"O mundo recompensa com mais frequência as aparências do mérito do que o próprio mérito."
No livro "Simulacros e Simulação", Jean Baudrillard começa introduzir seus conceitos sobre hiper-realidade no seguinte trecho: "A Disneylândia é colocada como imaginário a fim de fazer crer que o resto é real, quando toda Los Angeles e a América que a rodeia já não são reais, mas do domínio do hiper-real e da simulação. Já não se trata de uma representação falsa da realidade (a ideologia), trata-se de esconder que o real já não é o real e, portanto, de salvaguardar o princípio de realidade. (...) O mundo quer-se infantil para fazer crer que os adultos estão noutra parte, no mundo 'real', e para esconder que a verdadeira infantilidade está em toda parte, é a dos próprios adultos que vêm aqui fingir que são crianças para iludir a sua infantilidade real."
Desviando: Apenas como curiosidade, a personagem Neo, no filme Matrix, usa o mesmo livro citado no parágrafo anterior para guardar os programas de computador que desenvolve.
Voltando: Eu li aquele trecho da obra de Baudrillard coincidentemente na mesma ocasião em que ponderava sobre os contemporâneos embates sociais em países ocidentais democráticos. Então, cheguei à conclusão que as lutas são somente simulações da resistência real. Seria como compará-las a uma suposta tribo indígena restaurada pela civilização atual, que, confinada e protegida, passa a crescer em número de indivíduos mais do que conseguiria a virgem e morta tribo real. O exemplar moderno seria uma simulação, nunca o original. Em suma, a finalidade da dissimulação é tirar de nós a habilidade de distinguir entre realidade e fantasia.
Em países ocidentais democráticos, as batalhas são utilizadas para promover o ideal de democracia e esconder duas possíveis observações: primeiro, o dia em que a democracia ideal for colocada em prática, teremos que buscar outro regime; segundo, talvez ela seja isso que já se obteve e nada mais, quer gostemos ou não. Particularmente, voto na segunda opção, inclusive acreditando que ela é uma extensão da primeira. Em outras palavras, ou os embates modernos servem para a sombra da democracia no fundo da caverna de Platão reivindicar a posição de objeto, ou para esconder o fato de que ela não brilha tanto quanto imaginávamos fora da caverna.
Vejamos alguns paradoxos... Luta-se contra a censura publicando críticas e manifestos nos veículos de imprensa tradicionais e também nos modernos. Denuncia-se a agressão contra as mulheres, e a falta de voz delas, entoando cânticos (se assim podemos chama-los) pejorativos à masculinidade e às religiões (não todas) em emissoras de televisão estatais, em "horário nobre", ou até lançando bexigas com sangue, em completa nudez, nas fachadas de igrejas (novamente, não de todo tipo). Delata-se a falta de direitos civis unindo-se civilmente.
Perceba, as razões das pelejas citadas são pautadas em direitos "merecidos". Meu intuito é chamar a atenção para dois pontos somente: ora se enfrenta o mal usando a mesma arma contra a qual se luta; ora calça-se o sapato apertado apenas pelo prazer de descalça-lo, ou melhor, para validar a necessidade por um sapato mais confortável, mesmo que ele já esteja disponível no armário.
Desviando: Usei aspas na palavra "merecidos" no parágrafo anterior, pois tanto a forma como foi escrito quanto a maneira como costumamos nos expressar sugerem que direitos são dados. Porém, quem seriam seus senhores para concedê-los? Antes, direitos não seriam prerrogativas irrevogáveis? Quero dizer, quem tivesse o poder de dar direitos não teria também o poder de os retirar? Nesse caso, não seriam os direitos um meio de opressão ao invés de libertação? Será que já não o são?
Voltando: Portanto, as lutas pró-democracia em países já democráticos são comparáveis a peixes que disputam qual deles consegue ficar mais tempo embaixo d’água. E não estou dizendo que a água não seja necessária, só estou dizendo que se fantasia um ambiente diferente do que é para a brincadeira ter lugar. Uma ilusão é criada para não se deixar perceber que é a realidade a própria ilusão. Simula-se a Serpente para não se enxergar Leviatã no reflexo do espelho.
Em países governados por ditadores, por religiões fundamentalistas, ou por guerrilheiros é onde o verdadeiro combate acontece. Nesses locais são autorizados: a morte de pessoas de gêneros "não tradicionais"; a venda de crianças sob a fachada de casamentos validados por dogmas religiosos; a mutilação genital de mulheres; o assassinato de praticantes de religiões diferentes daquela determinada pelo "Estado"; a extinção de meios de comunicação independentes, inclusive seus constituintes; etc. E como se resiste a concessões legais desse tipo? Quem os socorrem?
Mesmo em países democráticos, na camada daqueles que não se sentem representados pelos "dons quixotes", considere o exemplo de mulheres espancadas pelos maridos. Que tipo de pessoa as consola nos hospitais, as encoraja à denúncia, as acompanha até a delegacia e as acolhe em seu lar quando elas temem voltar para as próprias casas? Pense, que grupo de pessoas é esse? Tenho uma certeza, são anônimas.
A resistência verdadeira acontece em silêncio (já falei de vozes ignoradas aqui), pois as vítimas da tirania real não tem acesso a microfones, câmeras, papel e lápis (ou internet). Enquanto isso, os "cavaleiros" ocidentais, em meio de suas batalhas simuladas, dizem às vítimas genuínas, não com palavras, mas com indiferença: "cada um com seus problemas..."
Observe o meu próprio caso com esse texto, eu não estou trabalhando em prol de libertar as vítimas legítimas de seus opressores, mas estou apenas denunciando (sem muito sucesso, reconheço) problemas que nem ao menos existem. Meu trabalho aqui não faz a menor diferença, na prática, para quem realmente está precisando de ajuda.
Por que tudo isso acontece? Porque nós não queremos lutar de verdade, mas desejamos apenas ser reconhecidos como os heróis na Disneylândia.