de começar a pensar eu sabia muito bem o que eu sabia."
O câncer é uma doença causada pelo crescimento descontrolado de tecido celular. Ele pode acometer qualquer órgão do corpo humano e, por isso, existem mais de cem tipos. Segundo estatísticas do INCA – Instituto Nacional do Câncer – em 2020 surgiram mais de 626 mil novos casos no Brasil, igualmente distribuídos entre homens e mulheres. Além disso, em 2019 ocorreram mais de 232 mil mortes causadas pelo câncer, com 47% delas relacionadas às mulheres.
Por que comecei esse texto falando sobre o câncer? Pois ele tornou-se um exemplo prático na minha tentativa de compreender nossa realidade, em uma de minhas introspecções – acho que eu estava no trânsito naquele momento. Eu fiquei pensando se é justo de nossa parte, ou coerente, criticarmos o que chamamos de "injustiças" praticadas por nossos antepassados e, atualmente, por nós mesmos enquanto propagadores delas.
Refiro-me à conquista do "conforto" usufruído por nossa geração, executada pelas civilizações anteriores – usei aspas na palavra conforto, porque seu significado vai além de repousar o corpo sobre uma poltrona aconchegante. Atualmente, aquelas conquistas são, em certa medida, classificadas como "injustiças" praticadas. Adianto que concordaria com esse posicionamento, quanto aos conceitos éticos e morais que ele pode carregar. Porém, não consigo deixar de observar que nós, porta-vozes de tais reprovações, não abdicamos do "conforto" proporcionado pelas mesmas "injustiças". Parece-me – não consegui concluir cabalmente – que nossa "luta revolucionária" no mundo das ideias não avança além daquilo que abalaria o mesmo "conforto". Ou o "eu coletivo" enxerga algo que o indivíduo não vê.
Deixe-me voltar ao câncer para explicar de forma prática. Imagine que eu descubra uma cura para essa doença. Aliás, o simples fato de fazer essa descoberta carrega em si uma bagagem de "injustiças" passadas – base para a formação intelectual que me permitiu alcançar esse tipo de "conforto" –, mas não seguirei nesse sentido, pois não desejo me delongar demais. Pois bem, com a cura em mãos, eu pude elencar pelo menos três alternativas: (1) não faço absolutamente nada e privo todos da cura; (2) custeio a produção do medicamento, a partir do meu próprio bolso, para toda a humanidade; (3) cobro pela produção e pelos menos aqueles que puderem pagar terão acesso a cura.
As opções (2) e (3) também despertam em você a inquietação que provocaram em mim? A alternativa (2) não lhe sugere que minha capacidade de custear o remédio para toda a humanidade, apesar de ser aparentemente ética e moralmente elevada, carrega consigo uma série de "injustiças", "desigualdades" e "acúmulos" anteriores, que teriam me capacitado a esse tipo de conforto? A alternativa (3) não se apresenta a você, também instintivamente, tão "injusta" e "desigual". Esse é o meu ponto, devo confiar no que meu instinto está sussurrando ao meu ouvido? Seria possível que esse impulso estivesse se disfarçando de razão?
Talvez alguém diga que a melhor alternativa seria cobrar preços justos. Eu pensei nisso também, mas não consegui definir justiça. Continuei me imaginando detentor do conhecimento da cura do câncer e tentei ponderar um preço justo. Com ele, cem por cento da humanidade teria condições de comprar o medicamento? Eu teria condições de decidir quem vai poder pagar? Qual é o número de pessoas que ficam de fora que faria tudo ser justo? Então, seria mais justo que ninguém tivesse acesso à cura?
Eu não estou tentando me convencer de que o Homem não pratica injustiças. Longe disso... Porém, se eu posso escrever um texto na internet, condensando a bagagem intelectual que adquiri até aqui, incluindo as condições socioeconômicas que me permitem "pagar" pelo acesso à rede, significa que o resultado da tentativa do Homem de melhorar o mundo, mas não de o estragar, me alcançou, uma vez que a condição original de todos nós é procurar comida na mata, levar picadas de mosquitos e nos entocarmos em cavernas fugindo de feras. Assim, o que eu estou propenso a considerar é que, talvez, o meu privilégio não esteja, nem sequer indiretamente, relacionado a subtração de outrem, pois, em primeira instância, poderíamos ter optado por não criar o "conforto" para não sermos "injustos".
