"Arre, estou farto de semideuses! Onde é que há gente no mundo?"
Os números são
objetos abstratos da matemática, mas talvez não tenham surgido assim. Nos
primórdios de nossa civilização, quem sabe o "dois" tenha sido representado pelas
asas de um pássaro, o "três" por um trevo, o "quatro" pelas patas de um cavalo e o "cinco" pelos dedos de uma mão.
Mesmo usando números para orientar nosso raciocínio, a necessidade e a capacidade pela contagem é antes disso. Pense em uma sala de teatro. Sem usar qualquer representação matemática, é possível observar dois grupos, o de pessoas e o de cadeiras. Sem pensar em um algarismo sequer, conseguimos concluir qual dos dois grupos é maior e ainda se um cabe no outro. Analogamente a ideia de Einstein, que "nenhum cientista pensa com fórmulas", poderíamos dizer que ninguém conta, agrupa ou calcula com números, mas eles são apenas o idioma. Em outras palavras, um símbolo numérico é somente uma correspondência para uma quantidade, ordem ou grandeza. Já imaginou se, ao aprender a contar na escola, ao invés de "dois, três, quatro, cinco", fôssemos ensinados a "pássaro, trevo, cavalo, mão"? Pode soar estranho, mas é a mesma lógica, apenas mudaram os nomes. Isso significa que a matemática é universal, mas a forma como a representamos não.
Portanto, os algarismos são categoricamente diferentes entre si, mas as distinções não tem significado algum até que lhe atribuamos o nosso juízo de valores. O "dois" só é maior que o "um" quando ambos representam alguma grandeza. Quem sabe em um jogo qualquer, o "um" seja maior que o "dois". Talvez, sob alguma lógica, o "um" e o "dois" sejam até iguais. O ponto que quero destacar é que as diferenças entre os símbolos, apesar de evidentes, não significam nada até que decidamos a base de comparação, a referência, os valores, as grandezas. Antes disso, são só rabiscos.
Onde eu quero chegar? Atualmente, está em voga a inclusão de pessoas "diferentes" – tomo a liberdade de também incluir grupos que são discriminados, pelo fato de o discurso de defesa ser o mesmo. Os ideais partem em favor de pessoas com algum tipo de "limitação" ou "desfavorecimento". Porém, por mais correto que isso seja – e eu concordo que seja –, alguma coisa me parece não se encaixar bem, quando olho para o "herói". Então, resolvi "pensar alto" sobre isso.
Ao observar as diferenças
entre os números, o fazemos baseados em quê? No volume, na massa, na moeda...? Então,
quando verificamos as distinções entre humanos, qual é a base usada para a comparação? Aqui está o equívoco do benfeitor em sua luta em prol dos "desafortunados", é ele quem tem decidido o significado dos "números" e seu juízo de valores se apoia nas vantagens e desvantagens. Tente fazer um
exercício mental, tire o olhar do ponto de vista dos ganhos e das perdas, do
poder e do não poder e conclua, que diferença fazem as “diferenças”? As distinções são claras e universais, mas, como no caso dos números, a forma como as enxergamos não, elas perdem o significado.
Existe uma série chamada "The good doctor" e uma breve sinopse encontrada no Google é a seguinte: "Um jovem médico com autismo vindo da calma vida do interior começa a trabalhar em um famoso hospital. Além dos desafios da profissão, Shaun Murphy precisa provar sua capacidade a seus colegas e superiores". Apesar de não a assistir, mas acompanhando uma discussão nas redes sociais, o aspecto da série que estava sendo elencado como algo nobre e superior era a capacidade do autista em provar seu potencial para todos. Eu até entendo a mensagem que se projeta com esse tipo de narrativa, mas eu sinceramente não compreendo porque acreditamos que uma pessoa com alguma diferença precisaria provar sua capacidade. Principalmente hoje, quando a mensagem que se tem transmitido às pessoas "sem limitações" é a de que elas não precisam provar nada a ninguém.
Desviando:
"Estou cansado de ser o que você quer que eu seja
(...)
Eu não sei o que você está
esperando de mim
Me pressionando para seguir
seus passos
(...)
Fiquei tão cansado
Tão mais consciente
(...)
Tudo o que eu quero fazer
É ser mais eu mesmo
E ser menos como você
Você não consegue ver que está
me sufocando?
Segurando tão apertado, com
medo de perder o controle
Porque tudo o que você pensou
que eu poderia ser
Voltando: Discursos pró-inclusão, classificando as diferenças sob o aspecto de vantagens e desvantagens, não é em si praticar aquilo contra o que se luta? Não estamos apenas escancarando mais a ferida? Fazendo uma analogia, não seria como o vegetariano fazer seu protesto vestido com roupas de couro? Enquanto tentarmos lidar com as diferenças baseando nossos julgamentos em perdas e ganhos, vantagens e desvantagens, estaremos tentando hidratar uma pessoa dando-lhe de beber água do mar.
Enfim, eu não sei mais que régua usar para classificar o "diferente" ou o "igual". Não estou dizendo que não existam diferenças, mas estou dizendo que não sei mais como interpretá-las. Desconstruí o conceito na minha mente e não sei o que colocar no lugar. E não pense que digo isso como alguém que reivindica alguma virtude. De fato, estou confuso. Deixando de olhar o mundo sob essa ótica, já não sei mais o que é essa realidade onde habitamos. Sem o olhar da vantagem e desvantagem, as estruturas que construímos perdem seus significados. Que civilização seria essa na qual nada mais se mede à base do que se ganha ou do que se perde, do que se pode e do que não se é capaz?
Nós não conhecemos a vida e a existência. Não sabemos o que é importante e o que não é, tampouco o verdadeiro valor das coisas – se é que há algum. Nem ao menos sabemos se estamos dormindo ou acordados. Porém, gostamos da satisfação proporcionada pela ilusão de que temos tudo bem classificado, medido e pesado. Isso faz parte do anseio humano de ser um deus de si mesmo e do universo.
Certa vez Jean Rostand disse: "A ciência fez de nós deuses antes mesmo de merecermos ser homens." Tomo a liberdade de parafraseá-lo: "Nossos critérios fizeram de nós deuses antes mesmo de merecermos ser homens".