Desviando: Em forma de agradecimento, digo que o que eu recebi é vinte, cinquenta, ou oitenta por cento – se não for mais – resultado da batalha de outras pessoas. Há muito tempo, em um programa de televisão, pessoas na rua tiveram a oportunidade de deixar mensagens à cantora Sandy. Uma delas disse que a cantora não sabia o que era a vida de verdade, pois nasceu em "berço de ouro" e teve todos os "privilégios do mundo". Achei a resposta da Sandy genial. Não lembro exatamente as palavras, mas ela disse que desfrutar dos privilégios que tinha recebido era uma forma de honrar os sofrimentos que o pai dela suportou para que ela, um dia, não passasse por eles também. Ela concluiu dizendo que seria ingratidão da parte dela ignorar as lutas do pai, contra todas as dificuldades, se abdicasse do favor que recebera dele. Eu fiquei tentando decifrar, entre o inquiridor e o respondente, quem está mais longe da compreensão sobre o que é a vida?
Voltando: Na Natureza não existe justiça e igualdade. Portanto, não me parece que o Homem esteja tentando as retirar do mundo, mas estaria tentando inseri-las. Todo o "conforto" que usufruímos hoje não são intrínsecos à Natureza, mas são resultados de esforços, e às vezes ao custo da própria vida, dos humanos do passado.
Permita-me dar outro exemplo da crítica do Homem Moderno. Aquele discurso de que a educação tem sido praticada de forma desigual. Não é o que dizem, "todos têm direito à educação"? Entretanto, quando essa última máxima é afirmada, o que se está querendo dizer? Primeiro, temos que concordar que mesmo para o Homem da Caverna, que desenhava nas pedras e colocava os "alunos" diante delas para "educa-los" a respeito de sua história, a educação envolvia custos. Então, seria leviano descartar essa percepção enquanto tentamos definir o aforismo de que todos tem direito a educação. Pois bem, ele significaria que todos tem direito a educação que puder "pagar"? Ou que todos teriam o direito que alguém assumisse os "custos" da educação? Ou "somente" que ninguém poderia ser privado do seu direito de obter educação? A máxima foi criada para definir a obrigatoriedade de dar, ou a proibição de vetar? (Considere a abrangência das palavras "pagar" e "custos" sugerida pelas aspas).
Desviando: Aliás, confesso que cometi um erro grave no parágrafo anterior. Nem sequer coloquei em pauta a pergunta, "o que é educação?". Ela pode fazer com que eu mude completamente minhas dúvidas. O que era a educação para o Homem da Caverna? O que é a educação para nós? Deveriam ser diferentes? Ela seria um meio para arrumar um bom emprego, ter uma boa vida e poder desfrutar de "confortos"? Minha avó educou nove filhos sem saber ler e escrever. Tenho um colega que frequentou um curso em uma faculdade pública brasileira, mas que não tem uma vida melhor do que teve a minha avó. Aliás, sob um aspecto mais transcendente, posso dizer que dificilmente a vida desse meu colega vai superar a qualidade de vida da minha avó. Então, novamente, o que é educação? Ela está relacionada ao quê? Como podemos medi-la? Para que ela serve?
Voltando: Eu também já falei aqui sobre a complexidade de classificar ideais moralmente elevados, tanto do ponto de vista conceitual quanto do ponto de vista prático. E, de certa forma, estou estendendo a mesma discussão. Quando colocamos em xeque as conquistas, ou "injustiças", do Homem do passado, o que estamos pedindo em essência? Para voltar à vida selvagem? Para que "paguem" pelo nosso "conforto" – ou pelo "conforto" dos outros? Como acumularíamos para pagar por outros? O acúmulo, em seu âmago, não seria parte do que criticamos? Apenas tirar o conceito de moeda do meio das relações humanas nos tornaria mais justos realmente? Nossos "ideais revolucionários modernos" estão tentando mesmo melhorar o mundo, ou apenas expandi-lo?
Para que não pensem que estou sendo tendencioso em meu discurso, não acho que estamos obtendo sucesso em inserir a justiça no mundo, mas tampouco acredito que estejamos a retirando, pois ela não existe intrinsecamente à Natureza, quiçá em nós. Parece-me sim que as ambições do Homem Moderno permanecem iguais àquelas do Homem da Caverna: domínio, pelo porte do fogo; privilégio, por usufruir da roda; direito, em ter acesso à Matemática. A única diferença no tempo seria a escala do alcance idealizado.
Quero dizer, nos faltaria apenas que o mundo que construímos fora da Caverna fosse expandido, de uma forma ou de outra? Estamos mesmo satisfeitos com o que nos tornamos, bastaria multiplicarmos? Nós deixamos mesmo de ser Homens da Caverna? Ou ainda, os ideais que concebemos dentro dela seriam mesmo suficientes para deixarmos de sê-lo? Quando nossos anseios migrarão do que está fora para o que está dentro?